Além da vida

Desde pequeno ele sempre quis realidades diferentes para sua vida. Queria, sobretudo, ser feliz. Mas sabia, não só por convicção como também por experiência de outrem, que realidades somente surgem após um longo e quase sempre árduo caminho.

Foi assim, almejando essas realidades, que começou a cultivar desejos e sonhos.

Era uma plantação linda: desejos das mais variadas formas, cores e tons. Alguns mais perfumados que outros, outros mais consistentes que uns. Mas desejos, por mais que crescessem depressa e rápido chegassem ao ponto de colheita, ainda assim não têm o condão de se tornar uma sólida realidade. São efêmeros e passageiros, esses desejos. Uma verdadeira realidade normalmente é fruto de um bem cultivado sonho.

E, naqueles seus campos existenciais, bem ao fundo, vislumbrava-se o bosque de sonhos que, desde sempre, vinha cultivando. Alguns mais consistentes que outros, outros mais enraizados que alguns. Mas sonhos são de crescimento lento e devem ser muito bem cuidados, acalentados. Deixe um sonho de lado, esqueça-o por algum tempo e provavelmente ele murchará por pura e simples falta de atenção. Não se tornará uma realidade e, muitas vezes, jamais voltará a brotar de novo.

E, a cada dia que passava, ele olhava para esse bosque com esperança…

Mas tinha seu dia a dia, seus afazeres, e, mais que todo o restante, suas responsabilidades… RES-PON-SA-BI-LI-DA-DES! Palavra complicada que nos traz sentimentos ambíguos, tanto implicando nos felizes resultados de um trabalho bem feito quanto nos levando a uma amarga sensação de ceticismo perante tudo e perante todos. E ceticismo é uma praga que se multiplica rapidamente.

E, esquecido que estava de seu bosque de sonhos, tendo deixado de lado sua plantação de desejos, não percebeu aquela nuvem de ceticismo que se avolumava, zumbindo, preenchendo os vãos de esperança, avidamente devorando seus campos, consumindo tudo aquilo que vinha acalentando e que, sem sequer perceber, acabou deixando de lado…

Quando finalmente, num intervalo indesejado entre uma responsabilidade e outra, decidiu dar atenção aos seus próprios campos existenciais que havia largado ao léu, surpreendeu-se com toda aquelas plagas vazias, com a erosão que invadiu aquela outrora terra fértil, única lembrança deixada pra trás por todo aquele ceticismo que sequer percebeu surgir.

Desolado, mas ainda no firme propósito de ter realidades em sua vida, de ser feliz, passou então a criar expectativas.

E expectativa é um bicho curioso, pois nasce e cresce solto, aqui e ali, ciscando as ranhuras de nossas memórias, às vezes vinculadas a alguém, às vezes do nada. E as expectativas que criava cresciam em tamanho e número. Mas, daí a se tornarem realidades, havia uma distância muito longa.

E ele, que já não fôra capaz de cuidar de uma bela plantação e de um frondoso bosque, que demandavam apenas de alguma atenção, que se dirá então com relação a essa criação de expectativas, que requerem vigília constante para que não sucumbam ou, pior, para que não se devorem umas às outras (pois expectativas, dizem os especialistas, são antropofágicas e as maiores sempre acabam devorando as menores).

E, pior, uma expectativa mal cuidada pode nem sequer vir a se tornar uma minguada realidade, mas certamente pode se transformar numa forte desilusão!

E, ocupado que sempre estava, com foco em suas responsabilidades (olha ela aí de novo…), uma a uma apenas percebia suas expectativas sucumbirem.

Até que nada mais sobrou.

E nos campos de sua própria existência quase mais área nenhuma restava, eis que em estado de desolação por sua própria falta de atenção.

Desejos ao pó…

Sonhos putrefatos…

Expectativas em decomposição…

E, aqui e ali, algumas gordas e fétidas desilusões chafurdavam naquela lama existencial… Sempre com algum ceticismo sobrevoando os campos, em busca de algum mínimo vestígio de esperança…

E, olhando de si para si, pela talvez primeira vez depois de tanto tempo, naquele restinho dos campos que intactos ainda lhe restava, descobriu um pequenino espaço cercado que nunca sequer tinha reparado que existia. Um pequenino jardim, protegido por vigorosas rochas de confiança, fé, paz, bem querer e outras mais da mesma natureza. Ali, bem no meio de um vistoso gramado de esperança, à parte do mundo devastado que ele mesmo deixara para si, rodeadas por alguns sonhos que sequer lembrava da existência, crescendo em algumas colunas de certeza, permanecia uma única e vigorosa roseira de amor.

Há quanto tempo estaria ali?

Como nasceu, floresceu e se manteve forte sem que jamais tivesse tomado nenhum cuidado com ela?

Por que não foi afetada como todo o resto que praticamente arruinou os campos de sua existência?

E, agora mais velho e mais sábio, acabou por perceber que nada disso importava. Não se questiona o imponderável! Era um dádiva. Estava ali – como, aliás, sempre estivera – com perfumadas rosas com amor de todas as matizes, prontas para serem colhidas. Independentemente das realidades que pairassem no mundo lá fora, quer tivessem sido criadas por ele ou não, à margem de seus desejos, sonhos, expectativas ou o que quer que fosse. Tudo que precisava era simplesmente ter prestado um pouco mais de atenção em si próprio. Ou, ao menos, que não tivesse dado tanta atenção fora de si.

E com o que lhe resta do campos de sua existência, despreocupado com o passado – que já foi, que já não pode mais lhe afetar – foi ao lado dessa roseira, desfrutando de todo esse amor que ela teria para lhe proporcionar, que pôde sorver com felicidade até a última gota do regato de vida que ainda o alimentava e o mantinha vivo.

E no seu último suspiro, renasceu.

E deparou-se com novos campos a serem explorados!

Mas desta vez fez diferente: tratou de, antes de mais nada, localizar todo o amor necessário para, desta vez, pautar sua vida da maneira certa desde o início.

E todo o restante seria apenas consequência…

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Minha Casa

Minha casa não existe. Talvez já tenha existido em algum lugar de minha memória, quando eu era jovem e crédulo o suficiente para fazer planos, mesmo daquelas coisas que eu sabia que jamais viriam a se realizar.

Mas não desisti de minha casa.

Ainda que eu jamais venha a conhecê-la. Ou construí-la.

Minha casa será num terreno amplo – algo como uma chácara – mas não tão grande que se possa descuidar. Será cercada não por muros, mas por cercas – de madeira, bambu ou qualquer outra coisa do gênero. Serão cercas baixas o suficiente para se pular de uma só toada ou mesmo de se encostar para jogar fora um bom proseio com o vizinho.

Arame farpado, jamais. Ainda carrego no rosto a cicatriz do desinfeliz encontro com um desses…

Não terá portões, mas terá uma porteira. Perto o suficiente da entrada da casa para que se possa reconhecer o amigo que lhe bate à porta, mas longe o suficiente para ignorar quem não se queira receber. E da porteira até a soleira, árvores de ambos os lados. Árvores de sombra. Grandes o bastante para formar um túnel de frescor ao se adentrar, mas baixas o suficiente para que as crianças possam nelas subir e fazer suas estrepolias.

E será daquelas casas com três ou quatro degraus para subir, com varandas de todos os lados. Amplas varandas, para as festas, os amigos ou simplesmente para descanso numa tarde quente. Cadeiras de vime, almofadas e sofás descombinados espalhados aos quatro cantos. Afinal o conforto é mais importante. E mesinhas. Mesinhas de centro, altas, baixas, várias delas. Prontas para servir de apoio a um bom livro, alguma revista, uma cerveja bem gelada, um cinzeiro, uma taça de vinho ou mesmo um uísque. Caubói ou não.

O assoalho terá que ser de madeira, sempre bem encerada para permitir que as crianças (filhos, netos, visitas – não importa) possam se arrastar umas às outras em tapetes ou pedaços de carpete improvisados. Terá o pé direito alto, dando a sensação de espaço, para sempre me lembrar que uma casa não deve confinar seu morador, mas sim lhe dar espaço para poder viajar sem sair do lugar.

Terá muitos quartos espalhados de ambos os lados do amplo corredor que cortará a casa de ponta a ponta – todos eles com mais de uma janela. E serão janelas altas, de duas folhas, como aquelas antigas casas de fazenda. Os moradores e visitantes poderão sempre acordar com o frescor da manhã e abrir as janelas de par em par, deixando se espalhar pelo recinto um ar puro que renove as energias. Janelas na altura exata de se apoiar ou mesmo de se sentar, recostado, para chupar uma laranja enquanto se aprecia o por do sol.

Sim, é óbvio que as janelas não terão grades.

E na minha casa não haverá uma sala de jantar ou sala de estar – apenas uma sala de tamanho condizente com um aparelho de TV de bom porte, pois não consigo imaginar minha vida sem uns bons filmes para assistir, sozinho ou acompanhado. Sempre com pipoca. De preferência doce por baixo, salgada por cima – e com muita manteiga…

E a cozinha – ah, a cozinha! – será uma grande cozinha, com uma grande mesa, com mais lugares do que se possa preencher. Afinal toda casa tem seu coração, e é na cozinha que ele fica. Ali riremos, brindaremos, cearemos e nos divertiremos. Não basta dividir o pão, há que se dividir o suor e a alegria de fazê-lo. E ali, enquanto todos ajudam e riem e bebericam e provam deste ou daquele prato, levando um eventual tapinha na mão por ter provado aquilo que “ainda não está pronto”, comungaremos a felicidade da amizade e da família e todos esses bons fluidos ficarão indelevelmente impregnados nas paredes da casa para todo o sempre…

E, do lado de fora, junto da cozinha, junto da janela, haverá uma churrasqueira. Os amigos e amigas vegetarianos que me perdoem, mas não sou evoluído o suficiente para deixar de apreciar uma boa carne bem preparada, após horas sob meus cuidados, já antevendo o prazer da degustação.

E na minha casa haverá um pomar! Sim, um pomar com vários tipos de árvores com frutos das mais diversas espécies. Para se colher do pé e aproveitar ali mesmo. Para criançada correr e brincar de pique, para os adultos se recostarem e descansarem, para todos se saciarem. E, entre a casa e o pomar, uma horta bem cuidada, com os legumes, temperos, chás e seja mais lá o que for importante para dar sabor à vida.

E flores!

Sim, flores no chão, nos vasos, recostadas e penduradas. Samambaias, orquídeas, flores de maio e todas outras que servirão para dar prazer aos sentidos, para que se possa ver, para que se possa cheirar, para que se possa tocar.

Ainda do lado de fora, à parte da casa, um bom galpão que será uma garagem. Garagem de colocar veículos, máquinas, ferramentas, de pendurar bicicletas e de guardar todas aquelas quinquilharias que toda casa deve ter. Pois todo mundo no mundo tem alguma coisa guardada num canto, que arrasta uma mudança após a outra, mas nunca – nunca! – joga fora… Será um canto de refúgio para um conserto no carro, um reparo num móvel, para a feitura de um artesanato. E terá todas as ferramentas necessárias para tudo isso.

E, falando em refúgio, minha casa terá aquele que será meu refúgio predileto: um quarto com prateleiras até o teto repletas de todos os livros e revistas que tenho e que ainda vou ter. Aqueles que ainda não li e aqueles que vou reler. Será meu canto de repouso, de meditação, um lugar para que eu possa olhar para trás, para a frente e para o presente e poder escrever sobre tudo aquilo que fervilha em minha mente.

E minha casa terá tudo isso e muito mais: terá personalidade, terá alegria em seus cômodos, terá esperança em suas paredes, terá um tiquinho de tristeza também – não muito – pois faz parte da vida passar por tudo isso. E minha casa terá vida, uma vida feita para cuidar de quem nela habita, de refletir seus humores e dar-lhe conforto e segurança.

E é nessa casa que passarei o resto de meus dias com minha amada, onde compartilharemos as noites frias e os dias quentes do porvir, onde contarei em conto e prosa como foi minha passagem desta vez por esta vida, até que eu mesmo me vá.

E então, somente então, minha casa deixará de ser minha…

Solidário à solidão

Em 2011 fui apresentado a um livro de Rilke – “Cartas a um jovem poeta” – que contém uma passagem bastante interessante. Antes de mais nada, para que compreendam um pouco melhor essa história, esse livro é uma coletânea da correspondência trocada no período de 1903 a 1908 entre o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) e um jovem chamado Franz Xaver Kappus, com dicas e conselhos do mestre ao aspirante a poeta… Isso é de uma época em que as missivas eram longas, bem escritas e levavam dias, às vezes até mesmo semanas – ou mais – para que chegassem ao seu destinatário. E o curioso é que foram publicadas somente as cartas de Rilke, mas como ele se esmerava tanto em suas respostas acaba sendo até mesmo desnecessário conhecer o conteúdo das cartas que recebeu.

A passagem à qual me refiro é de uma carta de dezembro de 1903, quando o jovem poeta provavelmente deve ter se queixado da solidão que sentia com a proximidade do Natal. Rilke, escritor experiente, lhe falou acerca de determinados momentos em que as pessoas sentem uma grande solidão, muito difícil de suportar, e que seriam até mesmo capazes de trocar essa solidão por um relacionamento qualquer, por mais banal ou indigno que fosse, somente pela aparência de uma mínima concordância com o próximo… E então desfiou:

“Mas isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres.”

Por mais de uma vez eu já disse por aqui o quanto é importante saber gostar de ficar sozinho. Mesmo em meio a uma multidão, no dia-a-dia de casa, até mesmo no trabalho. Cultivar esse tipo de solidão não quer necessariamente dizer que se está alheio ao mundo que o cerca, nem mesmo busca nenhuma conotação de tristeza, sequer significa que se é solitário! É que é bom ficar sozinho. É bom conversar com as próprias ideias. Assim como uma criança, como sabiamente ensinou Rilke. Vejam que poderosa compreensão: “ser solitário como se era quando criança”. E penso na minha infância, antes mesmo de começar a frequentar a escola – pois somente com sete anos de idade é que entrávamos direto no primeiro ano; nada de creche, infantil I, II, III, o escambau! – o meu mundo era o quintal de casa. Meus pais moravam numa avenida movimentada (aliás é onde vivem até hoje) de modo que sair para rua não era uma opção, ambos trabalhavam o dia inteirinho, meus irmãos mais velhos já eram adolescentes e não tinham tempo para um fedelho como eu, e assim o que me restava era inventar estórias, coisas e brinquedos naquele quintal gigantesco – aliás, exatamente o mesmo que, hoje, acho minúsculo…

Mas com o tempo, começando a participar do “mundo lá fora”, fui esquecendo esse prazer dessa solidão. Pois era, sim, prazerosa. Cada vez mais me envolvendo com pessoas, estudos, trabalhos, clientes, situações – e em especial tendo conhecido o quão cativante era a companhia do sexo feminino – houve um momento em que eu não mais conhecia, nem queria, ter que sentir nenhum tipo de solidão. Equivocadamente, para mim, qualquer tipo de solidão significava ser solitário. Quão ingênuo!

E então o ano de 2011 chegou, lançando minha vida numa tortuosa corredeira natural, consequência de todas as cascatas e quedas dos anos anteriores, com um correnteza alucinante e que, curiosamente, não fez com que essa mesma vida passasse mais rápido – antes o contrário, ela se tornou mais lenta e perceptível. Muito provavelmente pelo fato de ter saído totalmente da rotina e da estagnação em que me encontrava, pude apreender melhor o mundo ao meu redor. E, apesar da canoagem selvagem a que me lancei, ora raspando o fundo de meu coração em afiadas pedras de desapontamento, ora arremessando as laterais de minh’alma em sólidos barrancos de incompreensão e, às vezes, quase perdendo totalmente o controle da canoa de minha vida em redemoinhos de confusão sentimental, ainda assim encontrei meu caminho, meu fluxo, minha estabilidade. E isso somente foi possível graças aos bolsões de solidão que esse rio chamado tempo me proporcionou, entre um apuro e outro.

Foram nessas águas mais lentas, longe da imperiosa necessidade de me envolver em coisas que pareciam importantes e grandiosas (ao menos para minha própria existência), sem precisar me preocupar ou sequer entender desses afazeres, é que pude realmente voltar meu olhar para mim mesmo, para aquela danificada canoa de minha vida, e que pude perceber o quão caótico é o fluxo das águas do tempo, finalmente compreendendo que esse era o segredo: não há que se combater o caos, há que se deixar levar! Todos os desafios lançados por aquela absurda correnteza somente me magoavam porque eram resistidos, porque eram combatidos. Apenas lá, nos bolsões da solidão, tal qual criança voltada a si mesma, é que pude me reencontrar e consequentemente encontrar o caminho para águas mais mansas de viver.

Com sequelas, é óbvio. Não se passa por tudo isso sem se transformar. Aquele eu que já fui um dia deu lugar a um outro eu que sou agora. E nessa canoa de minha vida materializou-se um baú para trancafiar tudo aquilo que nubla a percepção. Somente assim o horizonte se tornou mais claro. O que não implica necessariamente em dizer que eu tenha me tornado uma pessoa melhor ou pior. Talvez, no mínimo, mais intrigante…

Enfim, toda essa metáfora foi para deixar claro que, tal qual como num outro texto que li recentemente, “para ser um bom par é preciso ser um bom ímpar”. Ou seja, não há que se procurar em outra pessoa o que está dentro de si. É preciso ter a capacidade de se sentir feliz sozinho, de descobrir seu próprio valor – o que, em absoluto, significa viver só. Apenas que é bom, ao menos de quando em quando, estar só. Curtir isso. Permitir isso. Viver isso. Somente assim, sem cobranças, sem imposições, de acordo com o próprio sacrossanto livre arbítrio com que somos dotados, é que se torna possível se deixar levar pelo caótico fluxo do tempo, que sempre vai nos apresentar novas armadilhas aqui e ali, mas que com leveza, cuidando bem de si, torna-se possível contornar, desviar ou – por que não? – até mesmo enfrentar. Mas com a segurança de que não existem obrigações. Não existem amarrações ou, sequer, a necessidade de ancorar em alguma margem. Não existe destino certo. Só existe o navegar rio adiante.

E não é justamente para isso que essa nossa canoa da vida foi criada?

Para navegar?…

What’s in a kiss?

– Eu nunca beijei um homem de barba.

Olhou para aquela figurinha sapeca, que parecia estar o desafiando, e, com sábias e profundas palavras, concluiu:

– Cê tá me zoando…

– Não, é sério. Fico pensando se é diferente, sei lá, como é que é?

– Olha, sou obrigado a lhe dizer: eu também NUNCA beijei um homem de barba. Aliás, nem mesmo um homem, sequer.

Risos. Risos nervosos. De ambos.

– Tá…

Ele, bem mais velho. A barba, outrora negra, já começando a ficar grisalha. Separado, advogado, sem escritório, sem clientes, mas prestando uma consultoria ora aqui, ora ali (quase um nômade), sempre em busca de uma vida financeira estável. Ela, praticamente uma menina. Morena, cabelo curto e grandes óculos. Ah, e sim: sapeca. Brincalhona. Sempre um encanto estar em sua presença. Ouvir suas conversas, suas dificuldades, seus problemas na faculdade, o difícil relacionamento com um namorado ainda imaturo, seus sonhos, seus anseios, suas viagens. Viagens de devaneios e de pensamentos. Encantadora, sempre.

Ali mesmo, no restaurante, resolveu aceitar o desafio. Se é que era um.

– Você sabe que só tem um jeito de resolver isso, né?

Com um ligeiro aperto nos olhos e um meio sorriso nos lábios ela vagarosamente meneou a cabeça.

Sentindo que aquele era o momento, ele não teve dúvidas. Simplesmente, de sopetão, puxou a cadeira dela para perto de si – com ela junto, por óbvio – e, com calma e segurança, reclinou-se sobre aquele rosto lindo, que, com olhos arregalados, meio que prendendo a respiração, meio que não podendo acreditar, também simplesmente deixou-se levar.

E ela sentiu aquela mão firme em sua nuca, que não a deixava escapar, mesmo que quisesse. E não queria! Seu coração batia forte e descompassado dentro do peito, enquanto que um ligeiro tremor e calor a envolvia nas mais íntimas e estranhas partes de seu corpo. Deixou-se levar. Os dedos dele entrelaçavam-se em seus cabelos, por pura emoção o ar começava a lhe faltar, mas, de jeito nenhum, ela queria parar. Deixou-se levar. Aproximou ainda mais seu corpo sedento, sentiu a outra mão em sua cintura e, com carinho, um carinho que jamais sabia que seria capaz de sentir, com ambas as mãos segurou seu rosto, acariciando aquela macia barba, enquanto mais e mais aprofundava naquele beijo tão intenso e cheio de desejo. Deixou-se levar.

Não sabem quanto tempo permaneceram assim, pois segundos poderiam parecer anos tal a fúria com que se entregaram um ao outro. Mas anos seriam poucos para esquecer a intensidade daquele momento… Lentamente se afastaram um do outro. Ele a olhava com aquele olhar calmo e profundo que lhe era característico, agora também com um meio sorriso pairando nos lábios, enquanto que ela sentia-se arregalar os olhos ainda mais.

– Meu… Como você beija bem!

– Caramba! Obrigado… Mas, olha só, na verdade um beijo – um beijo MESMO – é como uma dança bem dançada de um casal: enquanto que um conduz, a outra se deixa conduzir. Se aquele que conduz não sabe o que faz, nem sequer dança teremos; já se aquela que se deixa conduzir não acompanha seu parceiro, ainda que possa parecer uma dança, ela fica desencontrada. Deixou de ser uma dança. Um beijo, um verdadeiro beijo, também é assim. Como uma dança. Então esse “mérito” não pode ficar apenas de um lado, porque se um não acerta, dois não fazem… E, só pra constar, você também me acompanha maravilhosamente bem…

Em tempo: Antes que vocês, hereges, candinhas e outras criaturas de pouca fé neste que vos tecla pensem que isso foi comigo, já lhes garanto: não foi. Mas, em verdade, foi a maneira fantasiosa que encontrei de (re)contar esse pequeno causo somente para chegar nessa última frase, a qual, dia desses, ouvi de um grande amigo num dos botecos da vida e que particularmente achei de uma verve poética no mínimo fodástica! 😀

Aproveitem e ouçam a música…

Namore um cara que lê

Namore um cara que se orgulha mais da biblioteca que tem, que do carro, das roupas ou do penteado. Ele também tem e se interessa por essas coisas, mas sabe que não é isso que vai torná-lo interessante aos seus olhos. Namore um cara que tenha uma pilha de quatro ou doze livros na cabeceira e que lembre com carinho do nome da professora que o ensinou as primeiras letras. Namore um cara que tem uma lista de livros que quer ler e que ainda possui aquele mesmo cartão de biblioteca desde que tinha doze anos – mesmo que, hoje, prefira ter seus próprios livros.

Encontre um cara que lê. Não é difícil descobrir: ele é aquele que tem a fala mansa e os olhos inquietos. Ele é aquele que sempre entra numa livraria, ainda que só para olhar um bocadinho. Você vai reconhecê-lo na figura do sujeito que olha com carinho e ternura para as prateleiras da livraria, o único que surta (ainda que em silêncio) quando encontra o livro que quer. Você está vendo um cara estranho cheirar as páginas de um livro antigo em um sebo? Esse é o leitor. Nunca resiste a cheirar as páginas, especialmente quando ficaram amarelas.

Ele é o cara que não tem medo de se sentar sozinho num café, num bar, num restaurante. Mas, se você olhar bem, ele nunca está sozinho: tem sempre um livro por perto. O rosto pode ser sério, mas é só porque está absorto, provavelmente perdido em um mundo criado pelo autor. Sente-se na mesa ao lado, estique o olho para enxergar a capa, sorria de leve. É bem fácil saber sobre o que conversar.

Pergunte se ele está gostando do livro. Descubra que outros livros que ele já leu. Fale sobre sobre alguns novos lançamentos e de novas traduções que andam saindo por aí. Mas entenda que se ele quiser começar a lhe explicar como deve ser compreendida alguma obra complexa, isso é só para parecer inteligente. Neste caso, fuja. Um cara que realmente lê não precisa ser chato, muito menos arrogante. Caso contrário, pergunte o que mais ele está lendo – e tenha paciência para escutar, a resposta nunca é assim tão fácil…

É fácil namorar um cara que lê. Ofereça livros no aniversário dele, no Natal e em comemorações de namoro. E até mesmo no Dia das Crianças – por que não? Afinal, um cara que lê jamais abandona aquela pontinha de vontade de entrar num mundo de fantasia. Ofereça poesia, crônica, contos, histórias. Deixe que ele saiba que você entende que as palavras são amor. Normalmente, por tudo que já leu, ele vai entender um pouco melhor o seu universo. Entenda que ele sabe a diferença entre os livros e a realidade mas tenha certeza que ele vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco como seu livro favorito. E se ele conseguir não será por sua causa, mas porque ele é assim. Não sabe ser de outro jeito.

Por isso seja você mesma, você mesmíssima, porque ele sabe que são as complicações, os poréns, os porquês, que fazem uma grande heroína. Um cara que lê pode vir a enxergar em você todas as personagens de todos os romances.

E você também ganhará um ou outro livro de presente. No seu aniversário ou no Dia dos Namorados ou numa terça-feira qualquer. Não existe um padrão. E já fique sabendo que o mais importante não é bem o livro em si, mas o que ele quis dizer quando escolheu justo aquele. Um cara que lê não dá um livro por acaso. E escreve dedicatórias. Sempre.

Um cara que lê não tem pressa, sabe que as pessoas aprendem com os anos, que qualquer um dos grandes autores tem parágrafos ruins, que alguns começaram a escrever já velhos, que outros melhoram a cada romance, que sempre existirão aqueles famosos que podem soar sem sentido e que para chegar ao final de algumas obras é necessária muita paciência. Os caras que leem sabem que as pessoas, tal como os personagens, evoluem.

Ao conviver com um cara que lê você corre o risco de encontrá-lo acordado às duas da manhã, irrequieto e desconfiado, talvez até andando de um lado para outro; pode procurar, pois certamente haverá algum livro aberto por perto. Prepare um café, deixe-lhe um beijo e tudo certo. Entenda que de vez em quando ele precisa de um tempo sozinho, mas não é porque quer fugir de você. Você pode perdê-lo por um par de horas, mas ele sempre vai voltar para você. E falará como se os personagens do livro fossem reais – até porque, durante algum tempo, são mesmo.

Ao namorar com um cara que lê, você vai sorrir tanto, terá tanto contentamento, que acabará por se perguntar por que é que o seu coração ainda não explodiu lá dentro do seu peito. Ele não só vai transformar sua vida numa história, como também vocês escreverão a história das suas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos mais estranhos ainda. Ele vai apresentar aos seus filhos os personagens de vários mundos de fantasias – provavelmente misturando-os todos. Não por não conhecer as histórias, mas só pelo prazer de arrancar um brilho dos olhos e um sorriso dos lábios dos pequeninos. E do seu, também. Vocês vão atravessar juntos os invernos de suas velhices, e ele recitará poemas enquanto, enrolados num cobertor, saboreiam um chocolate quente. Ou, talvez, chá.

Enfim, namore um cara que lê porque você merece. Merece um cara que pode lhe proporcionar uma vida mais colorida do que você possa imaginar. Por vezes com a força envolvente dos grandes romances e por vezes com a beleza singela dos melhores poemas. Mas se você quiser uma companhia superficial, uma coisinha só para quebrar o galho por um tempo, então talvez ele não seja a melhor escolha. Então talvez seja até melhor ficar sozinha. Mas se quiser o mundo e outros além, em especial aquela parte do “e eles viveram felizes para sempre”, não tenho dúvidas: namore um cara que lê.

Ou, melhor ainda, namore um cara que escreve.

Rosemary Urquico escreveu
“Namore uma garota que lê”;
Gabriela Ventura traduziu e adaptou;
Bruno Palma e Silva fez uma adaptação
para “Namore um cara que lê”;
e eu adaptei a adaptação do jeito que quis…

Cinéfilas Valtinescas

Essa é mais uma daquele excelente fotógrafo lambe-lambe (que odeia ser chamado assim), uma das pessoas mais foras de série que eu conheço. Para não expor sua verdadeira identidade vamos chamá-lo de Valtinho

É o único que com suas tiradas tem o poder de transformar um simples conversê de dia-a-dia num memorável proseio, dando sabor as olhos e um verdadeiro colírio para os ouvidos!

E eis que o parceiro de trabalho comenta que assistiu o filme Jurassic World numa, digamos, “cópia para avaliação perpétua” que não estava lá muito boa. E o caboclinho, todo solícito, já solta que também tem esse filme e, que se quisesse, poderia emprestar.

– Mas Valtinho, diga lá: essa cópia é dublada?

– Ih, cara, não. Ela é legendária!

– Ai! Tá bom, tá bom… Mas e você? Gostou do filme?

– Ah, eu não assisti tudo não mas pelo que eu vi na sinapse parece que é muito bom!

– Caramba, Valtinho!

– Aliás, dia desses assisti um filme muito bom também, das antigas. Aquele dos ventos ruivantes

– Cê tem certeza que era esse o nome?

– É sim! É aquele que tem aquela cena daquela moça que segura na mão a terra vermelha de Tara!

– Valtinho! Esse aí é outro filme! Esse é “E o vento levou”!

– Ih, cara! Será?…

A essa altura do campeonato já deu pra perceber que ele é um caso perdido…

Aliás, outro dia numa apresentação de todo o pessoal do trabalho, ainda teve outra do Valtinho, mas sem o Valtinho. Um por um lá foram eles dizer quem eram e o que faziam.

– Oi, eu sou o fulano e minha função é cuidar da área de jornalismo.

– Olá, eu sou o beltrano e minha função é cuidar da área de publicidade.

– Tudo bem? Eu sou o sicrano e minha função é cuidar das mídias digitais.

– Oi. Eu sou o peixano e minha função é cuidar do Valtinho

Tu-dum! Tsss…

A plateia vem abaixo e, rápido, cai o pano.

De si para si

Alexandre Zaballa Dias é geógrafo, funcionário do Tribunal de Justiça e trabalha com a Dona Patroa – não necessariamente nessa ordem de importância…

E não, ele não é o cara dessa foto aí de cima!

Dia desses ela me trouxe uma carta – na verdade, um par delas – que ele elaborou de si para si mesmo. Escrever uma carta para você mesmo no futuro é semelhante a uma cápsula do tempo: ficará arquivada, talvez escondida, aguardando seu eu do futuro recebê-la, talvez com mensagens de esperança, lembranças ou advertências sobre coisas importantes.

Da mesma forma, escrever uma carta para você mesmo no passado é uma forma de gerar reflexões importantes sobre sua própria vida, compreender melhor os rumos que o levaram até o dia (e a pessoa) de hoje e até mesmo inspirar outros indivíduos.

Mas, neste caso, o interessante não é só a carta que ele mandou para o amanhã, mas, também, que foi respondida!

Acompanhem com que leveza e objetividade ele desenvolve estes saborosos textos…

Caro Alexandre mais velho:

Aqui quem te escreve é o Alexandre de muitos anos atrás. O motivo desta mensagem é o seguinte: eu já sei o que quero ser quando crescer. Quero ser caminhoneiro. Amo viajar, contemplar as paisagens, ver a beleza que é o nosso país. A prova disso é que amo ir para a casa de nossa avó no Rio Grande do Sul, não durmo na viagem, sempre atento a tudo. Nossos irmãos são divertidíssimos, gostamos de brincar de tudo, às vezes brigamos, mas logo voltamos a brincar. Mudamos para esta cidade nova e na nova escola me apaixonei pela Fernanda, uma menina linda, quero muito namorar com ela e casar. Nossa mãe é muito brava, nos coloca para estudar a toda hora e fazer deveres de casa, como lavar louça, arrumar o quarto e varrer a casa. Detesto isso, acho que ela não me ama. Gosto muito de gibis, principalmente da Turma da Mônica. Nossos primos são muito legais, mas agora estamos em outra cidade, quase não os vejo. Nosso pai foi embora de casa, nunca mais o vi, tenho saudades.

É por isso que te escrevo, Alexandre-mais-velho. Para te esclarecer algumas coisas sobre o futuro. Em primeiro lugar, nunca deixe de ter um coração de criança, brincar com seus irmãos e primos, ler gibis da Mônica e sonhar. Envelheça parecido com nossos avós, que são super legais, faça coisas diferentes e seja muito feliz.

E, aqui, sua resposta!

Caro Alexandre mais novo:

É com muito desconforto que te escrevo essa mensagem. Para começar, só temos a nossa avó, mãe do nosso pai, os outros morreram. Dá pra acreditar? Sei que é uma surpresa, mas as pessoas morrem. Não adianta perguntar, não vou conseguir responder, mas as pessoas legais do mundo morrem. O fato é que não sou quem você esperava ser, não me tornei caminhoneiro. Aquela menina que você conheceu, a Fernanda, você foi apaixonado por ela até os 15 anos, um dia ela mudou (não sei para onde) e você nunca disse a ela o que sentia. Você se afastou da família do seu pai, passou 32 anos sem ver ninguém, acredita nisso? Dos nossos irmãos, cada um tomou um rumo e você só os encontra me ocasiões especiais. Sim, meu amiguinho, o tempo muda as pessoas. Você se casou e tem duas filhas, continua a ler gibis da Mônica, só que agora para elas – são maravilhosas! Sua mãe continua brava, mas agora você entende porque ela é assim. Apanhou muito dos pais que não queriam que ela estudasse. Ela, contrariando as expectativas, tem três graduações, pós, fala espanhol e está aprendendo inglês. Ela faz tudo isso com você porque te ama e quer o seu melhor. Por muito tempo você foi acomodado, não terminava nada que começava e ainda por cima carregou malas indesejadas como o rancor, ódio, frustração, não sabia perdoar. Você se separou, entrou em depressão, aí conheceu seu melhor amigo: Jesus.

Começou e terminou sua graduação, trabalha no Tribunal de Justiça em São José dos Campos, em um cartório maravilhoso, onde tem aprendido muito. Você agora tem sonhos palpáveis, você tem planos de crescer espiritualmente e financeiramente. Aprendeu que você só colhe o que planta, então você está semeando novas sementes. Não carrega mais pesos desnecessários e valoriza muito sua mãe, filhas e amigos.