Superman – XII

Como passei minhas superférias de verão

Ali estava eu, em Cleveland, Ohio, numa grande exposição do Super-Homem, em 16 de junho de 1988. Apenas alguns meses antes, eu havia concordado em escrever e desenhar um novo título do Homem de Aço para o editor Mike Carlin. Acho que um dos motivos por eu ter aceito o projeto foi que me senti muito lisonjeado pela proposta. Quando Mike me ofereceu o trabalho, ele não estava pedindo a George Pérez, o artista, mas a George Pérez, o escritor. Considerando que, na época, eu só estava fazendo roteiros há um ano, foi muito gratificante pro meu ego. Talvez Mike estivesse contando com isso. Quando optei por também esboçar a série artisticamente, acho que superei suas expectativas. Presumo que, no fundo, todo quadrinista deseja conseguir pelo menos UMA chance de desenhar o Super-Homem. Agora tudo que Mike tinha a fazer era juntar todos os criadores num só lugar pra fazer a bola rolar. Aliás, esse era o motivo por que estávamos em Cleveland, pra discutir planos para o maior herói da DC e meu envolvimento com o personagem. Que lugar melhor para traçar o futuro do Homem de Aço do que a cidade em que ele nasceu? Que melhor ocasião que a celebração de seu 50º aniversário? Aquela noite decisiva em junho foi como um sonho que se tornou real para mim. Ali estávamos todos nós, no Restaurante Watermark, perto do cais. Sentado ao meu lado, estava um dos meus eternos ídolos do ramo, o homem que muitos consideram como O artista de Super-Homem… Curt Swan.

Fiquei tão emocionado com sua presença que quase esqueci o motivo de termos nos reunido ali, mas o Poderoso Mike logo me trouxe de volta à Terra. E em volta de nossa grande mesa redonda também estavam Jerry Ordway, Roger Stern, a esposa de Roger, Carmela Merlo, e o desenhista Kerry Gammill. Nós éramos o Supertime, chamados pra tocar a bola que John Byrne tinha nos passado. A missão: continuar a tradição cheia de emoções inicada 50 anos antes por Jerry Siegel e Joe Shuster; começar o segundo meio século do herói com um estouro.

Eu estava apavorado.

Na verdade, eu ainda não estava muito familiarizado com a versão atual do Super-Homem reformulado por John, Jerry e Marv Wolfman. Depois de Mike me mandar todos os números passados dos três títulos do Super, inclusive anuais, mini-séries, edições ainda por sair, argumentos, etc., eu comecei a pensar que talvez tivesse me metido em águas profundas demais. Como eu poderia contribuir com algo novo para as revistas do kryptoniano? O que eu tinha pra oferecer? Em primeiro lugar, Jerry, Mike e Roger deram um panorama da linha narrativa atual do Super e determinaram onde minha estréia no personagem se encaixaria mais logicamente. Em seguida, expus minhas idéias sobre o Homem de Aço. Só que, o mais importante pra mim era determinar como minha revista seria diferente das de Jerry e Roger. E eu tinha pensado muito sobre isso durante as semanas anteriores.

Não queria apenas mais um título do herói, indistinguível dos outros. Nenhum de nós queria isso. Se íamos ter três revistas do Super-Homem, teríamos que encontrar três maneiras diferentes de interpretar o personagem e ainda manter sua consistência apesar da abordagem estilística individual de cada criador. Afinal, o Super-Homem era maior que qualquer um de nós. Tínhamos que jogar em equipe. Eu precisava achar um gancho, uma faceta do novo mito do kryptoniano que ainda não tinha sido completamente explorada. Eu queria sondar um aspecto diferente da personalidade dele que seria exclusiva ao meu título afetando e sendo afetada pelos acontecimento nas demais revistas.

Então, tive um estalo. Era tão claro, tão óbvio. Ele já tinha três personalidades distintas – há anos! Na verdade, quando garotos, todos nós acabamos decorando a narração de abertura de cada episódio do seriado clássico da TV As Aventuras do Super-Homem:

“…estranho visitante de outro planeta que veio à Terra…”

“…repórter tímido de um grande jornal metropolitano…”

“…Verdade, Justiça e o Modo de Vida Americano!”

A auorora chegou. Roger já estava cuidando do Super-Homem como o herói campeão, o combatente pela verdade, justiça e modo de vida americano no título principal. As preferências de Jerry pareciam centralizar-se em torno do lado mais humano do Super, em Clark Kent, repórter tímido, e seu círculo de amigos, muito reminiscente do seriado de TV. Então, pro meu novo e ainda não batizado título, marquei meu território em Kal-El, a herança kryptoniana do personagem, o estranho visitante de outro planeta.

Me ocorreu que o Super é tão intrinsecamente terráqueo, tão caracteristicamente americano, que a maioria dos coadjuvantes em suas revistas tenderia a esquecer, se é que soubessem, que ele não era “um de nós”. Era esse caráter alienígena do herói que eu queria explorar – como é ser o último filho de Krypton e saber que sua raça, sua tradição e história, irão morrer com ele a não ser que se faça algo a respeito. A reinterpretação de John Byrne da História de Krypton tinha sido minha parte favorita do novo Super-Homem. Fazia sentido pra mim. Eu tinha encontrado meu gancho.

Agora, se ao menos pudesse vender essa idéia aos outros… Foi mais fácil do que pensei. As sugestões começaram a voar mais rápidas que uma bala. Todo mundo tinha algo interessante pra contribuir, inclusive Curt, que nos informou que em todas as décadas em que ele desenhou o Super-Homem, essa era a primeira vez que havia sido chamado a participar dos argumentos. Ele parecia muito entusiasmado com isso.

Começamos a expandir a premissa inicial, descartando o que não funcionava, mudando uma cena aqui, um personagem ali, encontrando o melhor caminho a tomar pra chegarmos à conclusão mais dinâmica possível. Demos idéias para as revistas dos outros, tentando fazer tudo se encaixar num mito coerente do Super-Homem. Havíamos entrado com picaretas de imaginação, minerando por uma linha narrativa, e atingimos o veio principal.

E o mais importante: éramos uma equipe.

Agora, ainda havia uma barreira a saltar. Algo estava faltando. Tanto do que discutimos naquela noite seria armado durante os meses antes de meu primeiro número, que era uma vergonha eu não estar envolvido fisicamente naquilo. Jerry e Roger já estavam alterando a estrutura da narrativa “Super-Homem no espaço” para preparar o ângulo do “Filho de Krypton”. Através dos sacrifícios e talentos de meus supercolegas, minha série do Homem de Aço estava se beneficiando de uma grande preparação. Mas minha chegada à nova série ainda estava a um ano inteiro de distância.

Foi então que o Poderoso Mike sugeriu fazer um anual especial do Super-Homem, uma história grande (publicada em SH 84, aqui no Brasil), que agiria como o ponto de virada do herói e seria co-escrita por seus três novos roteiristas para lançar a nova era, por assim dizer.

Devo confessar que a idéia de Mike me causou um pouco de preocupação. Com todo o pampeiro sobre minha chegada à nova série, meu envolvimento não diminuiria o impacto do primeiro número? Mike pensou bastante e por muito tempo, mas concluiu que as características únicas do projeto valiam o risco. Já era óbvio que eu cuidaria do capítulo relacionado à História de Krypton, e pedi que Mike Mignola, que havia feito um trabalho maravilhoso ilustrando o Mundo de Krypton, fosse o artista. Para mim, ele era a escolha óbvia. Mike Carlin disse que iria cuidar disso.

Então, o negócio principal estava acabado, assim como o prato principal, e era hora de liberar nossa garçonete sobrecarregada e voltar ao hotel. Estávamos todos entusiasmados. Realizamos muito naquela noite, mas havia ainda bem mais a fazer. As superférias tinham apenas começado.

Tivemos uma outra reunião meses depois em Nova Iorque. Além de Jerry, Mike, Roger e eu, dessa vez apareceu o arte-finalista Dennis Janke, que deu algumas sugestões e se mostrou contente em ficar sentado pra ouvir os argumentistas loucos jogando mais idéias de um lado pro outro. Tem gente que pede castigo. Bolamos o esqueleto básico do que viria a ser o segundo Action Comics Annual, e tudo o que restava era decidir quem cuidaria do quê. Isso não foi tão fácil quanto parecia. Nós tínhamos nos empolgado um pouco com a história. Nossas linhas narrativas estavam tão entreleçadas que era impossível dividir a revista em capítulos consecutivos.

Então, adivinhe qual foi o doido voluntário pra datilografar o esboço básico do argumento? Peguei o trabalho porque todo mundo achava que eu tinha a melhor memória (Marv Wolfman e eu havíamos há muito tempo abandonado argumentos por escrito nos trabalhos para os Novos Titãs – eu desenhava a revista a partir das minhas lembranças de nossas discussões de roteiro). Aprendi porque os soldados costumam recomendar pra nunca sermos voluntários pra nada. Foi uma tremenda empreitada: não apenas a história tinha que ser desenvolvida logicamente, mas cada página deveria ser projetada para um escritor e/ou artista em particular, sem que nenhuma equipe fosse sobrecarregada demais com o grosso do trabalho.

A despeito das dificuldades, eu achei isso estimulante. Talvez fosse porque a história finalmente era mais que um conceito intangível. Talvez por causa da confiança que meus colegas puseram em mim ou porque simplesmente era o Super-Homem. Visões dos atores Kirk Alyn, George Reeves e Christopher Reeve voavam por minha mente enquanto meus dedos corriam pelas teclas do computador. Eu poderia ouvir a voz de Bud Collier nos desenhos animados de Max Fleischer na década de 40. O tema do Homem de Aço tocava em minha cabeça com toda sua ousadia metálica. Eu estava fazendo aquilo! Eu estava mesmo escrevendo o Super-Homem!

Depois de uma semana, o esboço estava pronto pra ir em frente. Pro meu alívio, Mike aceitou. Roger e Jerry pegaram suas páginas e deram corpo às suas partes do argumento. Minhas páginas já estavam prontas para o desenhista, que, para meu enorme prazer, acabou sendo Mike Mignola – e eu ia fazer a arte-final! Com Jerry desenhando seu próprio capítulo com arte-final de John Statema, e a parte de Roger a ser ilustrada por Curt Swan e Brett Breeding, esse anual ia ser algo realmente especial. Brett, a essa hora, já tinha começado seu mandato como meu co-artista na nova série do herói kryptoniano, que, ironicamente, acabou sendo o mais antigo dos três títulos.

Após meses tentando bolar um nome para a nova revista do Super-Homem, eu acabei com a cinquentona Action Comics, que havia voltado a ser um título do Super-Homem. Tudo que é velho está novo mais uma vez.

Este anual me deu outro bônus. Jerry quis fazer a arte-final sobre meu lápis para a capa. Eu não tive ninguém para arte-finalizar minhas capas por quatro anos, mas nem pensar em recusar uma oferta feita por Jerry.

E quando você acha que está tudo acertado, o destino vem sacudir as coisas de novo. Meses após a reunião inicial em Cleveland durante o superverão, depois de todos os preparativos, depois de todo o planejamento, quase ninguém trabalha na mesma revista do Super-Homem que estava naquela época.

Pra falar a verdade, Brett e eu somos os únicos remanescentes dos planos originais.

Mas, sabe, acho que isso só vai aumentar o entusiasmo. Eu, por exemplo, estava querendo trabalhar com Roger desde nossos dias juntos na Marvel. É, acho que isso tudo acabou dando certo. E, conhecendo Mike Carlin, eu não ficaria surpreso em ver uma história ocasional feita por gente como Kerry Gammill, Curt Swan, Keith Giffen e qualquer outro que Mike possa agarrar. Esta equipe do Super-Homem continua crescendo e crescendo.

E é realmente ótimo fazer parte dela.


George Pérez

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  (Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)

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