Não, não se trata de nenhuma epístola bíblica…
Para encerrar o ano de 2008, nada melhor que uma mãozinha para tentar ajudar uma das muitas bandeiras que defendo…
Conforme fiquei sabendo pelo Clipping da AASP, existe um documento elaborado por um grupo de artistas, professores, universitários e representantes da sociedade civil. A esse documento foi dado o nome de “Carta de São Paulo pelo acesso a bens culturais” e seu objetivo é propiciar uma discussão para a revisão e adequação às realidades do mundo digital da Lei de Direitos Autorais – datada de 98, época em que a Internet dava apenas seus primeiros passos in Terra Brasilis…
De se perceber que, ainda que ao alvedrio da Lei, muito do que é pleiteado em termos de atualização, regulamentação ou regularização já é, na prática, efetuado pelos internautas pelo mundo afora. O que se busca, ao que me parece, é que a legislação ande em compasso um pouco mais afinado com a realidade de nosso dia-a-dia. Ou seja, uma lei que regulamente práticas na sociedade – e não uma sociedade que seja regulamentada pela lei.
Enfim, eis, na íntegra, seu conteúdo (cujo original pode ser encontrado aqui):
Nós acadêmicos, artistas, escritores, professores, editores e membros da sociedade civil abaixo assinados, movidos pela convicção quanto à necessidade de promover a universalização do acesso a obras literárias, artísticas e científicas e conscientes da necessidade de proteção dos direitos autorais contra usos comerciais indevidos, tornamos público alguns consensos quanto à necessidade de reforma da lei de direito autoral.
As novas tecnologias de informação e comunicação potencializaram o compartilhamento de conteúdos culturais. Tais práticas, sem envolver transações monetárias, trazem novas possibilidades de efetivação dos direitos à educação, à cultura, à informação e à comunicação.
Por outro lado, tem-se defendido que o controle da troca de arquivos na Internet seja feito por meio do monitoramento do cidadão no seu acesso à rede. Isso somente poderia ocorrer através da violação do direito à privacidade e com severas ameaças à liberdade de expressão e de comunicação. Entendemos que esse não é o melhor caminho, e que a reforma da lei deve ser realista face às novas tecnologias e práticas sociais.
Destacamos que somos contra quaisquer usos comerciais da obra sem autorização de seu titular de direitos. Ressaltamos ainda a necessidade de reequilibrar a posição do autor frente aos intermediários culturais, de forma a potencializar as alternativas dos autores de produzir, distribuir e comercializar suas obras diretamente por meio das novas tecnologias da informação. Este equilíbrio conferiria maior autonomia e independência econômica aos autores, permitindo alargar as fronteiras ainda muito limitadas do mercado cultural.
Por fim, entendemos que é necessário harmonizar os interesses público e privado no acesso à cultura. Para isso, é necessário reequilibrar a tutela do direito individual de exploração da obra intelectual (cujo detentor freqüentemente não é o próprio autor da obra) com a tutela do direito coletivo de acesso à cultura, direito este tão fundamental quanto o direito autoral e cuja previsão encontra-se igualmente no corpo de nossa Constituição Federal. A criação é um fruto que tem origem no patrimônio cultural coletivo da sociedade e nesse sentido, sua fruição não pode ser restringida de forma desarrazoada.
Para atender esses fins, acreditamos que são necessárias as seguintes reformas na Lei de Direito Autoral:
1. Permissão da cópia integral privada sem finalidade de lucro.
2. Permissão da livre utilização de obras protegidas com direito autoral, desde que tal uso não possua finalidade comercial direta ou indireta (por exemplo, por meio da publicidade). Por isso, entendemos que é necessário que a lei defina de forma clara, e em especial no que se refere ao ambiente digital, o que é e o que não é uso não-comercial de uma obra.
* Tal medida reconhecerá a legitimidade do espaço público não comercial de compartilhamento de obras culturais cuja existência não compromete a justa remuneração dos criadores nem a existência de um ambiente comercial lucrativo que se adapta à nova realidade por meio dos chamados novos modelos de negócios.
3. Permissão da conversão de formatos e suportes de obras protegidas, de forma que instituições arquivísticas possam adequadamente guardar e disponibilizar o patrimônio cultural e que o usuário possa utilizar uma obra legalmente adquirida em diferentes dispositivos de execução.
4. Introdução de um dispositivo assegurando o uso livre e gratuito para obras órfãs, para as quais se tentou razoavelmente determinar a autoria.
5. Redução do prazo de proteção do direito de autor dos atuais 70 anos após a morte do autor para 50 anos após sua morte.
* Tal mudança permitirá uma ampliação do domínio público e não entrará em contradição com as obrigações internacionais assumidas pelo país na Convenção de Berna e no TRIPS.
6. Proibição da cessão definitiva e exclusiva da obra, limitando o prazo de tal cessão a cinco anos.
* Esta limitação visa impedir que os autores se tornem dependentes dos intermediários mediante a cessão definitiva e exclusiva dos direitos de sua criação, forçando a renegociação da relação contratual de tempos em tempos, permitindo inclusive ao autor aproveitar-se de uma valorização comercial da obra. Ademais, a limitação dos prazos de cessão permitirá que os autores retomem o controle sobre as obras após a expiração do seu potencial de exploração comercial.
7. Remoção do artigo que proíbe o contorno de travas anti-cópia e a introdução de uma proibição da inserção em equipamentos eletrônicos de qualquer dispositivo anti-cópia (chamados de DRM e TPM) que impeça aos usuários de exercer qualquer direito legal de que sejam titulares, como os direitos de acesso previstos nas limitações e exceções ao direito autoral, e a visualização e cópia de obras cujos direitos autorais já se extinguiram ou foram renunciados por seu titular.
* Os dispositivos anti-cópia têm sido utilizados para impor restrições de acesso adicionais àquelas estabelecidas por lei. Isso tem impedido os cidadãos de fazer valer os seus direitos previstos nas limitações e exceções, ou aqueles originados pelo fim da proteção concedida pelo direito autoral. Além disso, é importante que a lei proíba a criação de dispositivos anti-cópia ou qualquer outro tipo de tecnologia que possa impedir o exercício de quaisquer direitos de acesso legítimos.
8. Introdução de um dispositivo de licenciamento compulsório de obras protegidas pelo direito autoral como mecanismo necessário para promover o acesso à cultura e ao conhecimento e para evitar práticas anti-concorrenciais frente a restrições não razoáveis de acesso às obras.
* Sempre que houver abuso de direito, o Estado deveria estar equipado para determinar o licenciamento compulsório de obras, havendo sempre como contrapartida a justa remuneração dos detentores de direito autoral. Um tal dispositivo seria particularmente relevante para garantir o acesso a criações de autores já falecidos cujas obras são mantidas em sigilo por parte dos herdeiros e para garantir o acesso de estudantes de curso superior a manuais didáticos que têm frequentemente preços abusivos e limitam as políticas de ampliação do acesso ao ensino superior.
9. Revisão do capítulo de gestão coletiva, estabelecendo procedimentos que garantam maior transparência e participação dos criadores.
10. Permissão de livre reprodução e utilização das obras culturais produzidas integralmente com financiamento público resguardando-se o direito moral do autor.