Eis uma saborosíssima história de um amigo virtual de longa data, Francisco Antonio Dória.
Sim, é longa. Sim, vale ler até o final.
— General, sente-se, por favor. Vovô já vem receber o senhor.
O general era Taurino de Resende, presidente da CGI, Comissão Geral de Investigações, o malleus subversivorum, martelo dos subversivos. Estávamos em maio de 1964. Taurino de Resende era um caboclão alto, de cara redonda, bem moreno, pele bronze. No jeito lembrava meu tio-avô Luiz Doria, um sergipano alto com um porte imponente como o do general Taurino, este, pernambucano.
Estávamos na saleta da casa da vovó, que era como eu chamava a casa de meus avós maternos (era da vovó, não de vovô; senhor da casa era a senhora dona, Dona Hermínia, minha avó). A casa, um cubo de três andares em estilo normando — rheinische Fachwerk — no centro de um jardim, quase um pequeno parque, em Copacabana, tinha sua entrada principal através de uma porte cochère, onde havia uma grande porta, bem pesada, de mogno bem escuro, reforçada com ferros decorados, a porta principal da casa. Por ali se entrava num hall de chão de mármore, e logo à direita do hall estava a porta da saleta.
Era uma mistura de sala de estar, ou sala de visitas, com escritório. As paredes, cobertas de estantes; num dos cantos, alguns dos meus favoritos, como Les Grands Procès de l’Histoire, de Henri Robert, bâtonnier da ordem francesa em fins do século XIX, ou uma coleção de pequenos romances encadernados numa encardenação art nouveau, com muito Henri Lavedan — membro da Academia francesa há um século atrás, e que hoje se esqueceu. Uma das janelas dava para o caminho de entrada da casa, a outra se abria para o jardim da frente, um canteiro de jibóias, bem denso de folhagens pequenas, encerrado por uma virola de coroas-de-cristo, onde todos nós, quando crianças pequenas, nos arranhávamos tentando pular para dentro do canteiro das jibóias.
Havia muitos retratos nas prateleiras e nas paredes da saleta. Numa prateleira, com destaque, em posição central, o retrato autografado que o Kaiser, sim, ele mesmo, Guilherme II, havia dado ao bivô e à bivó, o marechal Luiz Mendes de Moraes e bivó Cecilia, ele ministro da guerra e depois ministro do STM, quando da audiência privada que lhes dera em Berlim ou Potsdam, não lembro ao certo, em 1910. O próprio bivô estava representado na sala, num busto de bronze preso num suporte de madeira, tamanho grande, com as pupilas dos olhos furadas, como era da convenção nas esculturas, o que eu achava estranhíssimo. Na parede oposta, um retrato do Tio Prudente o presidente, fundo bordô, cara séria mas tranquila. Junto da porta de entrada, um quadrinho pequeno com um velho de carinha simpática: era um óleo pintado por minha bisavó, bivó Cecilia, Mme la Maréchale Mendes de Moraes, como se dizia em começos do século XX, na França e no Brasil afrancesado dos nossos Guermantes locais. Retrato de John D. Rockefeller; minha bisavó achava-o encantador, de cara boa, e o tomara como modelo a partir de alguma fotografia. Minha bisavó, maragatona feroz, orgulhosa de seu parentesco a Bento Gonçalves o chefe farroupilha, cujo pai havia na infância dela recebido em casa Gumercindo Saraiva, minha bisavó era uma ingênua quanto à política internacional. Num canto de parede ainda, nos olhavam as armas de São Paulo, com um diploma referente à atuação de vovô em 1932, assinado pelo Christiano Altenfelder e com a dedicatória “ao general Justo.” Não, vovô não era milico, e muito menos general; era advogado vaidosíssimo de sua profissão e de seu prestígio.
No diploma os dois lemas de São Paulo: pro Sao Paulo fiant eximia. Altiora semper petens. Por São Paulo façam-se as coisas máximas. Sempre ambicionando o máximo. (Este último, depois descobri, repetia o lema da família de papai, altiora peto.)
Vendo o general Taurino olhar aqueles retratos todos, toda a memorábilia Mendes de Moraes da saleta — os visitantes sempre olhavam fascinados aquela rogues’ gallery, galeria dos monstros familiares, devo ter lembrado que ali, uns dez, doze anos antes, fora apresentado a remanescentes do governo revolucionário paulista de 1932: Paulo de Moraes Barros e o Zico, Prudente José de Moraes Barros Neto (Zico, porque tinha o Neco, o jornalista, Prudente de Moraes, neto), primos de vovô, e mais o Doutor Christiano, Christiano Altenfelder Silva. Testemunha ocular da história.
A cara do general Taurino, me olhando ali enquanto esperava que vovô chegasse, era desenhada pela angústia. Aquele homem grandalhão, de jeito brusco, o inquisidor-geral dos generais de 64, não podia fazer nada que ajudasse o filho, preso e sendo torturado em Pernambuco pelo próprio grupo militar que colocara o general Taurino no trono da CGI. O filho do general era Sergio Resende, economista, professor da Universidade de Pernambuco — e dito subversivo. Fora preso por ordem do general Justino, comandante do então IV Exército, e o general Taurino nada podia fazer, mesmo sendo poderosíssimo, arbitrariamente poderoso, poderoso como o são os régulos nas ditaduras. Poderoso e impotente.
Chega vovô, cara sempre fechada, os olhinhos azuis miúdos, miúdos, o general se levanta e o cumprimenta. Fiz a sala ao general, me despeço, e penso — por que vovô, civil, pode conseguir o que o general não consegue? (Vovô impetrou um habeas, e Sergio Resende foi libertado. Existia um poder civil semi-invisível, que podia mais que a força bruta e desordenada dos militares.)
Aprendi logo em seguida que muita gente, do lado dos civis, gente que inclusive simpatizava com os generais, era gente que funcionava como intermediários que procuravam a libertação de presos políticos. Cito dois nomes: Adonias Filho, então diretor da Biblioteca Nacional, apelidado Pimpinela Escarlate. E Rachel de Queiroz, com quem mamãe adorava fofocar sobre política ao telefone. E havia também os laços familiares, que iam muito além das posições políticas. O Brasil era, e talvez ainda seja, muito arcaico.
A família de mamãe era um arcoíris político. A filha mais velha de vovô e vovó, Tia Maria, Maria Werneck de Castro, casada com Luis Werneck de Castro, era comunista histórica, amiga de “Maria Prestes,” que é como chamava Olga Benário, fundadora da Aliança Nacional Libertadora, do comitê central do Partidão. Tia Maria esteve presa com Graciliano, Nise da Silveira (cujo marido Mário Magalhães foi meu padrinho de casamento), e aparece várias vezes em Memórias do Cárcere. O segundo filho, Tio Luiz, Luiz Mendes de Moraes Neto, tinha, nos anos 30, francas simpatias pelo nazismo. (Folheei diversas vezes, quando criança, um livrinho de propaganda que estava entre os livros de Tio Luiz, Hitler am Berchstegarten, Hitler bonitinho em trajes civis bávaros, algo tipo The Sound of Music, beijando criancinhas louríssimas, Göring com roupinha tirolesa, chapeuzinho tirolês, e montanhas e pinheiros ao fundo.) Depois de 45, Tio Luiz entrou pela direita na UDN — mamãe, ex-militante da Esquerda Democrática, entrou na UDN pela esquerda.
Em 64, Tio Luiz (ao cunhado, marido de Tia Maria, chamávamos Tio Werneck) era ligado aos ditos aragarcianos da aeronáutica, Haroldo Veloso, Bournier, Leuzinger, Paulo Vítor, porque participara em 1959 da revoada até Aragarças. Em abril de 1964, logo logo depois do golpe dos generais, Tia Maria recebe uma intimação para se apresentar ao DOPS, na Rua da Relação, a polícia política; ia depor perante Cecil Borer — delegado cujo nome assustava, e com muitos motivos. Tia Maria liga para vovó para contar da intimação, porque não falava com Tio Luiz. Mas se organiza rápido a rede familiar de proteção; Tia Maria vai ao DOPS acompanhada de três dos aragarcianos. Entra com eles, depõe com eles, sai com eles. Nunca mais mexeram com ela. E — viva o arcaísmo dos laços sociais brasileiros…
Ajudei três presos políticos. Na verdade, dois presos e um foragido. E estive junto de uma namorada dita subversiva, em seu julgamento e depois na prisão. Conto tudo agora.
O primeiro preso que ajudei foi em 1971. Na casa do Chaim, no Leblon, estava hospedado um cara que a polícia de Minas estava procurando. Seu nom de guerre era Gilberto. Moreno, baixinho, magro, era da Polop (“Política Operária”) ou de alguma facção semelhante. Como ia muito à casa do Jaime — Chaim — conversava muito com o Gilberto, assuntos gerais, digamos assim. Repartíamos um interesse, bom, erótico, em comum, pela cozinheira do Chaim daquele tempo, uma moça de Santa Catarina, lourinha de olhos azuis, e, talvez surpreendentemente, ex-sargento da PM de lá. (E de cujos, hum, favores, desfrutei, e creio que também o Gilberto.)
O Gilberto ficou em casa do Jaime vários meses; foi de janeiro a junho de 1971. Ficava sempre no apartamento; quase nunca saía, e quando saía, era só para ir à esquina comprar cigarros, coisa assim. Um dia, em junho, o Jaime me liga preocupado: alguém teria denunciado que o Gilberto estava morando com ele. Tinha-se que arranjar um novo abrigo para o Gilberto. Desliga, e meia-hora depois me liga de novo, tinha arranjado um abrigo. Agora, o problema era tirá-lo do apartamento no Leblon e levá-lo para o novo esconderijo, um apartamento na rua Assis Brasil, em Copacabana. Era a minha vez. Ia pegar o Gilberto com meu carro, um fusquinha; o Gilberto ia agachado atrás — medo de policiais olheiros na vizinhança, o que de fato estava acontecendo — e eu zanzaria pelas ruas internas de Ipanema e Copa até chegar na Praça Arcoverde, onde o Gilberto ia ficar. Tudo combinado.
Cheguei sem grandes preocupações na casa do Jaime, meia-noite e meia. Entrei com o carro na garagem, fiquei com o motor ligado, ninguém à vista e não existiam câmeras de vigilância naquele tempo. O Gilberto desce pelo elevador (a gente tinha que ser pontual, porque era tudo combinado para funcionar feito um relógio) e caminha pelas sombras e entra no meu carro e se agacha atrás. Saio pela rampa da garage subterrânea e desço a Venâncio até a praia. E começo a zanzar pelas ruas internas. Aí, claro, começo também a ficar nervoso, mas não falo nada, e nem o Gilberto, já que pelos vidros quem estava do lado de fora podia me ver falando — com quem?, poderia se perguntar.
A paranóia, ao menos nessas horas, é um dos direitos humanos fundamentais.
Vou zanzando pelo Leblon, da praia às ruas de dentro, das ruas de dentro à praia. Não andávamos pela Ataulfo de Paiva porque era muito iluminada. Em 71, a praia era bem escurinha, e mais protegida. Entro em Copa pelo Corte do Cantagalo. Desço a Miguel Lemos, dobro em Barata Ribeiro e pego o túnel. E — horror — entre Sá Ferreira e Souza Lima, a Raul Pompéia está bloqueada pela metade. Batida do doi-codi.
Faziam aquilo mais para intimidar. Porque presumiam (isso me foi contado depois) que a turma de esquerda era sofisticada, planejava tudo muito bem, tinha uma logística mais que perfeita; não esperavam pegar nada naquelas batidas, só um ou outro garotão maconheiro. Pois não era nada disso: tirando o pessoal de apoio do Partidão, que tinha muita experiência com rotas de fuga e esconderijos seguros, o resto tudo era feito no tapa.
E — estávamos ali diante de vinte soldados com roupas de camuflagem, fuzis apontados para nós, que tínhamos que passar por eles devagarinho devagarinho. E devagarinho foi: passei a dez, quinze por hora. Me olharam na cara, olhei em frente, fazendo cara de cansaço, ou tentando fazer cara de cansaço. Passei de-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho. O raio do corredor polonês não terminava nunca. De-va-ga-ri-nho. De-va-ga-ri-nho.
De repente terminou. Engatei a segunda, fui até a esquina de Francisco Sá, desci para Copacabana, fui direto, fodam-se as luzes todas da avenida brilhando sobre mim. Entrei em Duvivier, peguei Barata Ribeiro, subi Assis Brasil, deixei o Gilberto. Nunca mais o vi.
Voltei para casa, em Joaquim Nabuco. Estava todo borrado, admito. Tive que lavar calça e cueca, tudo fedorento, às duas e meia da manhã. Xinguei xinguei adoidado urbi et orbe, tout le monde et son père. Mas o Gilberto estava a salvo no apartamento de amigos.
Logo em seguida o Chaim foi preso: a denúncia a respeito do Gilberto era verdadeira.
Foi a segunda vez que me meti na confusão cinzenta dos policiais ligados ao dito aparato de segurança, e o pessoal dos movimentos políticos — digo confusão cinzenta porque ouvi de muita gente da polícia palavras simpáticas à turma de esquerda que eles perseguiam. Sim, o discurso era numa direção, as ações iam no sentido contrário. Mas o espectro que ia de um lado ao outro, da polícia aos subversivos, se olhado de perto, era cinzento, sim.
Chaim preso. Nem pensei ou duvidei, saí logo tentando fazer alguma coisa por ele. Tinha dois caminhos: falar com Flora Frisch, Flora Strozenberg de casada, advogada de presos políticos, e pedir ajuda a um amigo, na verdade irmão analítico, isto é, colega de grupo de psicanálise, Jacob Bryskier, delegado da polícia civil. Liguei para Flora. Marcamos um “ponto,” encontro para trocar informações, na Praça Arcoverde. Tinha minhas instruções: devia cumprimentar Flora como se ela fosse minha namorada, e ficaríamos andando abraçados à volta da praça, conversando baixinho. Flora me disse então que, dois dias depois da prisão, não sabiam ainda onde o Jaime estava, se no DOPS ou no doi-codi. Tendo alguma idéia do lugar da cana, se impetrava imediatamente um habeas — e quando o exército reconhecia ter um prisioneiro, isso era sinal que as torturas iam cessar, ou ao menos que iam cuidar para que não acontecessem “acidentes de trabalho” com o prisioneiro. O objetivo era sempre mudar o status de “desaparecido” para “prisioneiro por subversão.” Estes nunca sumiam de vez.
Com meu amigo delegado falei dois dias depois. Ele me trouxe um colega que trabalhava no DOPS, e que, este outro, me disse sobre o lugar onde o Chaim estava. Foi direto: ele está em tal e qual lugar, e não foi maltratado.
(Em termos: foi colocado nu contra a parede numa cela fria. Mas não bateram nele.)
Chegando em casa, vi um primo com quem não falava há muito tempo. Sabia que era ligado a gente da aeronáutica e da marinha. Como eu ia almoçar, sentou-se à mesa comigo. No meio do almoço me diz, sei que seus amigos subversivos foram presos. (Lula Costa Lima tinha estado preso antes do Chaim, mas só soube depois que saiu da cadeia.) Diz entre os dentes: meus amigos do Cenimar (o serviço secreto da marinha) me dizem que você também vai ser chamado.
Me levanto enojado de raiva. Quase vomito. Não digo nada, no entanto. Mit der Dummheit kämpfen Götter selbst vergebens. É Schiller, A Donzela de Orléans: lutando contra a estupidez, até os deuses pedem arrego.
O terceiro caso deu-se em começos de 1976. Leo Benjamin era colega de turma de Margô, minha primeira mulher, na faculdade de medicina. Sabendo que conhecíamos muita gente, me passa um memorial escrito por seu irmão, César Benjamin, o Cesinha, então com dezessete anos, preso numa prisão militar, e arrazoando contra a ilegalidade de sua prisão. Sabia da história do Cesinha, que não vou repetir aqui, e sobretudo sabia da conversa de sua mãe, D. Iramaya, com Adyr Fiúza de Castro, general comandante do CIE, o Centro de Informações do Exército: nesta conversa, o general conclui, para D. Iramaya, meu guia é a violência, só acredito na violência.
Recebemos o memorial numa quinta ou sexta-feira. Já morávamos em Petrópolis, naquela época em casa de meu tio Emanuel, irmão caçula de mamãe. Havia um hábito nos fins de semana: eu funcionava como o chefe da ucharia. Comprava comidinhas especiais, um engradado de cerveja Bohemia, meu tio liberava o uísque (mas em geral ficávamos na cerveja), e a gente ia curtir um bom papo no jardim, na beira da piscina. Como meu tio era conselheiro do conselho de contas dos municípios, chamávamos àquilo de “boteco do seu conselheiro.”
Um dos que vinham sempre era Lywal Salles, diretor do Jornal do Brasil. Todo mundo muito reacionário, pró-governo; vozes mais liberais, só Rodolfo, ex-embaixador em Angola, ex-genro de Vinicius, e Margô e eu. Mas o papo era gostoso, e a comida do boteco também.
Naquele fim de semana estava chovendo, e meus tios tinham descido a serra. Estávamos sozinhos Margô, eu, e Pedro, então com poucos meses. Domingo, toco para Lywal, com o memorial do Cesinha na mão, gelo a cerveja, saio para comprar dois ou três frangos de televisão de cachorro (ou “frangos vira-vira”) e fico esperando Lywal. Ele chega, já estávamos no segundo copo de cerveja. Olha os frangos, diz, odeio galinha assada.
Penso: começamos bem. Mas logo a gente arranja umas iscas de filé para Lywal e começo a conversa. Passo para ele o memorial do Cesinha. Ele lê em diagonal e me diz, mais um daqueles seus amigos comunistas? Não respondo à provocação, explico para ele o caso todo. Me diz: vou passar para o Castelinho.
No dia seguinte é o tema da Coluna do Castello. Na terça-feira, uma resposta oficial do ministro da justiça: a prisão do Cesinha é legal, tratava-se de um subversivo perigoso etc etc. Na terça-feira desço para me encontrar com Prudente, meu primo, então presidente da ABI. Me recebe de tardinha, seis e meia. Me faz ler o memorial do Cesinha, pois estava cego devido ao câncer que ia matá-lo. Levo uma hora e tanto lendo a papelada. No final da leitura me diz: Francisco Antonio, ainda existe um fiozinho de legalidade neste país. Vamos nos segurar nesse fiozinho.
Algumas semanas depois nos encontramos, o Neco, o Prudente, Margô e eu numa missa qualquer da família. Sabia que o Cesinha fora banido e deportado, e que estava na Suécia. Pergunto a Prudente como tinha sido a coisa. Me conta, rapidamente: Francisco Antonio, depois que você saiu, liguei para Humberto Barreto, secretário de imprensa do Geisel, e resumi para ele a questão, pedindo ajuda. Humberto Barreto, no biriba com o Geisel no domingo, apresentou o caso do Cesinha como sendo um desafio à autoridade do presidente. O Geisel ficou furioso, mandou lavrar o decreto de banimento do Cesinha, determinou que se preparasse o passaporte correspondente, e ordenou ao primeiro exército a soltura e o envio do César para a Suécia.
Foi uma operação de guerra: jipões com militares de confiança armados, o Cesinha debaixo de uma lona, protegido por fuzis e metralhadoras em riste. Entraram direto na pista do Galeão, o avião com os motores já ligados, pronto para taxiar na pista. Colocam lá dentro o Cesinha, entregam a ele, dentro do avião o passaporte — e o enviam para a Suécia.
No Natal, Margô, Pedro e eu recebemos um cartão da D. Iramaya e família. Feliz Natal, ótimo Ano Novo. E muito obrigado, vocês sabem bem por que.
Ainda falta contar a história de minha namorada subversiva. Foi em começos de 1972. Era miúda, morena mas com dois olhos ultra-azuis; muito bonitinha. Engenheira recém-formada, estava fazendo um curso de psicologia. Tinha participado brevemente de um grupo ligado à luta armada, porque seu ex-marido era militar, e de esquerda, e estivera junto com ela nalgum dos grupúsculos da esquerda daquele tempo. Tinha dois filhos pequenos. Vou chamá-la pelo nome de guerra: Yara.
Foi um namoro rápido, uns dois meses, rápido e convencional, com cineminhas, papos em bar, e encontros no meu apartamento de Joaquim Nabuco. Nunca pernoitava comigo, pois tinha que cuidar dos filhos. Terminamos, ficamos amigos.
Um dia me liga. Ia ser julgada numa auditoria da aeronáutica. Queria que, como amigo, estivesse presente. Como na maior parte daqueles processos, a coisa estava combinada desde antes. Ela e o ex-marido iam se declarar culpados, iam receber uma sentença leve, e se encerrava o caso. Cheguei lá a tempo de ouvir a sentença, três meses. Era o acertado. Yara, olhos azuis brilhando, estava contente.
Me liga uns dias depois de novo. Estava na cadeia, mas tinha acesso ao telefone. Me pediu que fosse vê-la, e lhe levasse uns biscoitos. Fui, apavorado, claro. Era na rua da Relação, junto do DOPS. Me explicou em detalhe: você entra, cruza na diagonal o pátio, e chega à carceragem feminina. Manda me chamar. Foi o que fiz. Tinha uma cantina ali. Me sentaram na cantina, e em dois ou três minutos chega Yara com uma outra presa, as duas de uniforme de prisão, uma mulata. Me apresenta e vai explicando direto, é minha colega de cela, presa por prostituição e um pequeno roubo. Ficamos batendo papo ali, tomando guaraná e comendo os biscoitos que levei para Yara.
Saiu da prisão, e sei que fez carreira como professora universitária. Nos vimos há uns dez anos atrás, e em 2000, soube chocado que Yara tinha morrido num acidente de carro.
Nunca fui militante de grupo de esquerda. Por que agi, então, desse jeito, me arriscando para defender gente que às vezes nem conhecia, ou mal conhecia? A resposta é simples. Tem uma versão fresca: noblesse oblige. Tem outra, que esclarece meus motivos: questão de decência humana. Imperativo moral. Solidariedade. Luta contra a canalhice, contra a indignidade.
E isso é o significado de: noblesse oblige.