Um relato sincero de um confinamento em família durante a pandemia
Antonio Prata
“Algum momento em janeiro – Li num jornal sobre um vírus na China. Que viagem se preocuparem com um vírus na China. As pessoas morrem de dengue no Brasil e a imprensa preocupada com moléstia de morcego na Cochinchina?
15 de março – Duas semanas sem sair de casa. Minha irmã conseguiu um esquema de compra de álcool em gel 70% na dark-web. Ela comprou 100 litros para mim. A ex-namorada do meu primo é irmã de um traficante de cocaína, mísseis terra-ar e animais silvestres que me conseguiu 10 máscaras N-95 em troca do nosso Honda Fit, mais seis parcelas de R$ 2.000,00. Minha mulher ficou um pouco ressabiada com minha atitude intempestiva, mas foi convencida de que é melhor estar vivo sem carro do que morto com carro.
15 de março – Tem álcool em gel e máscara pra vender nas lojas Americanas a R$ 9,99 o litro e R$ 20,00 a dúzia. Frete grátis. Minha mulher ameaçou sair de casa. Eu disse que ela não podia sair de casa por causa da quarentena. Dividimos a casa. Eu fico quarentenado no lavabo, ela e as crianças no resto do apartamento. Ainda acho que saiu barato.
01 de abril – O traficante devolveu meu Honda Fit! Mentira: 1º de abril! (Sei que é estúpido tentar enganar a mim mesmo no primeiro de abril. Coisas da quarentena. No lavabo.).
20 de abril – Minha mulher teve dificuldades para abrir um pote de palmito. Pediu ajuda. Negociei bem: em troca, eu poderia usar o resto da casa. Sorte que minha mulher ama palmito mais do que me odeia. Vitória!
23 de abril – As crianças não aguentam mais ficar fechadas no apartamento. Liberamos Netflix o dia inteiro. Liberamos sorvete o dia inteiro. Banho só aos domingos. O único ponto em que conseguimos não transigir foi sobre fumarem cigarro e beberem uísque antes do meio-dia. Isso não. Eles têm seis e cinco anos, precisam de regras.
26 de maio – Começaram as aulas em casa, com apostilas e lives por hang-out. Ao contrário do que eu pensava, não é só conectar e deixá-los ali. Tem que ficar do lado o tempo todo ajudando. Buscando régua. Buscando tesoura. Buscando “botões de diferentes cores”. Buscando “barbante ou outro tipo de linha”. Ensinando como põe e tira do mudo. Explicando que caxorro não é com x. Reconectando quando cai. Não consigo mais trabalhar. Nem comer. Nem dormir.
27 de maio – Eu e a minha mulher decidimos acabar com essa história de homeschooling. (Adaptando aquela piada do cunhado: se homeschooling fosse bom, não tinha “choo” no meio). Caso eu morra e este diário venha a público: Pedro, Bel, Paula, cunhado e cunhadas queridos, amo vocês. É só uma piada pra mim mesmo no meu diário. Coisas da quarentena.
3 de junho – Meus filhos se revoltaram por não ter aula. Liberamos sorvete e Netflix desde o café da manhã e cigarro e uísque depois das dez. Insistimos para que não fumem na cama nem na cabana da Peppa, pelo risco de incêndio.
187 de junho – Sim. Cento e oitenta e sete de junho. Os dias não passam. As semanas não passam. Estamos presos em 2020. #diadamarmotafeelings.
Julho. Acho – Tomei todo o uísque das crianças. Peguei a máquina de fazer barba e cortei o meu cabelo e o delas. Liguei pra uma ex-namorada da quinta série, chorando. Vomitei em cima do quebra-cabeças de 2000 peças da Patrulha Canina que minha mulher e as crianças estavam terminando de montar. Tuitei contra a #foicedesaopaulo e a #globolixo e só lembrei que eu trabalhava para a Folha e a Globo quando ligaram de lá para me demitir. De volta pro lavabo. Rezando para que saia logo a vacina. Ou para que ainda haja na despensa algum pote de palmito.”