São Thomé das Letras – A Viagem (I)

“Caminhante: não há caminho – o caminho se faz caminhando.”
Ataualpa

I – Preparativos

Não lembro ao certo como o convite surgiu. Só tenho certeza que deve ter sido numa mesa de bar.

– E aí? Vamos pra São Tomé?

– Das Letras?

– De onde mais?

Dei uma longa tragada em meu cigarro e pensei um pouco sobre o assunto. Um feriadão se aproximando, uma oportunidade de fazer algo diferente com a criançada, levar a Dona Patroa a um lugar que ela ainda não conhecia e – por que não? – tentar resgatar um pouco de mim mesmo que parece ter ficado naquele lugar quando estive lá, já tem quase uns vinte anos.

– Legal. Só vou ver com a Dona Patroa e depois a gente se fala.

Tenho certeza absoluta que já era essa a resposta esperada pelo Evandro, autor do convite, copoanheiro eventual e parceiro em desventuras no geral. Sabem, é algo como aquele caboclo que está na mesa do bar – normalmente no mais divertido da festa -, levanta-se e diz algo como “vou até tal lugar e, qualquer coisa, eu volto”. Não adianta protestar ou argumentar. Esse não volta mais. E a resposta que eu dei soou exatamente nesse tom. E eu tinha consciência disso.

Mesmo assim, no final de semana seguinte, conversei com minha amada, idolatrada, salve, salve, Dona Patroa. E ela topou.

Na mesma hora liguei e avisei que iríamos.

E a comoção geral tomou conta da platéia naquele momento…

Os dias seguintes foram, digamos, interessantes. Um meio que preparativo – mas sem preparativos. Tá, na prática a semana se resumiu num feriado maluco – o Dia do Servidor Público – que, em alguns lugares foi adiantado para segunda-feira, em outros foi comemorado no dia mesmo, na quarta-feira, e, em ainda outros, ficou para sexta-feira. E como Murphy é um velho sacana, é lógico que eu e a Dona Patroa tivemos nossos feriados escalados para dias diferentes: ela na quarta e eu na sexta.

Mesmo assim, zuzo bem.

Ela aproveitou a quarta para fazer as compras do que fosse necessário para viagem. Ou seja, zilhares de lanchinhos, frutas, água, refri, etc. O mínimo indispensável para manter calmos os três filhotes – de cinco, sete e dez anos – pelas horas a fio que passariam dentro do carro.

Mas, e na prática, como fazer?

Bem, sendo ela funcionária pública estadual, com direito à chamada licença abonada – uma vez a cada mês, ou bimestre ou a cada seis meses, sei lá – e considerando que em mais de dez anos de serviços prestados nunca utilizou essa prerrogativa, não foi sem surpresa de sua chefe que ela pleiteou esse direito para a sexta seguinte.

E por que na sexta? Bem, como o feriado não seria geral para todos na sexta, mas sim na segunda seguinte (Finados), então seria o melhor dia de pegar a estrada para ir, com um movimento, no máximo, médio, e deixar para voltar no domingo, praticamente sem movimento, enquanto que todo o resto do mundo deixaria para voltar na segunda.

Parecia o plano perfeito.

Já na véspera, quinta-feira, ao combinar com o Evandro o caminho pelo qual iríamos, propus o circuito das águas, pois passei por aquela estrada há uns cinco anos e me pareceu confortável o suficiente para prosseguir até São Tomé. Ele iria propor a SP-50 (também conhecida como estrada para Monteiro Lobato), mas concordou comigo. Avisou que sua irmã e mãe também iriam, em carro próprio. Combinamos um ponto qualquer na Dutra para nos encontrarmos.

Masssss…

Conversando com a Dona Patroa chegamos à conclusão que o “divertido” não seria a viagem propriamente dita, mas sim o “viajar” em si. Daí que um caminho, digamos, mais bucólico, deveria ser bem mais interessante.

Falei com o Evandro novamente e recombinamos o ponto de encontro. Já aí não tive como não vislumbrar alguns acordes do Raul: “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Bons auspícios, em se tratando de São Tomé das Letras…

Como eu havia deixado a viatura para alguns ajustes mechânicos, fui gentilmente levado para o serviço pela Dona Patroa. Aliás chegaram inclusive a me perguntar se eu não iria para lá com o Opalão.

– Não. Por mais que eu queira – e eu quero – ainda não confio nele.

– Como assim?

– É que, para mim, todo carro novo que a gente pega – ainda mais sendo velho – passa por um período de adaptação. Eu tenho que pegar confiança nele. Saber que ele não vai me deixar na mão, conhecer seus macetes, manias, cacoetes e birras. Só então daria para encarar uma viagem dessas.

– É, mas isso não é só com carro velho não, carro novo também…

Enfim, ao encerrar o expediente na quinta, após um merecido choppinho com o copoanheiro Bicarato – que, infelizmente, por motivos trabalhísticos não pode se juntar à nossa caravana – a Dona Patroa foi me pegar com as crianças. Deixei a tropa em casa para acabar de arrumar as malas e parti para providências de praxe antes de qualquer viagem. Amortecedores, freios e pneus já eram novos, substituídos há cerca de três meses. Então foi questão de trocar óleo, completar água, calibrar pneus (inclusive o estepe), trocar o extintor vencido há dois anos, completar o tanque e tomar três latinhas nesse processo.

Tudo pronto.

Chegando em casa acabei de fazer também as minhas malas, separei uma muda de roupas para viagem, colocamos tudo no carro – inclusive pensando na logística de acesso aos mantimentos, remédios, blusas, etc.

Celulares carregados e baterias da câmera fotográfica completas.

Algum dinheiro em espécie disponível na carteira.

Tudo preparado.

Heh…

E pensar que, nas minhas viagens de antigamente, o máximo que eu me preocuparia seria em deixar uma graninha à parte para eventualmente pegar o busão de volta caso não conseguisse carona. De resto era carregar o mínimo de peso indispensável para não passar nenhum perrengue. Ou seja, máxima eficiência com mínimo esforço.

Com tudo encaminhado, ansiedade da criançada devidamente controlada e despertadores a postos bastava aguardar o raiar do dia 30 de outubro para a grande viagem.

Mal sabíamos o que nos aguardava.

Continua?

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