IV – Luz no fim do túnel
Um pouco após nossa saída resolvemos dar algum alimento para os dois pequerruchos que estavam conosco. Como todo Inferno que se preze, o Parque ficava no térreo (ou melhor, abaixo do nível do térreo), enquanto que a praça de alimentação ficava no último piso. E dá-lhe escada rolante.
Aliás, se o Jean falasse e alguém lhe perguntasse o que ele mais gostou no passeio, tenho certeza que diria: “escada”. Bastava ver um degrauzinho subindo ou descendo que lá ia ele, lépido e faceiro, em direção à escada rolante.
Após um chá gelado e uns pãezinhos de queijo, resolvi participar ao nobre colega o fato de que eu simplesmente NÃO estava com a chave do carro.
– O QUÊ???? Mas é um Jamanta, mesmo!
O pior de tudo é ter que ouvir isso calado. Mas mostrei-lhe o lado bom: ao menos poderíamos fumar um cigarro do lado de fora enquanto esperávamos. Não, eu não tinha arranjado fogo, fósforo, um par de pedras, nem nada que pudesse acendê-lo. Mas havia uma banca de jornais ali perto.
– Por gentileza, quanto é esse isqueirinho?
– Dois e noventa. Senhor.
Dois e noventa. DOIS E NOVENTA! Um mísero isqueiro que mal custaria um real num boteco’s bar qualquer e talvez nem chegasse a cinquenta centavos nos camelôs de alguma calçada. E o caboclo tinha o despropósito de querer cobrar dois e noventa, quase trêrreal por aquela coisinha fajuta. Ora, tenha a santa paciência!
– E aí, arranjou fogo?
– NÃO.
– Mas, mas, mas, mas…
– Mas nada. Quando der eu dou um jeito de acender esses cigarros nem que tenha que esfregar dois pauzinhos! JEAN, SAI DA ESCADA!!!
E corre a pegar o tranqueirinha.
Bem, usando de toda nossa capacidade sherlockiana pudemos deduzir que estávamos num shopping. E, certamente, todo shopping daquele porte deveria ter uma charutaria, um hipermercado, ou algo do gênero. O jeito era procurar.
Andar após andar, volta após volta, caminhada após caminhada – inclusive tendo a certeza absoluta de que já havia passado por aquela mesma samambaia umas duas vezes antes – eis que meu pequenino cochilou em meu ombro. O jeito agora era parar um pouco pra descansar. Sentamo-nos num banco de madeira, bem em frente a uma loja com a “última” moda feminina. Não demorou muito, o filhote do Evandro também dormiu.
Com a convivência diária (diuturna, eu diria), Evandro e eu desenvolvemos um sistema de conversa um tanto quanto peculiar. Mais ou menos como os três sobrinhos do Pato Donald, ou os dois sobrinhos do Mickey (por que nessas estórias todos são sobrinhos?), onde um completa a idéia do outro. De vez em quando começamos uma conversa, que quase poderia ser um monólogo por expressar um único raciocínio, se não fosse o fato de que ambos contribuímos para o desenvolvimento das idéias. Num resumo bem apertado, o papo foi mais ou menos esse:
– I-NA-CRE-DI-TÁ-VEL!
– Pois é.
– Quem diria?
– Nós dois.
– Aqui.
– Sentados num banco de um shopping.
– Que não tem nada a ver com a gente.
– Que se frise: NADA.
– Cansados.
– Exaustos.
– Com nossos filhos.
– No colo.
– Dormindo.
– De frente para uma loja de moda feminina.
– Que nem roupas bonitas tem.
– No meio de uma tarde de sábado.
– Sem ter fumado um cigarro sequer.
– Nenhunzinho.
– ZERO de nicotina no organismo.
– Nem álccol.
– Totalmente sóbrios.
– Ninguém vai acreditar.
– Ninguém.
Apesar disso, nossa amiga Milena costuma dizer que nossa personalidade, quando juntos, estaria mais para os irmãos gambás da Era do Gelo 2…
Não demorou muito e as crianças acordaram. Como eu já havia dito, o tempo corre de uma maneira diferente quando se visita outras dimensões, ou seja, mal eram seis da tarde. Passamos a visitar uma ou outra loja, paramos um pouco mais numa livraria, mas continuamos a malfadada procura. De repente, não mais que de repente, passa um sujeito com um carrinho de um hipermercado!
Encaramo-nos com um sorriso e um brilho no olhar! Nem que fosse pra comprar um pacote inteiro de fósforos, desta vez conseguiríamos algo! Afinal, a falta de nicotina já estava atingindo níveis alarmantes em nosso organismo… Pergunta daqui, pergunta dali, fica no térreo. E lá fomos nós. Pela escada rolante, é lógico.
– Ali, ali, ali! – gritava um pululante Evandro, com seu filho no colo. Beleza. Pelo sim, pelo não, resolvi dar uma volta pelo outro lado pra ver se havia alguma charutaria. Combinamos de nos encontrar em cinco minutos, na porta do hipermercado.
Mal havia dado dez passos e quem encontrei? Todo o resto da caravana! Bem, quase. Dona Patroa, Andréa e as crianças estavam bem ali, à minha frente. Mas faltava o Paulo. Ao que parece ela até já havia validado o cartão de estacionamento, mas o Paulo não encontrou o próprio cartão e foi fazer uma busca e apreensão nas dependências do carro.
Deixei o Jean com elas e voltei correndo ao hipermercado, à procura do penúltimo membro desgarrado da caravana.
– Jota! Você não vai acreditar, estão dando um vinhozinho muito bom aqui de amostra grátis! Vamos…
– Não vamos nada! Encontrei o resto do povo!
– O quê? Não acredito!
– Sério. Vem comigo. Elas estão ali, bem próximo da porta.
Com um misto de alegria e satisfação, nos reunimos. Foi quando percebemos o quão próximo da porta do shopping estávamos, defronte a um imenso ponto de táxi. Deixamos as crianças com elas e combinamos que iríamos apenas fumar um cigarro e já voltávamos. Tudo bem. Saímos, emprestamos o fogo de um transeunte, e – finalmente – pudemos dar algumas tragadas.
A fumaça descia em suaves espirais por uma garganta ávida por sua presença. Finalmente relaxamos um pouco das desventuras do dia…
– E o Paulo?
– Parece que não encontrou o cartão de estacionamento. Foi procurar no carro. Aliás, segundo a Andréa, foi procurar o carro também!
Rimos um pouco. Falamos de amenidades. Mas de repente o Evandro leu um cartaz sobre meu ombro e ficou pálido.
– Adauto!
– Digue.
– Você sabe quantas vagas tem no estacionamento desse shopping?
– Não tenho nem idéia afastada…
– No-ve-cen-tos e oi-ten-ta.
– Tá. Quase mil vagas. Aproximadamente umas cinco mil pessoas, numa conta de carro de paulista. Fora quem tenha vindo de moto, ônibus, metrô, trem e a pé. E garanto que TODOS eles estavam lá no Parque hoje!
– Você não está entendendo a gravidade da situação!
– Cumassim?
– O Paulo. Você disse que ele não sabe onde está o carro! E ainda foi procurar!
– Puta-que-o-pariu! Você tem razão! Meia-noite vai ser cedo, assim. Vamos encontrar com o resto do povo!
E voltamos ao interior do shopping, no mesmo local onde havíamos deixado as meninas nos esperando juntamente com as crianças.
Mas elas já não estavam mais lá.
Continua…