( Publicado originalmente no e-zine CTRL-C nº 01, de novembro/99 )
ESCUTA TELEFÔNICA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
O DIREITO À INTERCEPTAÇÃO E A “INTERCEPTAÇÃO” DOS DIREITOS
Lenio Luiz Streck
Procurador de Justiça – RS
Doutor em Direito do Estado
1. A LEI NO CONTEXTO DA CRISE DO DIREITO E DAS INSTITUIÇÕES
Recentemente foi promulgada a Lei Federal n. 9.296, regulamentando a parte final do art. 5º, XII, da CF, instituindo a assim denominada “escuta telefônica”. À evidência, a nova Lei deve ser examinada com o máximo de cautela, mormente porque trata do estabelecimento de limites às liberdades e garantias individuais do cidadão, o que leva a seguinte indagação: em que medida pode o Estado ingressar na esfera da intimidade das pessoas? Quais os limites e qual o alcance dessa proporcionalidade estabelecida pela nova Lei?
Em face de tais questões e como premissa indispensável para o desenvolvimento destas reflexões, é necessário ressaltar, primeiramente, que o direito processual penal não deve ser, conforme bem lembra Hassemer, outra coisa senão direito constitucional aplicado; isto vale com mais ênfase, segundo ele, no tocante às medidas de força da investigação policial (1). Por isso, o debate sobre política criminal – e sobre a nova Lei da “escuta” – não deve ficar circunscrito à “impressão de que a solução do problema consiste em conferir às autoridades da segurança pública, de uma vez por todas, todos os meios e instrumentos necessários que sempre reivindicaram” (2), a fim de que possam “bem” combater a criminalidade.
Alerte-se, propedeuticamente, que, por estarmos cientes da precariedade do funcionamento de nossas instituições e não ser segredo o fato de que a crise do Direito é decorrência da crise estrutural da sociedade, a Lei 9.296 não deve ser vista como um bálsamo para aliviar o nosso pânico cotidiano. Esse pânico, não devemos esquecer, é também um pânico engendrado pelas elites, as quais, primeiro, criam o fantasma da criminalidade, para depois nos venderem a solução, mesmo que nesta esteja imbutida a violação de direitos fundamentais. Isso ocorre porque, segundo BOFF, citando L. MOSCATELLI (3), “a classe dominante consegue fazer esquecer que ela está assentada sobre uma violência originária, provocada por ela mesma. Encontra bodes expiatórios nos criminosos comuns. Daí a importância da vigilância, do controle e da repressão, com aparato e circunstância, sobre as populações periféricas ou marginais ao sistema.”
Não há dúvida que a Lei que autoriza a escuta telefônica aparece em um contexto no interior do qual o discurso sobre a lei e a ordem ganha força diariamente. No imaginário social, a repercussão do problema da criminalidade é superdimensionado e acaba por sustentar uma ideologia do repressivismo saneador representado por medidas de caráter meramente instrumentalizador(4). Há um pânico coletivo, surgido a partir da construção desse discurso. Dados mostram que 51,1% da população concorda com linchamentos; 77,6% concorda com blitz nas favelas; 53,7% concordam com a eliminação sumária de marginais pela policia; 43,8% concorda com os espancamentos e outros castigos aos presos; 75,7% é favorável ao aumentos das penas…(5) Ou seja, o discurso sobre o retorno ao autoritarismo repressivo ganha espaço dia a dia.
A violência do cotidiano, em especial a que ocorre nas grandes metrópoles do país, é um terreno fértil para a busca de soluções imediatistas. Na feliz observação de CERQUEIRA FILHO e NEDER(6), “Assistimos a população discursando sobre o tema, pronunciando-se na grande imprensa e nas pesquisas de opinião, exigindo a intensificação da repressão do Estado (colocar o Exército na rua) e a vigência do arbítrio (justiçamento de grupos de extermínio) para acabar com a violência e a insegurança. Assistimos nos horários nobres de uma televisão tão controlada pelo estado, as opiniões de populares, escolhidos aleatoriamente, postulando com clareza os argumentos do reforço das forças repressivas, numa sociedade já tão deprimida politicamente. Constatamos nesse processo, a eficácia dos setores dominantes da sociedade brasileira no sentido de construir sua hegemonia, tecida em torno deste debate, na medida em que todos os demais setores da sociedade se envolveram no clima criado em volta da referida questão da violência”. Por isso, não é difícil que ” a representação da idéia de violência e do aumento da criminalidade na sociedade brasileira ganha corações e mentes”(7). Com SODRÉ, pode-se dizer que esse processo se materializa graças aos meios de comunicação de massa, que são “os principais gestores do mito da catástrofe. Neles, a violência aparece como uma espécie de gênero catastrófico. A violência é um operador semiótico que permite hibridações ficcionais entre realidade e imaginário.”(8)
Tais observações se tornam absolutamente relevantes como auxílio à discussão acerca da crise do Direito e, em especial, do Direito Penal, das “criminologias” e das instituições encarregadas de combater a (essa) criminalidade. A relação/reação do establishment (com a) à criminalidade e ao discurso sobre a criminalidade – que é ao mesmo tempo instituído e instituinte – vem bem explicada por WINFRIED HASSEMER(9), para quem “há uma tendência do legislador em termos de política criminal moderna em utilizar uma reação simbólica, em adotar um Direito Penal simbólico. Quero dizer com isso que os peritos nessas questões sabem que os instrumentos utilizados não são aptos para lutar efetiva e eficientemente contra a criminalidade real. Isso quer dizer que os instrumentos utilizados pelo Direito Penal são ineptos para combater a realidade criminal. Por exemplo: aumentar as penas, não tem nenhum sentido empiricamente. O legislador – que sabe que a política adotada é ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado e que reage imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu chamo de reação simbólica, que, em razão de sua ineficácia, com o tempo a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma reação puramente simbólica, que acaba se refletindo no próprio direito penal como meio de controle social”.
O discurso criminológico de cunho oficialista (dominante no imaginário social e dos juristas), preocupado com os problemas de varejo, esquece os problemas do atacado de nossa sociedade. Nesse contexto, a criminologia de cunho oficialista, acobertada e (auto)sustentada na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches, além de não questionar a aparição social de comportamentos desviantes, impede uma reflexão acerca da reação da sociedade (oculta(da) ou aparente). No dizer de VERA ANDRADE(10), a aporia desse tipo de criminologia “consiste em que ela se declara como uma ciência causal-explicativa da criminalidade, exclui a reação social de seu objeto (centrando-se na ação criminal) quando é dela inteiramente dependente; ao mesmo tempo em que se apóia, aprioristicamente, numa noção ontológica da criminalidade”.
A instrumentalização dessa problemática vai ocorrer no âmbito da dogmática jurídica, que, à evidência, na lúcida visão de WARAT, não deixa de experimentar os efeitos do sentido comum teórico, que vem a ser, no campo do Direito, a fonte receptora de um imenso leque de fatores e variáveis surgidos do saber acumulado e da experiência que conformam as estruturas cognoscitivas e os raciocínios lógico-demonstrativos do homem de ciência. A dogmática jurídica considera possível descrever, sem nenhuma referência ideológica, a ordem legal, bastando, para tanto, de um método adequado. A dogmática jurídica, ao servir de instrumento para a interpretação/sistematização/aplicação do Direito, vai aparecer como um conjunto de técnicas de “fazer crer” com as quais os juristas conseguem produzir a linguagem oficial do Direito que se integra com significados tranquilizadores, representações que têm como efeito o de impedir uma problematização e uma reflexão mais aprofundada sobre nossa realidade sócio-política.(11)
Isto nos traz inquietações, na medida em que, desse modo, o Direito acaba por (re)produzir as relações sociais de uma sociedade tão díspar como a nossa. Salta aos olhos, pois, que a dogmática jurídica, mergulhada na crise de paradigma, é co-instituinte da crise social e, por decorrência, para ficar na especificidade do tema em discussão, do discurso criminológico. Como ocorre essa crise de paradigma? Em primeiro lugar, partindo da premissa de que um paradigma implica em uma teoria fundamental reconhecida pela comunidade científica como delimitadora de campos de investigação pertinentes a determinada disciplina (KUHN), é possível dizer que o que fornece o status científico de uma ciência vai depender não tanto das teses defendidas pelos manuais científicos, mas sim do consenso da comunidade científica em torno dessas teses, conforme muito bem ensina CELSO CAMPILONGO(12). Agregue-se a isso o dizer de ZULETA PUCEIRO, para quem a dogmática jurídica define e controla a ciência jurídica, indicando, com o poder que o consenso da comunidade científica lhe confere, não só as soluções para seus problemas tradicionais, mas, principalmente, os tipos de problemas que devem fazer parte de suas investigações. Daí que a dogmática jurídica é um nítido exemplo de paradigma. Diz mais, o mestre argentino, que a crise da ciência do Direito é um capítulo da crise mais ampla da racionalidade política que ocorre nas sociedades avançadas.(13)
Nesse diapasão, é certo que, conforme lembra CAMPILONGO(14), preparado para resolver questões interindividuais, mas nunca as coletivas(15), o direito oficial não alcança os setores mais desfavorecidos, a não ser com o braço longo (e pesado) do Direito Penal, sendo a marginalização jurídica a que foram condenados esses setores nada mais do que o subproduto de sua marginalização social e econômica. Daí que existem, assevera o mesmo autor, mudanças sociais, politicas e econômicas que, processadas em ritmo acelerado, tornam obsoletos os standars estruturais das abordagens formalistas.
Parece, pois, que a dogmática jurídica não se importa com o fato de que seus significados perdem, dia-a-dia, a necessária densidade semântica(16) (sócio-histórica). Com muita propriedade, ZULETA PUCEIRO nos auxilia na busca de respostas, acentuando que o que define a ciência do direito é sua primazia hegemônica no sistema de regras e definições estipulativas a partir das quais se podem pensar as realidades sociais. Isto explica a pretensão exclusivista do paradigma dogmático e suas resistências aos processos de mudanças internas e externas.(17) Nesse sentido, conforme CAMPILONGO, embora uma sociedade possua várias estruturas de autoridades, a teoria positivista supõe a completude hermética do ordenamento jurídico, o que reduz todas as estruturas de autoridade possíveis a uma só: a prescrita em lei. A realidade social é construída pelas normas, e estas, segundo os paradigmas científicos da dogmática, são moldadas pela vontade dos representantes do povo. Daí que, aduz, a crítica e a inovação, dentro de um sistema completo e sem contradições com o ordenamento normativo, são vistas como disfuncionais à estrutura de distribuição de autoridade.(18)
2. A LEI 9.269/96 E A SUA INTERPRETAÇÃO
É neste contexto – crise de paradigma do Direito, da dogmática jurídica e do discurso criminológico, que devemos permear a nossa discussão acerca da lei que institucionaliza a interceptação das comunicações telefônicas no Brasil. É esse contexto que deve nortear o nosso processo hermenêutico. Temos que refletir acerca das condições de possibilidades que temos para a realização de um discurso que evite essa “transparência” típica do discurso da dogmática jurídica. Ou seja, pode-se dizer, apropriando-nos das lições de Sercovich, que o discurso dogmático é transparente porque as sequências discursivas remetem diretamente à “realidade”, ocultando as condições de produção do sentido do discurso.(19) Daí que o discurso dogmático se transforma em uma imagem, na tentativa (ilusória) de expressar a realidade social de forma imediata. No fundo o discurso jurídico transforma-se em um “texto sem sujeito”, para usar a terminologia de PIERRE LEGENDRE.
O processo de produção de sentido não pode, pois, ser guardado sob um hermético segredo, como se sua “holding” fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e ocultadas, aparecem como se fossem feitas de um “não-lugar”, ou de um “lugar fundamental”. Por isso, a dogmática jurídica, ao elaborar um discurso interpretativo sobre uma norma, produz sentido, cujo efeito ideológico é, justamente, a negação de tê-lo feito.
Com tais advertências, fica claro que a lei em tela deve ser aplicada tendo em conta, primordialmente, os direitos fundamentais previstos na Lei Maior. A preocupação, assim, não é tanto com a lei, mas com o uso/interpretação que venha a ser dada à lei, até porque, abstratamente nada significa, sendo seu sentido atribuído dogmaticamente em um segundo momento. Por isso, já dentro do processo de produção de sentido(20), é preciso chamar a atenção para alguns pontos da lei:
I. As restrições à interceptação elencados no art. 2º merecem elogio. Com efeito, não cabe a “escuta”: (a) quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; (b) quando a prova puder ser feita por outros meios disponíveis, e (c) quando o fato investigado constituir infração punida apenas com detenção. Coerentemente, mais adiante, no art. 4º, exige a lei a comprovação da necessidade da interceptação para a apuração da infração.
II. Pela leitura do inciso III do art. 2º, depreende-se que, a não ser os delitos punidos no máximo com detenção, todos os demais poderão ser alcançados pela lei. Obviamente estão fora as contravenções penais e todos os delitos previstos em leis especiais cujas penas sejam de detenção, como alguns previstos no Código Militar.
Entretanto, cabe frisar que, restando dúvida sobre se determinada lei ou determinado delito está ou não sob o pálio da permissão da interceptação, a resposta deverá ser encontrada mediante uma interpretação teleológica da Lei 9.269/96. Isto porque seus fins se destinam ao combate da criminalidade sofisticada. Há que se compreender, pois, que a nova lei constitui-se em um instrumento destinado a enfrentar, com eficácia, primordialmente, a “pós-modernidade” criminal, representada por crimes do tipo “colarinho branco” etc. Se assim não se entender, chegaremos a (triste) conclusão de que, mais uma vez, se pode dizer que no Brasil la ley es como la serpiente; sólo pica al que está descalzo(21). Ou, o que todo mundo já sabe, que há leis feitas para quem aparece na Revista Caras e leis que são feitas para quem aparece no jornal Notícias Populares…
Dito de outro modo, é por tais questões, que é perfeitamente razoável afirmarmos que “o legislador”(22), ao excluir apenas os crimes ou infrações penais apenados no máximo com detenção do alcance da Lei, expressou seu desejo – ainda que tardio – de combater a macro-criminalidade, como a sonegação de impostos(23), a corrupção etc, e não, cinicamente, à criminalidade de bagatela ou, melhor dizendo, à criminalidade descalça!
Assim, quero crer que estamos autorizados a afirmar, em termos hermenêuticos – utilizando-nos de métodos interpretativos correntes na dogmática stricto sensu – que a intenção(24) do legislador foi a de estabelecer o princípio da proporcionalidade por via de lei ordinária visando o combate às ações ilícitas lato sensu, excepcionando apenas as infrações punidas com pena máxima de detenção, alcançando, ipso facto, as demais.
Conclusão nesse sentido exsurge, aliás, com clareza, a partir da leitura do caput do art. 2º em conjunto com o inciso III. Com efeito, não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer “qualquer das seguintes hipóteses”, sendo uma delas “quando o fato investigado constituir infração penal punida, com no máximo, pena de detenção”. Refere a Lei, pois, a fato investigado. Agregue-se a isso, ademais, que as três hipóteses vedatórias devem ser lidas de forma disjuntiva e não conjuntiva, o que se depreende da expressão “qualquer” contida no caput do citado art. 2º. Sem olvidar que, já no art. 1º, consta que “a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal…”. Em face de tais argumentos, e ousando discordar DE MIRABETE (25), não afastaria, desde já, a possibilidade da inclusão dos crimes de responsabilidade como passíveis de interceptação telefônica!
III. Surgirão dúvidas acerca do alcance das expressões “outros meios disponíveis” (art. 2º, II) e de quando a interceptação é “necessária” (art. 4º, caput). Creio que os conceitos exsurgirão de uma interpretação sistemática da lei imbricada com o devido sopesamento dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna.
Assim, v.g., no art. 4º diz a lei que o pedido de interceptação conterá a demonstração de que sua realização é necessária à apuração da infração. Quer me parecer que melhor seria se o legislador – para um melhor resguardo dos direitos fundamentais da intimidade e privacidade – tivesse usado a expressão indispensável.
Aliás, se, pelo inciso II do art. 2º não se admite interceptação quando “a prova puder ser feita por outros meios disponíveis”, fica claro que o uso da escuta somente poderá ser deferido por exceção absoluta, é dizer, quando for conditio sine qua non para a apuração da infração. Disso se deduz, sistematicamente, que a interpretação da palavra “necessária” deve ser restritiva, para que não ocorra o que ZAFFARONI chama de “generosidade”(26) nas autorizações judiciais de escuta.
No mesmo diapasão de “deferimento por exceção”, é aconselhável que se evite a interpretação extensiva da parte final do inciso II do art. 2º, isto porque “outros meios disponíveis” não são os que, materialmente, a autoridade policial tenha à sua disposição, mas sim, os meios legais-processuais. Caso contrário, a simples alegação da polícia de que “não tem outros meios disponíveis” (p. ex. falta de peritos, etc), já será bastante para o deferimento da escuta, o que, convenhamos, viria a solapar a lei e a Constituição.
IV. Coerentemente na linha da preservação dos direitos fundamentais, o art. 5º da Lei deve ser lido em consonância com o art. 4º, vez que, se o juiz precisa fundamentar a sua decisão, à evidência deverá moldá-la à contenção legislativa contida no que se entenda por “necessidade da interceptação para à apuração da infração”, que, repito, deve ser entendida na acepção de indispensável.
A exigência da fundamentação – além de advir do comando do art. 93, IX da CF – decorre do fato de que, com a aprovação da lei, ficou estabelecido o princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip no direito alemão e rasonableness no direito norte-americano) e suas condições de possibilidade no nosso ordenamento, em vista do norte representado pelo art. 5º, inciso LVI, que veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos. Ao juiz é que caberá, no caso concreto, dizer o que é razoável, confrontando o direito à intimidade – garantido pela Constituição – com o interesse público.(27)
Por isso não concordo, data venia, com a posição de ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ(28), segundo o qual “à falta de texto expresso, continuará a disputa doutrinário-jurisprudencial acerca da ilicitude do comportamento e do valor probatório da gravação assim obtida, havendo de vencer (…) a posição que se vale do critério da proporcionalidade oriundo do direito alemão, pelo qual, em situações excepcionais, deve prevalecer, na balança dos interesses em jogo, o valor da liberdade, em detrimento do valor da intimidade”. Penso que a proporcionalidade, em termos de interceptação telefônica, já foi feita pelo legislador ordinário, exatamente por delegação constitucional. Qualquer outra interceptação obtida fora do âmbito da lei que estabeleceu a proporcionalidade, será ilícita, a dizer, inconstitucional.
Daí ser possível afirmar, por exemplo, que a escuta telefônica de conversas entre presentes será absolutamente ilícita, pelo simples fato de que não foi incluída na proporcionalidade estabelecida pelo legislador federal. A proporcionalidade – que é numerus clausus – não poderá sofrer interpretação extensiva.
V. Preocupa, sobremodo, que somente à autoridade policial é conferida a possibilidade de executar a escuta, quando se sabe que o inquérito policial é peça dispensável e que não é vedado ao Ministério Público realizar investigações. Daí a pergunta: nos casos de corrupção de altas autoridades ou da própria polícia, ou ainda nos casos de sonegação fiscal, qual a razão de o legislador não ter conferido tal possibilidade também ao Ministério Público, ou – o que seria mais coerente – da possibilidade deste, como titular da ação penal, coordenar a interceptação?
Parece que demorará muito até que, em termos de eficaz combate à criminalidade – não de bagatela, mas da criminalidade “pós-moderna” – tenhamos mecanismos similares aos encontrados em países mais adiantados. Não é crível, p. ex., que em um caso de sonegação de impostos de enormes proporções sociais, o Ministério Público, que geralmente oferece a denúncia com base nos elementos fornecidos pelo fisco, tenha que depender, na busca de elementos para o cumprimento de seu munus, da condução da interceptação por parte da autoridade policial(29).
A incoerência da lei está justamente no fato de que, tanto a polícia como o Ministério Público podem requerer a realização da interceptação, mas só à polícia, cuja investigação, muitas vezes, não é indispensável ao oferecimento da denúncia, é conferido o poder de conduzí-la. Mesma preocupação vale para as hipóteses em que o Poder Judiciário (ou o Ministério Público) venha a investigar um dos seus membros. Ou seja, a previsão legislativa de que a condução da interceptação ficará a cargo da polícia só teria sentido se a investigação criminal fosse atividade privativa da autoridade policial, questão já resolvida de há muito pela doutrina e pela jurisprudência.
VI. No mesmo diapasão, registre-se a timidez (?) do legislador ao estabelecer que a autoridade policial, ao conduzir a interceptação, dará (apenas) ciência ao Ministério Público, o qual, “por generosidade” do legislador, poderá (sic) acompanhar a sua realização (art. 6º). Pelo que se pode depreender, embora o Ministério Público seja o destinatário da investigação, nada poderá determinar à autoridade policial… Tal paradoxo na Lei sob comento tem sua causa na ausência de regulamentação do controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da CF), que, passados oito anos desde a promulgação da Constituição, continua letra morta na Lei Maior.
VII. O que se pode concluir, no mínimo, é que a falta de ciência ao órgão do Ministério Público, em qualquer circunstância, gerará a nulidade do procedimento.
VIII. Finalmente, como ficam os dados colhidos por “escuta” e que digam respeito a terceiros? Não nos deve impressionar a previsão do art. 9º dando conta de que a gravação que não interessa à prova “será inutilizada em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada”. De que forma os terceiros, não envolvidos na apuração, cujos dados de sua intimidade tenham sido colhidos, saberão de sua existência? Não esqueçamos que o art. 1º, caput, diz que a interceptação corre em “segredo de justiça”. Parece que o legislador brasileiro ainda acredita na lenda segundo a qual “os meios de coerção cogitados atinjam apenas ‘o criminoso’, como se houvesse uma linha demarcatória para tais coerções, capaz de excluir os bons cidadãos dos ‘outros'”.(30)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por derradeiro, não devemos esquecer que o processo de interpretação e aplicação da lei sob comento deve, necessariamente, levar em conta o fato de que, como muito bem assinala MARIA LÚCIA KARAN, o vertiginoso desenvolvimento do progresso, com o simultâneo desequilíbrio econômico-social do capitalismo pós-industrial, a trazer a desmedida ampliação do poder do Estado de punir, encerra um interessante paradoxo, a curiosamente aproximar as formações sociais contemporâneas de suas ancestrais. A revolução científico-tecnológica convive e se identifica com antigas práticas: a interceptação de comunicações telefônicas, integrante da “grande escuta”, não está muito distante da sensação de vigilância de forças sobrenaturais que sustentou provas no processo penal de outras eras. Os avanços da ciência e da tecnologia acabam por se constituir no moderno meio de reconduzir o indivíduo ao controle de novos seres todo-poderosos, vigilantes e onipresentes – o Estado e seus agentes.(31)
Tudo se encaixa, pois, no contexto de um Estado que, de um lado, no plano econômico, embalado pelos ventos neoliberais, quer ser mínimo, e, por outro, quer o máximo em termos de controle da sociedade! Daí a advertência de HASSEMER, para quem o Estado investigador, com a desculpa do combate à criminalidade crescente, “invade a privacidade e a alma das pessoas”(32). Por tudo isso e pela relevância do tema – proporcionalidade entre o direito à intimidade/privacidade e o interesse público – o assunto requer uma série de cautelas.
Sem os devidos cuidados, o Estado investigador colonizará a nossa já tênue e devassada privacidade. Será um panóptico institucionalizado! Por isso, a necessária cautela. Afinal, estamos no Brasil, onde, na guerra contra o crime, quem (sempre) perde mais é a cidadania. Dai o acerto do jurista MARIO CHIAVARIO, para quem “o processo ideal é o que combate o crime e resguarda o cidadão”.
Notas:
1. FHASSEMER, WINFRIED. Três temas de direito penal. POA, Estudos MP n. 7, ESMP, p. 70.
2. Idem, p. 70.
3. BOFF, LEONARDO, A violência contra os oprimidos:seis tipos de análise. In Discursos sediciosos. Ano 1, n. 1. RJ, Relume-Dumará, 1996, p. 99.
4. Idem, idem.
5. Os dados são extraídos de pesquisa de Luciano Oliveira e Afonso Pereira sobre “A polícia na boca do povo e a percepção social do combate à violência”, realizada em recife em 1986. Apud Cappeler, op. cit.
6. CERQUEIRA FILHO, GISÁLIO e NEDER, GIZLENE. Brasil- Violência & conciliação no dia-a-dia. POA, Fabris, 1987, p. 60.
7. Idem.
8. SODRÉ, MUNIZ. A sedução dos fatos violentos. In Discursos sediciosos, op. cit., 211.
9. Ver HASSEMER, WINFRIED. Perspectivas de uma política criminal. In Três temas de direito penal. Porto Alegre, FESMP, 1993, p. 86.
10. Consultar ANDRADE, VERA R.P. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicas na ciência e no senso comum. Fpolis, Seqüência n. 30, UFSC, p. 34.
11. Ver, para tanto, WARAT, LUIS ALBERTO. Introdução geral ao Direito II. POA, Fabris, 1995, p. 37 e sges.
12. Ver CAMPILONGO, CELSO. Representação política e ordem jurídica:os dilemas da democracia liberal. São Paulo, 1982, p. 11 e segs.
13. Ver PUCEIRO, ENRIQUE ZULETA. in Teoria jurídica y crisis de legitimación. In Anuario de Filosofia Jurídica y Social. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1982, p. 289.
14. Consultar CAMPILONGO, op. cit, p. 12 e segs.
15. Basta ver a dificuldade com que os juristas e as instituições lidam com os novos movimentos sociais e os conflitos decorrentes da questão fundiária e urbana. O Direito, calcado no modelo liberal-individualista, trabalha (ainda) com a hipótese, p. ex, de Caio invadir a propriedade de Tício… O problema surge quando Caio e algumas milhares de pessoa invadem as terras de Tício! O final da história todos conhecem…
16. A expressão é retirada de SERCOVICH, A. El discurso, el psiquismo y el registro imaginário. Buenos Aires, Nueva Vision, 1977.
17. Ver PUCEIRO, op cit., p. 297.
18. Cfe. CAMPILONGO, op. cit., p. 16.
19. Consultar Sercovich, A. El discurso, el psiquismo y el registro imaginário. Buenos Aires, Nueva Vision, 1977.
20. No sentido utilizado por VERON, ELISEU. In A produção de sentido. SP, Cultrix, 1980.
21. A expressão é de DE LA TORRE, J. In Apuntes para una introdución filosófica al derecho. México, Editorial Jus, 1992.
22. Quando falo na figura do “legislador”, estou ciente da problemática relacionada ao “mito do legislador racional” e suas “treze características”, muito bem enfocadas – e ironizadas – por SANTIAGO NINO e FERRAZ JR. VER FERRAZ JR, TÉRCIO. Consultar, para tanto, FERRAZ JR, TÉRCIO SAMPAIO. Introdução ao estudo do direito. São Paulo, Atlas, 1989, p. 254/5.
23. Não se olvide que o mesmo “legislador”, recentemente, estabeleceu uma benesse, na forma de um “regalo natalino”, aos sonegadores de impostos, mediante a previsão, no art. 34 da Lei 9.249, de 25 de dezembro de 1995, de que o pagamento do tributo ou da contribuição social, antes do recebimento da denúncia, extingue a punibilidade. Para esse mesmo “legislador”, ocorrendo a hipótese de alguém furtar uma galinha, mesmo que a res furtiva seja devolvida, haverá, no máximo, uma diminuição da pena, forte no art. 16 do Código Penal. São, enfim, as teratologias do sistema…
24. A dita “intenção do legislador” – de uso corrente no âmbito da dogmática jurídica – é vista e utilizada, aqui, com as devidas (e necessárias) reservas, é dizer, em um contexto eminentemente argumentativo/crítico, visando impedir determinadas redefinições que certamente ocorrerão no âmbito da dogmática jurídica.
25. Cfe. MIRABETE, J.F. A interceptação das conversações telefônicas e os ilícitos penais. In Enfoque Jurídico, Ed. 01, ago/96, TRF, 1ª Região, p. 3). Segundo o autor, os crimes de responsabilidade não são alcançados pela Lei porque são submetidos à sanção do “impeachment”.
26. ZAFFARONI, EUGENIO R. Crime organizado:uma categorização frustrada. In Discursos sediciosos. Ano 1, n. 1. RJ, Relume, p. 61.
27. No direito brasileiro, ADALBERTO J. CAMARGO ARANHA chama o princípio da proporcionalidade de “interesse preponderante”. in Prova no Processo Penal, SP, Saraiva, 1976.
28. CRUZ, ROGÉRIO S. MACHADO. Breve análise da Lei 9.296/96. In Enfoque Jurídico. Edição 01.Ago 96, p. 6
29. Melhor seria que o legislador tivesse colocado na lei a condução concorrente da interceptação, exatamente pela peculiaridade de determinados delitos. Ou seja, embora em grande parte o trabalho da polícia seja indispensável – além de relevante – há casos em que o próprio Ministério Público procede (e tem procedido) com sucesso a investigação. Para tanto, existem, em todo o país, Promotorias Especializadas e Coordenadorias de Promotorias Criminais.
30. Cfe. HASSEMER, op. cit. p. 79.
31. KARAN, MARIA LÚCIA. Interceptação de comunicação telefônica: o Estado máximo, vigilante e onipresente. In Enfoque Jurídico, op. cit, p. 5.
32. Cfe. HASSEMER, op. cit, p. 50.