As trilhas que nos levam à construção de uma determinada linha de raciocínio por diversas vezes são tão tortuosas quanto insondáveis. Neste caso específico tudo começou com uma notícia banal sobre o carro utilizado na filmagem de Ghostbusters, um sucesso de bilheteria da década de oitenta. O Ecto-1 está à venda. Creio que por algo em torno de US$150,000.
Como é um artigo que está na minha DVDteca (se é que essa palavra existe), a criançada resolveu assisti-lo (juro, foram eles). Esse filme é da época em que mal começávamos a falar em vídeo-cassetes em cada casa. Assisti sua versão original no cinema. É de uma época mais pura, mais inocente, onde o bem e o mal dividiam espaços bem distintos – sem tons de cinza.
Aliás, esse sentimento de época se estendia para fora dos cinemas também. Aprontava-se, por certo, mas existia uma certa honra, haviam limites intransponíveis. Volta e meia vejo a geração posterior à minha (que também já não é mais a atual) falar com nostalgia e romantismo acerca da “famosa” década de oitenta. Talvez a mesma nostalgia e romantismo com que minha geração se referia às décadas de sessenta e setenta…
Mas de lá pra cá algo vem acontecendo. Lentamente. Continuamente. Inexoravelmente (essa aprendi com Vincent Price). O bem e o mal deixaram de dividir seus espaços igualmente. Primeiro, tons de cinza foram tomando conta da zona de encontro. Parecia algo natural, condizente com o amadurecimento não só de uma geração, mas como de toda uma raça (a humana). Porém, mais tarde, tornou-se evidente que isso era algo unilateral, o cinza na realidade estava avançando sobre o branco. O lado escuro de nossa humanidade parece que tem se tornado mais forte.
Tanto o é que tornou-se necessário um choque absoluto para chamar nossa atenção desse torpor. O recente incidente (talvez seja melhor chamar de desgraça) ocorrido com aquele garoto no Rio de Janeiro parece que deu um choque na nação. De apenas 110 volts, mas ainda assim, um choque. De tão acostumados com as mazelas, tiroteios, mortes, sequestros, assaltos, somente uma “inovação” de tal monta é que nos fez prestar atenção no mundo além de nosso umbigo. Aliás, o Bica e família já comentaram sobre isso – e concordo com eles.
A dureza é que a exploração midiática sobre o evento já teve início. O próprio Presidente já se manifestou sobre o caso – aliás, desculpe-me sr. Presidente, mas acho que é sim o caso de diminuição da maioridade penal. Os atuais “donos do mundo” vangloriam-se de que não precisam ter noção de responsabilidade, pois são menores de idade e, por isso mesmo, inimputáveis.
Tudo isso é triste e desconcertante. Afinal, que mundo estamos deixando de legado para nossos filhos? Será que é por isso que cada vez mais pessoas deixam de ter filhos para se dedicarem a pequenos animais de estimação? Meus mais íntimos amigos sabem que isso não é uma crítica – de forma alguma – mas uma mera constatação de uma realidade subliminar voltada ao medo e que vem assolando a sociedade moderna.
Trancamo-nos, mudamo-nos para condomínios fechados, erigimos impérios atrás das grades e cercamo-nos de todo luxo e conforto que a tecnologia possa nos proporcionar. Distraímo-nos com nossos hobbies, nossas coleções, nossos pequenos vícios e fugas. Traçamos rotinas que falsamente nos induzem a uma sensação de segurança. Concentramo-nos no trabalho e na dedicação diuturna a atividades que visam coordenar, organizar e dirigir algo que talvez não venha a durar uma década.
E o futuro? Vai bem obrigado. De preferência lá fora, no mundo escuro e sujo do qual esforçamo-nos para não fazer parte.
Talvez eu seja apenas um dos últimos românticos, sempre batalhando uma quixotesca jornada de auto-conhecimento, na qual busco fazer de meus atos meros reflexos de meus pensamentos. Garanto-lhes que é difícil, muito difícil. Envolve principalmente perdas e sacrifícios. Até de coisas que ansiamos muito, mas que – se levadas a cabo – seriam contrárias ao próprio discurso.
Ou seja, sonhos nunca morrem de morte morrida, mas sim de morte matada.
E é por essas e outras que até hoje me atrai aquela singela fábula acerca do beija-flor que, sozinho, procura apagar o fogo da floresta. “Só estou fazendo minha parte”, disse ele.
E se cada um de nós resolvesse fazer sua parte? Mas de verdade? Aqui e ali sempre ouvimos falar de alguns focos isolados, verdadeiros bastiões da resistência. Comunidades se insurgem lá e acolá; movimentos como a metareciclagem aparecem do nada para preencher uma lacuna da sociedade; entram nessa luta inclusive pessoas abnegadas que dispõem-se a ajudar uma coletividade sem proveito nenhum para si.
O grande problema é que esse – de fato – é um trabalho de formiguinha. Não veremos as coisas mudarem da noite para o dia. Mas devemos inspirar a próxima geração para que não abdique desse ideal, dessa luta. É nossa obrigação prepará-los para os dias que virão, fortalecendo-lhes o caráter de modo que não desistam e que também inspirem de igual forma a geração seguinte.
Não será fácil. Não é fácil. Não se trata somente de “cruzar os raios”, como no filme, para que todos os problemas se resolvam. Não estamos falando de uma batalha, mas de uma guerra. Uma longa e duradoura guerra. Da qual certamente não veremos o final. Se é que algum dia haverá um final.
Mas havemos de tentar.
Afinal, “Só estou fazendo minha parte”…