O que é um coelho branco? O que ele representa? Uma mensagem de esperança? Um sentimento de renovação? Uma firmeza de propósito? Promessas estranhas que ele mesmo significava sem saber que o fazia… Seja lá como for, quando passou, consultando seu relógio no bolso do colete, já estava atrasado. Aliás, como sempre, como tudo na vida de Alice.
E ao se meter num profundo buraco, eis que Alice, inconsequente, sem pestanejar também se atirou de corpo e alma atrás do coelho e de suas promessas não ditas.
E ao cair naquele buraco sem fim (mal sabendo que, na realidade, tudo na vida tem um fim), enquanto aguardava um fundo que não chegava, fez o que melhor sabia fazer: tagarelava de si para si, pois toda Alice – principalmente as escorpianas – é sonhadora e perguntadeira. E quando o fundo chegou, meio que sem avisar, meio trôpego até, lá ela encontrou um corredor, e do corredor encontrou um salão, e no salão encontrou uma chave de ouro que para sua decepção não abria baús, mas sim portas. Mas, diferente do que possam imaginar, essa chave abria todas as portas. Ora essa, e agora? Como decidir que rumo tomar, qual porta revelaria qual destino, qual futuro?
Ah, essa Alice imprudente! Quis porque quis beber da garrafa do desconhecido e se inebriou, mesmo sabendo que não haveria antídoto que lhe resolvesse! Mesmo com a garrafa quebrada, com lascas e cacos a cortar-lhe as mãos, os lábios, o juízo, a alma – ainda assim ansiava por dela sorver novamente. E seus efeitos mediatos e imediatos era fazer com que seu coração crescesse e diminuísse, que sua alma se expandisse e encolhesse, nunca sem dor, nunca sem mágoa, nunca sem alegria, nunca sem esperança.
E, em sua tagarelice, se ouvia a tecer recomendações para que não sofresse, pois “em geral dava conselhos muito bons para si mesma (embora nunca os seguisse)”…
E da porta que escolheu, na jornada em que se meteu, no jardim que desbravava, encontrou abrigo sob um belo cogumelo, onde, ensimesmado, pairava lânguida e senhora de si, fumando seu narguilé, uma lagarta azul. E, não há de se saber como, mas ela sabia, aquela lagarta detinha todo o conhecimento do mundo que ela precisava. Todas as respostas a todas as perguntas estavam com ela, com essa lagarta-bruxa, que sabia ser sua amiga, que exalava mística sapiência. E que não estava só. E, num mundo que para qualquer outro seria de uma realidade atordoante, exceto para as Alices, que sabem que o impossível é apenas uma questão de ponto de vista, pela primeira vez esta Alice duvidou de seus sentidos!
Pois, incorpóreos, na fumaça do narguilé, Gandalf, Yoda e Dumbledore pairavam, numa muda conversa com a lagarta. Todos bruxos, todos poderosos, todos mortos como sua própria magia.
Desconcertada, assustada e, sabe-se lá o porquê, com uma certa raiva por não poder ter a atenção toda para si perante aqueles gigantescos vultos, sentindo-se pequena (e nem fôra por causa da beberagem), deu meia-volta e resolveu afastar-se dali. No meio àquela fumaça e vultos que se dissipavam, lágrimas no rosto, firmou seu passo.
“Volte!” chamou a Lagarta. “Tenho uma coisa importante para dizer!”
Isso parecia promissor, sem dúvida; Alice se virou e voltou.
“Controle-se”, disse a Lagarta.
“Isso é tudo?” quis saber Alice, engolindo a raiva o melhor que podia.
Mas o silêncio e o vazio foram suas únicas respostas.
E tudo que Alice queria era saber que caminho tomar. Sabia que caminho queria, era o que a levava de volta onde esteve, mas não aguentava mais seu coração e sua alma a esticar e encolher, como borracha prestes a arrebentar. E, às vezes, de fato se sentia arrebentada. E então, do nada, um sorriso lhe sorriu. E, por trás dele, um gato, o Gato de Cheshire. Perguntou-lhe:
“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”
“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.
“Não me importa muito para onde”, disse Alice.
“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.
“Contanto que eu chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação.
“Oh, isso você certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante”.
Mas, apesar da pouca idade, Alice já carregava um cansaço de séculos… Ainda assim o Gato lhe apontou algumas direções, dizendo que tipo de gente encontraria por ali: todos loucos!
“Mas não quero me meter com gente louca”, Alice observou.
“Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca”.
“Como sabe que sou louca?” perguntou Alice.
“Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou não teria vindo parar aqui”.
E assim, tomou seu rumo. E o Chapeleiro foi quem encontrou. Talvez o mais louco entre os loucos daquelas paragens. E era justamente a última pessoa que precisava encontrar. E era justamente a primeira pessoa que desejava encontrar. Pois esse Chapeleiro alquímico, super-herói de meia pataca, tinha justamente o poder de destilar aquela estranha beberagem que estava arrasando com Alice. E seu silêncio é o que mais comprovava sua loucura, deixando Alice e sua tagarelice a mercê de um destino incerto. “Renda-se” disse ela. “Fale comigo, fale qualquer coisa, mas fale! A vida se nos passa e não há suficiente tempo!”
“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, disse o Chapeleiro, “falaria dele com mais respeito.”
E ela pensou naquela frase enigmática (mas talvez nem tanto), olhou para aqueles olhos juvenis, velhos como estrelas, para seu sorriso de criança que acumulava uma experiência de eras, e entendeu que não havia o que entender.
Louco, louco, louco.
E que também a estava deixando louca.
Melhor enfrentar o Jaguadarte.
Não sabia como, mas sabia. O Jaguadarte, imortal, com garras e bocarra, olhos de fogo e riso louco (por que afinal tudo tem que ser louco na vida de Alice?), ferível apenas pela Espada Vorpal – que ela não tinha – era o destino a que se prestava, era sua sina. Ali estaria o descanso que precisava: esquecer, esquecer e esquecer…
E finalmente ao encontrá-lo, sentado na esquina, sob a árvore Tamtam, ao fitar aqueles olhos, ao vislumbrar aquele sorriso, finalmente compreendeu: ele era ele. Um era o outro. Seu maior louco era também seu pior inimigo, eis que a levava às raias da loucura!
E lembrou-se das palavras da Duquesa: “Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria parecido a eles ser de outra maneira”.
Já havia começado pelo começo e prosseguido até chegar ao fim. Sem dúvida era hora de parar.
Melhor ser normal, que sofrer.
E (Neo entenderia) em busca de um espelho se deu sua nova jornada.
E em sua pressa de se ver livre, tentou repelir todos aqueles pensamentos que lhe atormentavam, como quem repele mosquitos numa noite de calor, e se viu deitada no sofá, a cabeça no colo de Dinah, sua menina, que afastava delicadamente alguns insetos que esvoaçavam por perto de seu rosto.
“Acorde, Alice querida!”, disse-lhe. “Mas que sono comprido você dormiu!”
“Ah, tive um sonho tão curioso!”
E, tentando recapitular, ficou ali sentada, os olhos fechados e quase acreditou estar de volta a seu momento no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade… E tudo que ela queria, agora que adulta, era conservar aquele mesmo coração simples e amoroso de sua infância, reencontrar todas as alegrias simples de criança, sempre pronta para se doar mas também exigente em receber.
“E como foi seu sonho, bem?”
E com a certeza de que esse sonho, de que aqueles momentos somente a ela pertenciam, limitou-se a responder:
“Não tenho a menor ideia…”