Giri

O conto dos Quarenta e Sete Vassalos Leais

Alexandre Nuernberg
Adaptado do mangá “Lobo Solitário” (Kozure Okami),
de Kazuo Koike (argumento) e Goseki Kojima (desenho).

Era uma época insana. O menor capricho do Shogun tornava-se lei posta em vigor pela pena de morte. Ensinamentos de Buda, que condenavam a violência e a crueldade, foram deturpados em mandamentos contra a morte de animais de toda a espécie, decretando a fome e a peste aos outrora férteis campos do Japão. Caçadores enchiam as ruas, voltando-se para a mendicância e o crime.

Era uma época de decadência moral, regida por ridículas cerimônias. Um tempo de mortes estúpidas e sofrimento sem sentido.

Lorde Asano era jovem e tinha pouca paciência para com a etiqueta de corrupção do shogunato. Ele recusou-se a pagar propina a um oficial da corte. O funcionário, para se vingar, ludibriou Asano, levando-o a vestir-se erroneamente numa cerimônia onde o menor deslize era causa de humilhação pública. Enfurecido, o samurai atacou seu inimigo. Antes de ser subjugado, arremessou sua espada através de um corredor do castelo Tokugawa, a moradia do Shogun. Errando o alvo, o katana perfurou uma porta corrediça, adornada em ouro. Por ter causado dano ao lar de seu soberano, Asano foi sumariamente sentenciado à morte por ritual de suicídio.

Seus quarenta e sete vassalos juraram vingança e não tiveram sucesso. O Shogun então concedeu-lhes o privilégio de seguirem o exemplo de seu mestre, morrendo por harakiri. Quarenta e sete guerreiros samurai (um número grande demais para ser mantido num único pátio ou templo) levaram suas adagas a seus ventres e tombaram no exato momento em que as lâminas ceifavam seus pescoços.

O conto dos “Quarenta e Sete Vassalos Leais” é um estudo sobre o conflito entre a ética samurai e a burocracia do Shogun. Para o samurai, a devoção a seu senhor transcendia qualquer outra paixão na vida.

Essa obsessão em obedecer e servir seu mestre de maneira inquestionável e destemida era a pedra angular do código samurai.

Chamava-se “Giri”.

Giri também significa uma extrema lealdade ao nome da família e aos amigos, inclusive a estranhos a quem se sentisse simpatia ou afeição. Obrigação, honra, decência, cortesia, dívida de gratidão e responsabilidade.

Imigração Japonesa

O sonho de enriquecimento em terras brasileiras

Antonio Alves da Fonseca
Texto enviado para os participantes da Lista Gentree ( genealogia ).

Os japoneses também imigraram de sua pátria por motivos semelhantes aos dos italianos e dos alemães: a desintegração do sistema feudal após a “restauração Meiji” (1868), bem como a política de industrialização e urbanização.

O Estado japonês passou a taxar fortemente a propriedade rural e a produção agrícola, para poder financiar o desenvolvimento industrial, o que trouxe o empobrecimento aos proprietários rurais, que ficaram à margem do processo de modernização, forçando-os a emigrar.

Foram para Honolulu (Havaí) trabalhar com o açúcar e para as Ilhas de Guam (possessão alemã). Foram, ainda, para os Estados Unidos em grande número e também para o Canadá, trabalhar na indústria madeireira. Na América do Sul, estabeleceram-se no Peru, dedicando-se à indústria pesqueira; no Brasil, vieram trabalhar na lavoura do café.

O Japão tinha uma enorme população num território exíguo. A emigração do “excedente populacional” foi estimulada pelo governo para aliviar as tensões sociais e a explosão demográfica, de sérias consequências, como o desemprego, a miséria, a indigência…

Foram formadas as companhias de imigração, semelhantes àquelas formadas para a imigração italiana. Eram empresas privadas que se beneficiavam dos estímulos que o governo oferecia à imigração.

Os japoneses radicaram-se principalmente em São Paulo, já no início do século XX. Foram trabalhar na “frente de expansão” da lavoura cafeeira. Chegaram quando a imigração italiana sofria forte redução, no momento em que a procura por mão-de-obra para as fazendas de café era muito grande; maior do que a oferta.

Em 1907, o governo japonês e o paulista fizeram um contrato com a Companhia Imperial de Imigração, subvencionando parte dos gastos com o transporte de 3000 japoneses (mil por ano). Atendia-se assim aos interesses dos fazendeiros paulistas e aos do governo japonês.

Em 1908, chegam os primeiros japoneses (800), distribuídos por diversas fazendas do Estado de São Paulo. A relação entre os imigrantes japoneses e os administradores das fazendas foi muito conflituosa. Entre os próprios imigrantes eram frequentes os conflitos. As péssimas condições de trabalho, moradia e remuneração causavam constantes atritos, fazendo com que a maioria dos imigrantes abandonasse as terras já nos primeiros meses de permanência. Apenas 25% conseguiram ficar nas fazendas por mais de um ano.

O governo paulista tentou, diante dessa situação, cancelar os contratos. Para que isso não fosse feito, as companhias prometeram selecionar melhor os imigrantes, impedir as greves, as fugas ou o abandono das fazendas antes do prazo estipulado. Mesmo assim, em 1912, cerca de 60% dos japoneses já haviam abandonado as fazendas para as quais emigraram.

O sonho do enriquecimento

Os japoneses vinham para o Brasil com o objetivo de juntar um bom dinheiro e depois voltar para a sua terra. Trabalhavam como contratistas, diferentemente dos alemães e dos italianos, que eram parceiros. Assumiam a empreitada de cuidar de 4 mil a 8 mil pés de café por “família”, por um período de 4 a 6 anos. Poderiam intercalar o cultivo de café com agricultura de subsistência. Trabalhando dessa forma, alguns conseguiram realizar uma poupança, passando a pequenos proprietários. Era o sonho de todos aqueles que vinham com a família. Para isso, chegavam a dobrar a jornada de trabalho. Os que conseguiram adquirir uma pequena propriedade não retornaram para o Japão.

A partir de 1920, a emigração japonesa passou a ser politicamente orientada, principalmente após 1924, quando os Estados Unidos proibiram a entrada de japoneses no país, temendo o “perigo amarelo”. O governo japonês passou, a partir de então, a subsidiar integralmente a emigração para o Brasil. Fornecia capital para os projetos de colonização e para a produção de matéria-prima para o mercado japonês, atendendo a uma necessidade básica desse país, carente em recursos naturais.

O Japão começou a encarar o Brasil como um mercado potencial para os seus investimentos. Mensalmente, 1500 imigrantes chegavam ao Porto de Santos. Para termos idéia do crescimento dessa imigração, vejamos estes números: de 1908 a 1924, chegaram ao Brasil cerca de 35 mil japoneses; depois, em apenas 10 anos, de 1925 a 1935, foram 141 mil japoneses. A partir de 1936, essa imigração começou a cair, entrando no Brasil, no período de 1936 a 1950, somente 14.600 japoneses. Em 1942, o fluxo foi interrompido devido à Segunda Guerra Mundial.

Getúlio Vargas, com o “Estado Novo”, considerava os núcleos de colonização japonesa como “quistos raciais”. Os japoneses passaram a ser perseguidos, discriminados, falava-se no “perigo amarelo”, como nos Estados Unidos. Mesmo depois de restabelecidas as relações entre Brasil e Japão, no pós-guerra, a política de imigração por parte do governo japonês não foi retomada.

O Brasil também não tinha mais interesse numa política de imigração estrangeira.

Isoroku Yamamoto

Filho de samurais, o militar que arquitetou o ataque a Pearl Harbor gostava dos Estados Unidos e estudou em Harvard

Roberto Navarro
Artigo publicado na revista Super Interessante
ano 15, nr. 07, Julho de 2001.

A história do almirante Isoroku Yamamoto está cheia de ironias. Para começar, esse homem, que planejou e lançou o ataque contra Pearl Harbor, era justamente o maior opositor a uma guerra do Japão contra os Estados Unidos. Não que fosse pacifista. Isoroku nasceu em 1884 numa família de guerreiros, os Takano, e seu pai, um samurai aposentado de 56 anos – daí o nome Isoroku, escrito em japonês com os ideogramas do número 56 -, ganhava a vida forjando espadas. Acontece que seus primeiros professores foram missionários americanos, que lhe ensinaram inglês e lhe apresentaram o cristianismo e a cultura ocidental. Começou aí sua admiração pelos futuros inimigos.

Aos 17 anos, Isoroku foi admitido na Academia Naval Imperial, onde se destacou não só pelo brilho acadêmico, mas também por seu interesse pelo Ocidente numa época em que era intenso o sentimento antiocidental entre os militares japoneses. Em 1905, um ano depois de formado, Isoroku participou da batalha do Estreito de Tsushima, vencida pelo Japão e decisiva na guerra russo-japonesa, o primeiro conflito em que um país asiático derrotou uma potência ocidental, o Império Russo. Na batalha, Isoroku perdeu dois dedos da mão esquerda e ganhou fama de herói. Mesmo assim, continuou a enfrentar discriminação, no meio militar, por sua simpatia pelo Ocidente. Na época, crescia no Japão um ressentimento contra os Estados Unidos, por causa da atuação americana na Conferência de Portsmouth, que encerrou a guerra com os russos mas negou ao Japão o direito a indenizações.

Em 1916, o almirante Gonnohyoe Yamamoto, sem filhos e último descendente de uma tradicional família de samurais e líderes militares, adotou Isoroku para garantir a continuidade de sua linhagem. Amparado agora pelo sobrenome Yamamoto, Isoroku foi escolhido para uma temporada de dois anos de estudo na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com a missão de aperfeiçoar seu inglês e descobrir o que pudesse sobre o poderio militar americano. Lá, o militar consolidou sua convicção de que desafiar os ianques era impraticável diante dos recursos da potência ocidental e da fragilidade da economia japonesa.

Depois da promoção a almirante, Yamamoto foi nomeado diretor do Departamento de Aeronáutica da Marinha. Suas idéias moldadas nos Estados Unidos determinaram a revolução na tecnologia militar que ocorreu no período. Entre várias outras inovações, sua gestão levou à criação do avião bombardeiro Mitsubishi G4M (conhecido como “Betty” pelos Aliados). Mostrando estar pelo menos uma década à frente dos estrategistas ocidentais, o almirante desenvolveu a idéia da “frota aérea”, uma força de aviação independente capaz de atacar alvos navais a partir de bases em terra, mas que podia ser rapidamente convertida para operar em porta-aviões.

Em julho de 1941, diante do crescente domínio dos militaristas sobre a política japonesa e dos embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos, Yamamoto entregou os pontos: não havia mais nada a ser feito para evitar a guerra. Então, começou a planejar um ataque-surpresa que fosse devastador o bastante para arrasar de um só golpe as forças americanas no Oceano Pacifico e forçar os Estados Unidos a assinar um armistício. O resultado é o bombardeio de 7 de dezembro de 1941 à base de Pearl Harbor, no Havaí. Os aviões desenvolvidos por Yamamoto brilharam no ataque, mas a vitória arrasadora que ele buscava não aconteceu graças a um erro fatal – os porta-aviões americanos escaparam da destruição por estarem em treinamento. Resultado: os Estados Unidos entraram na guerra decididos a vingar o “dia que viverá para sempre na infâmia”.

Vingança que, no caso de Yamamoto, se concretizou na manhã de 18 de abril de 1943. Os americanos prepararam uma emboscada aérea sobre as llhas Salomão e derrubaram o avião em que o almirante viajava, matando-o. Ironia final: nessa última viagem, Yamamoto era passageiro de um bombardeiro Mitsubishi G4M “Betty”, sua criação.

Mergulho para a morte

Quem eram os kamikazes e por que, para eles, o suicídio era uma saída mais aceitável que a derrota

Fernanda Campanelli Massarotto
Artigo publicado na revista Super Interessante
ano 15, nr. 07, Julho de 2001.

“Eis-me finalmente incorporado às Unidades Especiais. Os 30 dias que restam vão ser minha verdadeira vida. Chegou a hora. O treinamento para a morte me espera: um aprendizado intenso para morrer com beleza. Parto para o combate contemplando a imagem trágica da pátria. Sou um homem entre outros. Nem bom nem mau. Nem sou superior nem sou um imbecil. Sou decididamente um homem.”

A carta acima, escrita em 22 de fevereiro de 1945, é a última mensagem do piloto japonês Okabe Hirabazau para sua família. Dias depois ele morreria, aos 24 anos, em um ataque aéreo suicida às Filipinas realizado pela Marinha do Japão. Hirabazau integra um contingente de mais de 20.000 jovens, adolescentes e até meninos que se engajaram na desesperada estratégia japonesa para não perder a disputa para os Aliados. Eram os kamikazes.

A explicação para essa entrega total pode ser encontrada no passado japonês. A Segunda Guerra mexeu com os brios do Japão. Até então, a história militar do país foi repleta de vitórias. Ninguém jamais conseguiu invadir a ilha. O Japão, ao contrário, subjugou todo o Sudeste Asiático. Primeiro derrotou a China, no final do século XIX (1895), na Guerra Sino-Japonesa. Depois, incorporou parte da Coréia, em 1910. E, por fim, dominou a Mandchúria, em 1931, consolidando o império nipônico. Mesmo durante a Segunda Guerra, até certa altura do conflito o Japão só havia conhecido vitórias: muitas ilhas do Pacífico e parte da Tailândia foram anexadas.

O domínio japonês no Pacífico só estremeceu com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, em resposta a um ataque da Marinha japonesa ao porto americano de Pearl Harbor, situado na ilha de Oahu, no Havaí, em 7 de dezembro de 1941. Em pouco tempo, a Marinha e o Exército do imperador Hiroito (1926-1989, era Showa) colecionaram derrotas frente ao fogo americano. Na pequena ilha de Saipan, capital das Ilhas Marianas do Norte, parte da Federação dos Estados da Micronésia (oeste da Oceania), em uma única batalha, em julho de 1944, morreram 12.000 americanos contra mais de 130.000 japoneses. Uma proporção de dez baixas orientais para cada baixa americana.

O efeito dessa desvantagem sobre o Japão dos anos 40 faz parecer até natural o nascimento de um impulso suicida entre os jovens nipônicos. Os milhares de mortos envergonhavam o país, mas a imprensa de Tóquio exaltava e descrevia a ação dos mártires como exemplos a serem seguidos. Os rapazes, como que expiando a humilhação nacional, colocavam-se às centenas à disposição das Forças Armadas. A lealdade às tradições do país e ao imperador deu o impulso que faltava, e toda uma geração entregou-se às armas, disposta a tudo para não perder a guerra para os americanos – chamados de chikucho (algo como “besta inumana”). Por fim, o rígido código de honra militar japonês sugeria uma única saída para uma guerra que, àquela altura, estava claramente perdida: a morte. Os kamikazes (kami é “deus” e kaze é “vento”, em japonês) são a faceta mais contundente desse espírito nacional.

O criador da ação kamikaze foi o almirante da Marinha Takajiro Onishi. Em 19 de outubro de 1944, Onishi comunicou a seus pilotos que os americanos haviam desembarcado nas Filipinas. A batalha naval estava próxima e os métodos tradicionais não seriam suficientes para deter os inimigos. Havia, porém, uma esperança. Aviões de caça do tipo Zero, armados com uma única bomba de 250 quilos, se chocariam contra navios inimigos. A ousadia e o poder destruidor do ataque seriam fatais.

Faltava apenas encontrar voluntários para o mergulho mortal. Em qualquer sociedade ocidental, seria impensável pedir a um soldado que cometesse um suicídio altruísta. Não há registro de situação similar na história das guerras no Ocidente. Missões militares sempre comportavam risco de vida. Mas o que dizer de abdicar dela de antemão? No Japão da década de 40, encontrar jovens corajosos com data e hora marcadas para morrer não foi um problema. Invocou-se a ética guerreira. Quem não encarnaria de bom grado o “vento dos deuses”? Que honraria maior do que personificar o “tufão divino” contra os inimigos?

Logo de início, os ataques dos kamikazes operaram muitos estragos na armada inimiga, que não sabia como reagir a esse tipo de ação. Os números comprovam a eficácia da estratégia: 57 navios inimigos foram afundados; 108 totalmente destruídos; 83 parcialmente destruídos e 206 danificados. Os momentos de glória eram desfrutados antes e depois das missões. Toda a esquadrilha se reunia e compartilhava, com os que iam partir, uma última dose de saquê, tradicional aguardente de arroz japonesa. Nas fotografias remanescentes da época, é possível ver o sorriso sereno dos jovens a caminho da morte. Na testa, uma faixa branca com um sol vermelho.

As unidades de combate kamikaze, na verdade, retomavam o espírito dos antigos samurais, guerreiros japoneses da Idade Média. “Mas não podemos pensar que os kamikazes foram os samurais do Japão moderno”, diz o doutor em história moderna do Japão, Takane Kawashima, da Universidade de Meiji, em Tóquio, que publicou um estudo, em 1994, sobre o sentimento da população japonesa durante o conflito. “Há, simplesmente, a transposição do sacrifício pelo senhor feudal para a morte pelo imperador, em nome de uma lealdade radical. O samurai realizava o haraquiri, o corte do próprio ventre, uma morte solitária. O kamikaze, ao morrer, levava o inimigo consigo.”

Embora muito se tenha falado nas razões do espírito para justificar a ação kamikaze, os milhares de pilotos suicidas jamais foram movidos pela religião. O xintoísmo e o budismo, as duas principais religiões no Japão, condenam o suicídio. O Japão da era Meiji, que começou em 1872 com a abertura do país ao resto do mundo e encerrou-se com a derrota na Segunda Guerra, era fortemente influenciado pelos valores de Confúcio, filósofo chinês que viveu entre 551 e 479 a.C. Para o confucionismo, a família é a base da sociedade. E as relações de pai e filho são fundamentais. O Estado, por sua vez, é visto como uma grande sociedade familiar em que o imperador funciona como pai. “A moral confuciana não é favorável ao suicídio. Mas as suas idéias de obediência conduzem à devoção absoluta em relação ao soberano”, afirma Eduardo Basto, historiador especialista em religião da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).

O primeiro ataque kamikaze ocorreu em 25 de outubro de 1944, durante a batalha de Samos, na costa de Leyte, nas Filipinas. As unidades especiais de ataque por choque corporal, os tokkotai, eram compostas por 25 pilotos suicidas, ou tokko. Um sucesso, a princípio, as investidas kamikazes foram, com o tempo, revelando seu preço: a extinção dos pilotos de elite. Foi preciso então formar pelotões inexperientes. Os jovens japoneses foram convocados a entrar na guerra e, prontamente, atenderam ao chamado. Muitos eram universitários. Estudantes da área jurídica e literária eram prontamente aceitos. Os cientistas eram poupados, pois se considerava que eles seriam mais úteis para o futuro do país. Morrer aos 20 anos podia não fazer parte dos planos daqueles jovens, mas o dever de obediência ao imperador era mais forte. “Até 1945, os japoneses cultivavam uma adoração extrema ao imperador, que era visto como o filho da divindade solar, uma filosofia básica do xintoísmo, a religião mais popular do Japão”, diz Eduardo Basto. “Hiroito só foi abdicar desse poder ‘divino’ em janeiro de 1946, por exigência dos americanos, depois que o Japão se rendeu, em 15 de agosto de 1945, e começou o período de ocupação americana do país, que durou até abril de 1952.”

Os japoneses ouviram em meio às lágrimas o discurso de rendição do soberano. Foi o episódio mais amargo da história do país. “Ponho um fim a esta guerra por minha própria autoridade”, anunciou Hiroito. Mas, para surpresa até dos mais céticos, em poucos meses, a paz determinaria a morte do caráter divino imperial: os ultranacionalistas se resignaram e o povo acolheu sem revoltas o pedido superior. No entanto, alguns militares da Marinha e do Exército, inconformados com a derrota, invocaram os samurais e suicidaram-se cometendo haraquiri. Entre eles estava o criador das missões kamikazes, o almirante Onishi. Estrategicamente, os Aliados conservaram o imperador no poder. Temia-se que o imperador se matasse e o mundo assistisse a um suicídio em massa. De fato, sacrificar a vida (jusshi reuisho, em japonês) pelo país era uma obrigação da família real. E uma honra, uma regra de conduta que não poderia ser evitada para os cidadãos comuns. Quem se rebelasse envergonharia toda a família. Dinastias com séculos de história podiam cair em desgraça na sociedade.

Foi precisamente a devoção à pátria e ao imperador que levou Kiyoshi Tokudome, então um garoto de 15 anos, a se alistar na Marinha japonesa em maio de 1944. Tokudome hoje tem 71 anos. Vive há 45 no Brasil. Ele dirige a Associação Cultural Kagoshima do Brasil, que leva o nome de sua província natal, no sul do Japão. Tokudome, ao entrar para a Marinha, foi enviado para um campo de aviação em Nagasaki. Segundo ele, o aprendizado não foi fácil. Com o avanço das tropas Aliadas, o curso de oito estágios com duração de três anos acabou reduzido para quatro semestres. O cronograma ficou apertado. O dia inteiro era preenchido com treinamento militar em aulas práticas e teóricas, manuseio de equipamentos, mecânica e simulações de vôo.

“A rotina começava às seis da manhã e muitas vezes se estendia até tarde da noite.” Caso os regulamentos fossem infringidos, as punições eram severas. Era muito comum os futuros pilotos serem esbofeteados pelos superiores. E jamais reclamavam. “Nossa educação baseava-se nos princípios da disciplina, lealdade, obrigação, devoção e soberania”, afirma Kawashima, da Universidade de Meiji.

A possibilidade de se tornar um prisioneiro de guerra não era concebida entre os militares japoneses. Cair diante do inimigo era considerado uma espécie de morte muito menos honrosa que o suicídio. “A maioria dos japoneses não imaginava uma guerra sem vitória. Não haviam sido educados para ser prisioneiros”, diz Kawashima. “Caso isso viesse a acontecer, por que não abraçar o fim na forma de um suicídio altruísta, abnegado, que reverenciasse os samurais?”

Kamikaze – O Vento Divino

Como um tufão protegeu o Japão da invasão dos mongóis, no século XIII

Alexandre Nuernberg
Adaptado do livro “Japão Antigo”,
da Biblioteca de História Universal Life.

Durante grande parte do século XIII o Japão mostrou-se relativamente próspero e tranquilo sob o forte domínio dos regentes Hojo, o que foi extraordinariamente benéfico para aqueles tempos. A população aumentou; as pequenas cidades cresceram; o comércio com a China foi incrementado, trazendo para o Japão riquezas e novas idéias. Igualmente, em meados do século, o código de honra dos samurai começara a evoluir de um simples conjunto de lealdades feudais para tornar-se um poderoso código de ética, que ainda exerce influência no Japão. E ainda, a maior parte dos implementos de guerra que iriam identificar os samurai durante séculos haviam tomado forma.

Embora o governo militar tivesse imposto ordem no interior do Japão, estavam começando a surgir dificuldades no além-mar, que iriam finalmente colocar a casta dos samurai diante da mais severa das provas. No começo do século XIII, os ferozes a agressivos mongóis irromperam da ásia Central numa campanha de conquistas que aterrorizou a maior parte dos países asiáticos, e por fim também boa parte da Europa Oriental. Os japoneses observavam com crescente apreensão os exércitos mongóis dominarem a China, sob a chefia de Gengis Khan e seus descendentes. Quando viram que também a Coréia caíra sob o poder dos conquistadores compreenderam que um ataque contra o Japão não poderia estar muito distante.

Em 1268, o Grão Khan dos mongóis, Kublai, neto de Gengis Khan, enviou um embaixador ao “Rei do Japão”, a quem se dirigiu como “o governante de um pequeno país”, e sugeriu um amistoso intercâmbio com a China, o que seria desejável. E observou, diplomaticamente, que a falta de tais relações poderia conduzir à guerra. O governo Hojo, de Kamakura, compreendeu que se tratava de uma velada ameaça, mas não se mostrou disposto a se render. Despachou de volta o embaixador mongol para a China, sem lhe dar qualquer resposta, e tratou da mesma maneira silenciosa e desafiadora os embaixadores que o sucederam. Esse desafio não poderia deixar de ser aceito e o regente Hojo percebeu que o primeiro ataque seria provavelmente desferido contra a ilha de Kyushu, base adequada para um assalto contra a ilha principal, Honshu. Ordenou que as defesas costeiras fossem melhor fortificadas, e advertiu aos guerreiros de Kyushu que permanecessem em estado de alerta. Entrementes, seus espiões ficaram observando a Coréia de perto, da qual mais provavelmente deveria partir uma força invasora.

Os mongóis eram cavaleiros da ásia Central, nada entendiam de navegação, mas obrigaram os coreanos a construir e equipar uma grande esquadra de cerca de 450 navios. Em novembro de 1274, a armada, transportando 15.000 soldados mongóis, fez-se ao mar no tempestuoso estreito da Coréia, e tomou as pequenas ilhas de Tsushima e Iki, nas quais as guarnições japonesas morreram até o último homem. Em seguida a esquadra prosseguiu rumo a Kyushu e aportou na baía de Hakosaki, na costa setentrional.

Os samurai do lugar acorreram mais que depressa ao combate. Sabiam que grandes exércitos, despachados pelo Bakufu, estavam em marcha para lhes dar apoio, mas não esperaram qualquer ajuda, lançando-se arrojadamente contra os temíveis mongóis, descritos pelos artistas japoneses contemporâneos como hirsutas criaturas sub-humanas. Os samurai tinham a superioridade de lutar em seu próprio terreno, mas sob todos os outros aspectos estavam em posição consideravelmente desvantajosa. Nunca haviam se defrontado com um exército inimigo, e raramente tinham empregado, em suas guerras civis, qualquer formação militar. Os guerreiros de alta hierarquia geralmente lutavam com adversários de igual nível, em formais combates singulares. Os mongóis, por outro lado, eram táticos consumados, manobrando habilmente em formações cerradas. Suas poderosas bestas atiravam dardos de maior alcance do que as flechas japonesas, e eles haviam trazido uma espécie de artilharia: catapultas que arremessavam projéteis em chamas e projéteis explosivos. Contra essa formidável máquina militar os japoneses puderam reunir apenas o valor de suas mortíferas e queridas espadas.

A batalha terminou de maneira indecisa. Ao cair da noite, os japoneses retiraram-se para trás de suas fortificações, e os marujos coreanos, que não estavam gostando do aspecto do tempo, persuadiram os mongóis a voltarem para bordo dos navios. Naquela noite desabou uma tempestade que afundou muitos dos navios e impeliu os remanescentes da esquadra de volta à Coréia.

Pouco depois dessa invasão malograda, Kublai Khan enviou outra embaixada, dessa vez ordenando ao “Rei do Japão” que se dirigisse a Pequim, a capital mongol, para lhe render vassalagem. Era um ultimato. A Corte Imperial, de Kyoto, ficou aterrorizada, mas o resoluto Bakufu, de Kamakura, rejeitou qualquer idéia de rendição e marcou sua decisão da maneira mais vigorosa que pôde conceber: cortou as cabeças dos embaixadores mongóis. Isso constitui o maior dos insultos, atirado ao rosto de um povo inimigo cujas conquistas então se estendiam do mar da China, através do continente asiático, até a Arábia, e cujos cavaleiros haviam assolado o Ocidente, chegando até à Hungria.

Os japoneses sabiam muito bem que viria outro ataque mongol, mais violento. Começaram a se preparar para ele, demonstrando uma unidade que o país jamais tivera. Para sustar as acometidas dos grupos de mongóis que desembarcassem, os senhores de terras de Kyushu receberam ordens de erguer uma muralha em torno da baía de Hakosaki, em cujas praias abrigadas era de se esperar que o inimigo novamente acometesse. Pequenos barcos de guerra, fáceis de manobrar, foram construídos para atacar os desajeitados navios-transportes dos mongóis, e foram enviadas tripulações que os manobrassem. Fez-se o recenseamento de todos os homens de Kyushu capazes de pegar em armas, para que pudessem ser convocados imediatamente a fim de repelir os invasores. Os belicosos barões de todo o Japão foram advertidos para que mantivessem suas tropas prontas para a luta, a qualquer momento. Empilharam-se armas, e a Corte de Kyoto abandonou seu luxo para poupar recursos destinados à defesa. Até mesmo os piratas que espalhavam o terror pelo mar Interior – alguns deles eram samurai cujas terras chegavam até as praias desse mar – juntaram-se entusiasticamente às forças do governo nas manobras navais.

A trégua durou cinco anos, enquanto os conquistadores mongóis estiveram ocupados em eliminar os resíduos de resistência que persistiam na China Meridional. Ao cabo desse período os espiões japoneses trouxeram a informação de que estavam sendo ultimados preparativos em larga escala. Novamente os coreanos tinham sido ordenados a construir navios, dessa vez um milhar deles. E um exército mongol de 50.000 homens marchava em direção ao litoral do estreito da Coréia. Simultaneamente, segundo se informava, uma esquadra ainda maior estava sendo reunida no sul da China, para embarcar um exército de 100.000 homens. Embora os espiões pudessem ter exagerado nos números, parece haver poucas dúvidas que aquela força invasora marítima seria a maior da história, até os tempos modernos.

No começo do verão de 1281 a esquadra mongol partiu da Coréia, dirigindo-se para Kyushu, como o fizera antes. As primeiras tropas desembarcaram no dia 23 de junho, em muitos pontos da costa setentrional, incluindo as praias muradas da baía de Hakosaki. A esquadra proveniente da China chegou a Kyushu pouco depois, e desembarcou a maior parte de seus soldados mais a oeste. Com típico desprezo pela morte, os japoneses atacaram imediatamente. Seus pequenos barcos realizaram grandes estragos, e as tripulações armadas abordaram os transportes inimigos, incendiando-os. A mais poderosa arma dos mongóis, o terror paralisante que haviam inspirado em grande parte do mundo no século XIII, não produziu o menor efeito sobre os japoneses.

Grandes exércitos afluíam ao campo de batalha, e os chefes samurai corriam cada qual mais que o outro, para ser o primeiro a chegar. Sacerdotes e monges dos mosteiros de todo o Japão ergueram suas preces pela vitória. O imperador dirigiu os serviços religiosos, dia e noite, em todos os santuários e templos shintoístas e budistas. Ele e o imperador afastado escreveram cartas do próprio punho, enviando-as aos túmulos de seus ancestrais e suplicando a ajuda do mundo dos espíritos. O Japão inteiro, que não estivesse empenhado na luta ou se preparando para isso, entregava-se à oração ou entoava cânticos mágicos para assegurar a vitória.

A luta durou mais de cinquenta dias. As descrições da mesma, que chegaram até nós, são de tal modo confusas que não se poderá dizer que lado levou a melhor. Depois de os japoneses terem resistido ao choque inicial, provavelmente obtiveram uma vantagem a longo prazo. Seus exércitos recebiam constantes reforços, e os invasores mongóis jamais penetraram em território distante da costa de Kyushu.

O fato de os mongóis terem ou não sido capazes de um triunfo definitivo constitui debate que jamais poderá ser resolvido, porque a natureza, ou os deuses, desempenharam decisivo papel na batalha. Em fins de agosto, como frequentemente acontece no Japão nessa época do ano, negras nuvens se acumularam bem alto no céu, ao sul, e um grande tufão rugiu sobre Kyushu. Durante dois dias o vento soprou com a violência de um furacão. Quando, finalmente, o céu clareou, as duas esquadras inimigas estavam destroçadas ou dispersadas, havendo se afogado a maior parte de seus tripulantes. Os invasores, desmoralizados, que erravam pelas praias, abandonados, foram rapidamente massacrados pelos japoneses.

O tufão foi o Kamikaze, o “vento divino”, cuja oportuna intervenção convenceu os japoneses, por muitos séculos, que sua terra era especialmente protegida pelos deuses. Quando outra invasão ameaçou o país, no século XX, os pilotos japoneses, que conduziam aviões carregados de explosivos e se lançaram sobre os canhões dos vasos de guerra norte-americanos, numa tentativa para salvar sua pátria, foram apropriadamente denominados Kamikaze, por causa do vento de longa fama.