O estímulo correto

EI!!!

Quando eu falo em “estímulo” não é nada disso que vocês estão pensando, não! Já disse por mais de uma vez que este aqui é um blog de família. Bem, quase.

Depois eu penso numa penitência pra vocês…

O negócio é que no jantar de ontem a Dona Patroa atacou com sua famosa (e altamente gaseificante) salada de beterraba. Simples e fácil de fazer – não requer prática e tampouco habilidade. Beterraba (dãããã…) e ovo, ambos cozidos, mais rodelas de cebola crua. Um tiquinho de maionese pra dar liga e sei lá mais quais ameaças de tempero pra completar. Muito saborosa. A salada, gente. Tá. Também.

Mas, então.

Ao final do jantar, cada qual acabando com seu cada seu, levanta-se o filhote do meio, que, praticamente, apenas “respirou” um pouco da comida, o filhote mais velho, nesse período de estirão também conhecido como “a draga”, a própria Dona Patroa e meu sogro, o honorável senhor Miyagi-san.

Ficamos eu e o caçula, com seus sete (quaji oitchu) profícuos aninhos.

Eu já tinha terminado e ele ajuntava os últimos grãozinhos de arroz com o garfo. A única fatia de beterraba que foi servida junto com sua refeição (sob veementes protestos) jazia solitária no ponto mais distante da galáxia de seu prato. Ele, meio que já aguardando o que lhe esperava, olha pra mim por sobre os óculos e com aquela carinha meio de receio, meio de quem tá tateando, pergunta:

– Que foi?…

– Olha, Jean. Nós dois sabemos que nós dois só sairemos desta mesa quando nós dois acabarmos TODA nossa refeição. Eu já acabei a minha. Você ainda está aí sem sequer puxar prosa com sua beterraba. E nem adianta me dizer que já está satisfeito. Deixa eu contar o que vai acontecer: eu só vou me levantar quando você tiver mastigado, engolido e comido ela todinha, mas você vai ficar enrolando e não vai comer, minha perna vai começar a doer (por causa da cirurgia) e eu vou ficar irritado, você vai ficar chateado porque eu estarei irritado, eu vou perder a paciência e vou acabar te colocando de castigo por você não comer a bendita beterraba, e, no final das contas, nós dois ficaremos tristes – você por causa do castigo e eu por ter perdido a paciência com você. Então que tal a gente pular todo esse imbróglio, você come logo essa beterraba e a gente resolve isso duma vez, hein?

– …

E é LÓGICO que ele ficou enrolando, empurrando a beterraba pra lá e pra cá. E é lógico que o pavio da minha paciência foi se extinguindo rapidinho (até porque ele tem a velocidade de queima daqueles pavios usados pelo Coyote quando tenta pegar o Papa-Léguas). E é lógico que minha perna, de fato, começou a doer.

– JEAN!!!

Pareceu que uma descarga elétrica desceu pelo corpo do petiz.

– Vê se pára de enrolar e come logo isso! Será possível?

Então ele começou, literalmente, a roer a beterraba cozida. Conhecendo-o como conheço, percebi de cara sua estratégia: se eu desse nova bronca ele diria que estava comendo, só que devagar; eu ficaria esperando mais um tempo, acabaria perdendo a paciência, sairia da mesa e, de quebra, não poderia lhe aplicar nenhum castigo, pois ele estava fazendo a parte dele; comigo fora do campo de visão bastaria se livrar do incômodo pedaço de beterraba. Perfeito! Um verdadeiro Moriarty das sobras do prato.

No tom mais calmo que consegui imprimir à minha voz, resolvi:

– Jean. Mudança de regras. O senhor tem UM MINUTO para comer esse minúsculo pedaço de beterraba. Se você não tiver mastigado, engolido e comido ela todinha antes desse minuto acabar, você ficará, vejamos, até a próxima segunda-feira sem sequer chegar perto de qualquer tipo de jogo, seja no computador ou na televisão, certo? Bem, vamos lá: cinquenta e cinco… cinquenta… quarenta e cinco…

Com a contagem regressiva em andamento e aparentemente derrotado em sua estratégia, ele puxou a tigela de feijão jogou um pouco do caldinho sobre a beterraba, olhou para o relógio e levou-a à boca numa única garfada, mastigando vigorosamente e engolindo duma vez só aquele verdadeiro pomo da discórdia.

Isso em cinquenta e cinco segundos cravados.

Ah… Nada como o estímulo correto, não é mesmo?

Vivendo e aprendendo a jogar


E eis que no “Dia de Ano” (que era como minha bisa costumava chamar o primeiro dia do Ano Novo) estávamos todos em um tradicional almoço de família. A da Dona Patroa. Ou seja, aquele furdúncio organizado encontrado em 99,9% das famílias, com todos sentados ao longo das mesas reunidas do lado de fora da casa, uma patota fazendo churrasco no fundo, a criançada nos jogos, uma turma na cozinha, rodinhas aqui e ali trocando idéias sobre os mais variados assuntos.

E lá na ponta da mesa, reunidos num silêncio até que razoável, meus três filhotes (sete, dez e doze anos) e mais um garotinho num compenetrado jogo de cartas.

E não é que vai um rapagão – creio que namorado de uma das primas – até lá pra puxar conversa?

– E aí? O que é que vocês estão jogando?

Silêncio.

Meio que constrangido por não receber resposta alguma, ainda resolveu ficar ali por mais alguns instantes para tentar entender que raio de jogo era aquele.

Mas não tinha jeito. O caçulinha, daquele jeito descompromissado dele, TINHA que falar. Sem se mexer ou sequer tirar os olhos das cartas, numa calma digna dum profissional do pôquer, disse:

– Bem, ELES estão jogando trinca. Já EU, como não sei jogar, estou apenas descartando aleatoriamente

O rapaz afastou-se da criançada, pegou um refrigerante e veio para nossa roda.

– Pô! O que é que estão dando pra essa criançada hoje em dia, hein? Eu acho que, na minha vida, só vim a usar a palavra “aleatoriamente” quando tinha uns quinze anos… Aliás, acho também que só vim a entender o significado dela lá pelos vinte!

Lugar de criança é na Rua

Mais um ótimo texto do sempre lúcido Jarbas, que, mais uma vez, nos leva à reflexão da dicotomia existente entre o mundo em que vivemos e o mundo que queremos…

Em especial para os nossos filhos!

Sete da manhã. Num bairro nobre de São Paulo, três seguranças de terno preto cuidam da entrada de uma escola tradicional. No interior do prédio, dois outros homens de terno preto fazem parte da paisagem. Todo o perímetro escolar é cercado por muros altos. Esse aparato de segurança é comum em nas escolas privadas para filhos da elite paulistana. Mas, medidas para proteger alunos não estão ausentes em escolas públicas. Quase todas elas possuem muros altos, portões de ferro e outros elementos que indicam preocupação com os perigos de uma cidade violenta.

Crescem, ano a ano, medidas de segurança nas escolas. Cada vez mais, estamos presenciando a concretização da escola fortaleza. Educadores, formadores de opinião, pais e políticos apóiam movimentos para “tirar as crianças da rua”. E concordam com o que diz o bordão de uma campanha que circulou muito tempo pelos meios de comunicação: “lugar de criança é na escola”.

Quase ninguém se pergunta qual é a mensagem que a escola fortaleza passa para as crianças. A maioria das pessoas vê os cuidados de segurança nas instituições educacionais como necessidade.

Há muito tempo Francesco Tonucci chama a atenção para os males da escola fortaleza. Ele mostra que a escola é um local de re-elaboração da experiência. E de onde vem a experiência? Vem da vida em ambientes onde as crianças podem inventar, brincar, explorar o espaço, circular livremente sem a vigilância de adultos. Em nosso mundo urbano, a experiência deve acontecer na cidade, nos espaços públicos.

A proposta do educador italiano exclui a escola fortaleza. Ela sugere caminhos completamente diferentes dos que vemos hoje no campo da educação. Para que as crianças se eduquem bem é preciso que utilizem o tecido urbano como local de convivência.

As idéias de Tonucci deram origem a um projeto chamado “cidade da criança”. Em municípios que aceitam tal projeto, crianças formam conselhos para mostrar a cidade que desejam. Nessas cidades, as crianças querem, por exemplo, que a circulação de pessoas pelas ruas tenha prioridade sobre a circulação de automóveis. Querem jogar bola na rua. Querem brincar em qualquer espaço urbano que desafie sua imaginação. Querem ter liberdade de ir e vir sem proteção e vigilância de adultos. Não querem playgrounds, querem a cidade.

A escola fortaleza e a cidade das crianças são duas propostas antagônicas. A primeira aceita a cidade hostil. A segunda propõe uma ação política e educacional que exige humanização dos espaços urbanos. A primeira entende que a escola é o local preferencial de aprendizagem. A segunda entende a aprendizagem no espaço urbano como matéria prima para que a escola faça sentido.

Infelizmente estamos aperfeiçoando a escola fortaleza e deixando que o tecido urbano apodreça cada vez mais. Achamos que lugar de criança é na escola. Mas, caso pensemos numa educação mais viva, é preciso garantir às crianças oportunidade de se aventurar pela cidade. É preciso ter consciência de que lugar de criança é na rua.

Cidade das crianças

Outra lá do sempre lúcido Boteco Escola:

Aqui está um dos desenhos geniais de FRATO, o alter ego cartunista do educador italiano Francesco Tonucci. Uma das ideias de Tonucci é a de que a rua precisa se converter num local de vivência dos cidadãos. E criança, para o educador italiano é um cidadão com direitos de ter uma cidade onde possa passear, brincar, ser respeitado.

Estamos caminhando em direção contrária à indicada por Tonucci. Estamos encantados com a escola fortaleza, onde nossos filhos estarão em segurança o dia todo. Ao mesmo tempo em que elevamos física e simbolicamente os muros escolares, deixamos que as ruas se convertam, cada vez mais, em terra de ninguém, espaços pensados exclusivamente para facilitar circulação de carros. Nada de sair dos veículos-armaduras (quem pode os tem blindados). Andar na rua é arriscado. E como esta não é considerada espaço de convivência e encontros humanos, a ela atribuímos características do mal.

Nos jornais, nas conversas informais, nos congressos de educação, todo mundo aplaude medidas para tirar as crianças da rua. Ninguém se preocupa em fazer das ruas local de jogar conversa fora, brincar, encontrar amigos, inventar novos mundos, bater perna sem medo de ser atropelado, conviver.

Tonucci apresenta para nós um desafio político sério. Elevar muros das escolas é um paliativo. Instituições escolares não são destino final da maioria das pessoas. Boa parte da vida é vivida fora da escola. E as crianças não aprenderão a viver no mundo, confinadas em espaços fechados, protegidas por seguranças de terno preto e por docentes que lhes dispensam um afeto remunerado pelo estado ou pelos donos de escola.