A melhor Justificativa de Lei de todos os tempos

Sim, eu sei que sou exagerado, mas fazer o quê?

Mas antes deixe-me explicar aos “não iniciados” o o porquê desse título.

Acontece que todo Projeto de Lei que é encaminhado por um Prefeito (Poder Executivo) para uma Câmara Municipal (Poder Legislativo) obrigatoriamente deve estar acompanhado de um texto explicando a proposta e/ou expondo as razões pelas quais essa lei seria necessária ou conveniente. Esse texto é chamado de “Exposição de Motivos”, mas também é conhecido como “Justificativa” ou então simplesmente “Mensagem”.

Pois bem.

Como hoje, Primeiro de Abril – e não é mentira! -, faz 56 anos do Golpe Militar no Brasil (sarcasticamente chamado de “A Redentora” por Stanislaw Ponte Preta em sua obra FEBEAPÁ1) acabei lembrando desse causo lá da Prefeitura de Jacareí…

Acontece que o Paço Municipal, prédio onde encontra-se instalada a Prefeitura da cidade, tinha a denominação de “Palácio Presidente Castello Branco”, inclusive com um busto do distinto bem do lado de sua entrada principal – uma “homenagem” criada sabe-se lá por quem em prol do Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente da época da ditadura e sob a batuta do qual teve gênese o período de torturas às quais eram submetidos aqueles que ousassem erguer sua voz contra a repressão.

Obviamente que nos tempos atuais seria um absurdo manter essa denominação, haja vista que não coaduna com um estado democrático de direito qualquer tipo de apologia a qualquer tipo de torturador, o que somente seria característico de pessoas mal-informadas, autoritárias, alheias quanto à nossa própria história, que fantasiam ou não têm o pé na realidade, eis que ignorantes enquanto…

Ôpa!

Desculpem aí. Eu se perdi.

Bão, acontece que inconformado com essa situação, o Prefeito de então2 resolveu não só remover o malfadado busto da frente do prédio como também enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei que viria a se tornar a Lei Municipal nº 5.861, de 23 de maio de 2014, com apenas três artigos:

Art. 1º O prédio onde está instalada a sede do governo municipal de Jacareí, atualmente denominado “Palácio Presidente Castello Branco”, passa a denominar-se PAÇO DA CIDADANIA.

Art. 2º As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de dotação orçamentária própria, suplementada se necessário.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Entretanto era na Exposição de Motivos, esta com três laudas, que encontrava-se a melhor justificativa que eu jamais tinha visto, uma verdadeira poesia histórica num texto permeado com trechos de músicas, uma pérola jurídica que reproduzo a seguir, na íntegra.

Há 50 anos, uma das páginas mais nefastas da história do Brasil começava a ser escrita. O dia 1º de abril de 1964 marcou o início de uma longa noite que acabou por durar 21 anos, uma noite de trevas que ficou tristemente marcada por uma série de abusos autoritários, crimes, torturas, prisões, carreiras interrompidas e centenas (milhares?) de vidas ceifadas.

Esta longa noite deixou sequelas físicas e psicológicas que não podem ficar impunes – e, muito menos, comemoradas e celebradas. Mas hoje, “apesar de você, que inventou esse estado e inventou de inventar toda a escuridão”, vivemos dias em que vemos “o dia raiar sem lhe pedir licença”, vemos “o jardim florescer, qual você não queria” [1]. Pudemos, com o início desse novo dia, sonhar com “a volta do irmão do Henfil”, ainda que ao custo de dolorosas e incontáveis lágrimas de “Marias e Clarices no solo do Brasil” [2].

Que toda a história seja desvendada e estudada, é nosso dever moral – seja em memória e justiça dos que foram torturados e mortos, seja “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, como bem disse dom Paulo Evaristo Arns, um dos responsáveis pelo projeto “Brasil: Nunca Mais”, que, clandestinamente, gerou uma farta e importante documentação sobre a história da ditadura militar e suas vítimas.

Aquela longa noite de repressão política, de cassação de direitos fundamentais, de privação de liberdades teve importantes protagonistas, civis e militares. Enquanto a maioria daqueles atuou intensamente para que o dia voltasse a raiar, grande parte destes foi responsável pelas arbitrariedades desumanas cometidas durante a ditadura. E tivemos, como primeiro presidente do governo militar, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, o 26º presidente do Brasil, de 1964 a 1967.

Sucederam Castelo Branco outros militares: Costa e Silva (1967 a 1969), a Junta Governativa provisória (1969), Médici (1969 a 1974) – este, o “homenageado” por Chico Buarque em “Apesar de você” –, Geisel (1974 a 1979) e João Baptista Figueiredo (1979 a 1985), que deu início ao processo de reabertura política. Sob o comando deles, o aparelho repressivo governamental fez pelo menos 475 vítimas, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – o número de mortos e desaparecidos, porém, pode ser incrivelmente maior.

Não foram todos os militares, naturalmente, cúmplices do golpe – assim como vários setores da sociedade civil apoiaram a “revolução”, que nada teve de revolucionária. Aqui mesmo no Vale do Paraíba registramos resistências, como o general-de-brigada do Exército Euryale de Jesus Zerbini. Em 1964 ele era comandante do Exército em Caçapava e tentou resistir ao golpe, encabeçando o grupo legalista que rumou ao Rio de Janeiro para enfrentar as tropas favoráveis aos generais Olímpio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes. Mas, a caminho do Rio de Janeiro, a adesão ao golpe por parte dos generais se multiplicou, e Zerbini acabou isolado – não houve outra alternativa a não ser entregar-se.

Há 30 anos, neste mesmo mês de abril, o grande comício da Candelária, no Rio de Janeiro, marcava o início do movimento Diretas Já! Dias depois, em São Paulo, a maior manifestação pública da história do Brasil reuniu 1,5 milhão de pessoas em uma passeata que saiu da Praça da Sé até o Vale do Anhangabaú – o Diretas Já! mostrava toda sua força para redimir o passado e a ditadura, resgatando o espírito democrático que ficara emudecido por décadas.

Até a abertura definitiva, o processo foi longo — em 1979 um dos maiores símbolos da ditadura foi, enfim, derrubado, com a revogação do Ato Institucional número 5, o AI-5. Em 1988, finalmente, o Brasil ganhava sua nova Constituição: “no presente a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais – o que há algum tempo era jovem novo, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer” [3]. A poesia bruta dos “anos de chumbo” voltava a florir, e a esperança ganhava força e alegria com os novos ares: “pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto: eu tô voltando. Põe meia dúzia de Brahma pra gelar, muda a roupa de cama: eu tô voltando. Quero te abraçar, pode se perfumar porque eu tô voltando”, cantava Chico Buarque [4], saudando os exilados que forçosamente tiveram que deixar o país.

De todo esse processo, ficamos com a certeza de que “celebrarmos” nomes dos presidentes militares é a maior injustiça que cometemos para com a nossa própria história – e principalmente para com as vítimas da ditadura. Hoje, quando podemos assistir “a manhã renascer e esbanjar poesia”, não há como dar quaisquer chances para que os nomes da ditadura sejam homenageados.

Sem revisionismos e sem qualquer sentimento de vingança, hoje podemos “cobrar, com juros, todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro”. Que nestes 50 anos do golpe, portanto, festejemos a democracia tão duramente conquistada e deixemos, aos presidentes militares que personificaram a ditadura, espaço única e exclusivamente nos livros de história. Em Jacareí, que o nome da sede da Prefeitura Municipal, “Palácio Presidente Castello Branco”, fique fazendo parte apenas desse passado sombrio, e que possamos celebrar e comemorar um novo nome para o prédio do Executivo Municipal, o novo “Paço Municipal da Cidadania”.

[1] “Apesar de você”, de Chico Buarque de Hollanda, 1978
[2] “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, 1979
[3] “Velha roupa colorida”, de Belchior, 1976
[4] “Tô voltando”, composição de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, 1979

1 FEBEAPÁ = Festival de Besteiras que Assola o Pais. Mais do mesmo neste link aqui.

2 O Prefeito de então, com quem tive a honra de trabalhar, era o Hamilton Ribeiro Mota, do PT. Infelizmente seu sucessor, Izaías José de Santana, do PSDB, mandou recolocar o busto de volta… Mais do mesmo neste link aqui.

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