Superman – I


O Reinado do Super-Homem

Como a idéia de dois adolescentes, mais de meio século atrás, se tornou o modelo de herói moderno e continua sendo um sucesso nos quadrinhos

Após 58 anos, ele ainda consegue voar sobre a cidade de Metrópolis, decidido a resgatar a verdade, a justiça e o modo de vida americano. Salvando o mundo ou simplesmente ajudando uma menina a recuperar o seu gatinho, o mito Super-Homem deixou de ser apenas um personagem de histórias em quadrinhos para ser visto como um ícone cultural do século XX. Invejado por uns, criticado por muitos, imitado por todos, o personagem criado por Jerry Siegel e Joe Shuster é um marco divisor no mercado de quadrinhos. Ele é o protótipo do homem perfeito, o objetivo a ser alcançado.

É bem conhecida a lenda de como Siegel e Shuster criaram o Super-Homem, e a grande batalha que travaram para sua publicação. Mas muita gente desconhece que nosso “Homem de Aço” nasceu como o mais temido vilão, um tirano que usava a sua força destruidora para subjugar os mais fracos. Depois, passando para o lado dos mocinhos, seus poderes foram ampliados, até ele atingir o status de semideus e perder a perspectiva do homem comum.

Nascimento

Os gregos foram os primeiros a buscar a perfeição, fosse ela física ou intelectual. Seus heróis e lendas eram mistos de ideais perfeitos e atitudes muito longe disso. Héracles (depois chamado de Hércules pelos romanos) inaugurou a categoria dos semideuses, poderosos e fortes, mas também infectados pelas fraquezas humanas. Beberrão e mulherengo, o filho do todo-poderoso Zeus com uma mortal matou duas serpentes com as mãos ainda quando criança. Caçador de primeira, o adolescente Héracles tinha 2 metros e meio de altura e um físico invejável. Os famosos 12 trabalhos provaram seu poder frente aos admiradores mortais, mas também marcaram sua tragédia pessoal: sob um encantamento de Hera, mulher de Zeus, ele matou seus filhos com Mêgara, filha do rei Creonte de Tebas. Como punição, Héracles teve de cumprir as 12 tarefas para, só então, subir ao Olimpo, a morada dos deuses.

Muitos séculos depois, na Idade Média, os heróis se tornaram cavaleiros armados de espadas e lanças. Vestidos de armaduras pesadas, eles combatiam dragões, salvavam princesas e enfrentaram até o demônio para recuperarem cálices sagrados. Mas, tirando nosso hercúleo semideus, todos estes heróis antigos eram homens comuns lutando contra seus limites. O século XX necessitava de algo mais, de alguém diferente, alguém… super!

Siegel e Shuster eram fãs de histórias de ficção científica e, quando se conheceram aos 16 anos, começaram a criar histórias no jornal da escola e num fanzine mimeografado chamado Science Fiction. Foi neste folhetim, em janeiro de 1933, que nasceu o Super-Homem. O nome do personagem foi copiado de um anúncio da revista pulp Doc Savage. Ele era um tirano do futuro, calvo e de olhar aterrador, que tinha poderes mentais sobre-humanos. Siegel e Shuster criaram um mundo do amanhã com o mesmo olhar pessimista que hoje também se vislumbra nos dias que virão. A crise de 1929, que enfiara os Estados Unidos numa grande depressão econômica, gerou uma série de previsões pessimistas. Em 1932, Aldous Huxley idealiza seu Admirável Mundo Novo, onde os seres humanos renegam sua humanidade. No ano seguinte, Adolf Hitler se torna o chanceler alemão, e planta a idéia da raça perfeita de super-homens, a raça ariana. Talvez por este motivo, os dois jovens judeus resolveram transformar seu novo personagem num mocinho.

A febre das revistas em quadrinhos começou em 1933 e os dois aprendizes de quadrinhistas são capturados imediatamente. Decidiram, então, fazer uma história completa só com o personagem, ainda sem o uniforme, mas com cabelo. Levaram sua obra para um editor que não quis publicá-lo. No ano seguinte, numa noite calma, Siegel concebeu a versão final do seu personagem. Em apenas algumas horas escreveu material para sete semanas de tiras de jornal. Pela manhã já estava ao lado de Shuster, que desenhou furiosamente a nova história. Em vinte e quatro horas, o mito estava criado. Em formato de tiras de jornal ou de revista, Siegel e Shuster durante quatro anos bateram em várias portas tentando vender a sua idéia. Editoras e syndicates (empresas que gerenciam a venda de tiras para os jornais) recusavam o projeto. Apenas a National Periodical (hoje DC Comics) resolveu apostar nos dois jovens e seu Super-Homem. Compraram os direitos de publicação por apenas 130 dólares. E o resto é história.

Os anos seguintes

Depois que surge uma boa idéia, várias outras seguem o mesmo caminho. Com o Super-Homem não foi diferente. Homens com capas e superpoderes começaram a surgir numa explosão sem precedentes. De um momento para o outro, a Terra tinha mais salvadores do que problemas. Cada cidade do continente americano possuía um “super-alguma-coisa” disposto a defender a moral e os bons costumes. Nem mesmo décadas de confrontos com supervilões, guerras, morte, ressurreições, marketing, clones, nada conseguiu abalar a credibilidade e a popularidade dos super-heróis. Crianças, jovens e adultos continuam a acompanhar suas histórias, sejam elas engraçadas, sombrias, ou humanitárias, como quando Super-Homem e Batman juntos lutaram contra a fome.

O final dos anos 80 e início dos anos 90 marcaram a humanização dos super-heróis. Autores consagrados procuraram resgatar a humanidade perdida dos seres mais poderosos do planeta, tentando destruir a imagem de que estes personagens poderiam, se quisessem, mudar o curso da história. Mais e mais superseres passaram a ter uma visão mundana e mais preocupada com a realidade. E esta avalanche que tentou mudar a história em quadrinhos também teve como astro inaugural o primeiro dos novos deuses: Super-Homem. Após décadas de poderes ilimitados, John Byrne, em junho de 1986, transforma o Homem de Aço num Homem Terreno: ele não podia mais viajar no tempo, viver no espaço e nem mais ser eterno.

Kurt Busiek renovou o Universo Marvel em 1993 com a minissérie Marvels (publicada no Brasil em 1995 pela Editora Abril Jovem). Num mundo em que imperam os super-heróis, Busiek procurou o ponto de vista do cidadão comum: um repórter. Este símbolo do contador de histórias do mundo moderno serve de identificação com o leitor. O destaque da minissérie não está nos super-heróis, mas sim no ponto de vista do repórter sobre um mundo onde existem super-homens capazes de fazer tudo o que as pessoas comuns apenas sonham.

No ano passado, Busiek criou uma cidade cheia de super-heróis: Astro City. Nela, tudo se passa num clima de anos 50, os anos de ouro do consumismo americano, dos carrões passeando sem se preocupar com crise de combustível, e de homens e mulheres de chapéu. E é nesta cidade que seus super-homens e super-mulheres vivem as angústias do dia-a-dia. Samaritan, o herói mais parecido com o Super-Homem original, vive o seu dia dividido entre seu emprego como revisor de uma grande editora e sua obrigação de salvar o mundo inteiro. Sua prioridade é salvar pessoas e evitar catástrofes. Inclusive, ele se recrimina quando perde muito tempo salvando um gatinho de uma árvore e quase não consegue salvar uma pessoa. Os super-heróis de Busiek na série Astro City aparentemente não têm a perspectiva do homem comum. Mas nos sonhos, Samaritan pode voar. Ora, como todo superser que se preze, ele vive voando e salvando o mundo. Mas o que ele quer é voar, só isso, num sonho que qualquer pessoa comum tem. Apenas voar.

Vigilantes

Talvez o exemplo mais concreto de um super-herói que perdeu a perspectiva de sua humanidade seja o Dr. Manhattan. Criado por Alan Moore e David Gibbons na minissérie Watchmen, o Dr. Manhattan é um ser onipresente e onisciente, resultado de uma experiência nuclear que acabou em tragédia. O físico Jon Osterman sem querer entra em um compartimento usado para testes radioativos e tem seu corpo destruído. Todos acreditam que esteja morto, mas ele apenas se transformou, sendo capaz de rearranjar os átomos à sua vontade e ver além da superfície: o Dr. Manhattan consegue enxergar átomos, moléculas e partículas e ver o passado, o presente e o futuro… ao mesmo tempo!

Por causa desse seu ponto de vista totalmente inédito, Manhattan perdeu completamente sua humanidade, tornado-se cético e distante, deixando de se preocupar com assuntos mundanos. Para ele, a composição molecular de uma pessoa viva é tão parecida que não se consegue distinguir uma da outra. Ao ultrapassar a linha entre o “normal” e o “super”, Manhattan perdeu também a capacidade de compreender sentimentos básicos, como o amor.

Mas nem tudo está perdido para o Dr. Manhattan. Ao descobrir que sua namorada é filha do Comediante, por quem a mãe dela sentia verdadeiro nojo, notou que às vezes a improbabilidade pode se transformar em realidade. Para ele, que podia passear pelo espaço-tempo sem esforço, aquele fato abriu seus olhos para uma característica do ser humano, algo que dá sentido à vida: o improvável, o imprevisível. Tão imprevisível como a morte.

Em 1992, Joe Shuster morreu, cego de um olho, sem poder desenhar mais o seu personagem, que passou a pertencer à DC Comics. Em janeiro deste ano, foi a vez de Jerry Siegel. Em um anúncio publicado em suas revistas, a DC faz o seu mea culpa. O texto do anúncio diz: “Ele olhou para o céu. Ele atreveu-se a sonhar. Ele nos deu um ícone. E nos ensinou a voar”. O Super-Homem que os rapazes Siegel e Shuster criaram continua a voar pelos céus de Metrópolis, perseguindo o ideal de ser perfeito num mundo cheio de injustiças e que, agora, ficou mais triste.


Sérgio Miranda

(próximo)
  (Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)

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