Há não muito tempo, num sábado de manhã, eu estava dando uma volta pelo Centro da cidade onde moro. Acho que pelo seu tamanho atual, abrigando mais de setecentos mil habitantes, já quase podemos chamá-lo de “Centro Velho”… Aliás, uma pequena pérola de cultura inútil: os censos de alguns séculos atrás referiam-se às vilas e povoados com algo como “trinta fogos e cem almas”; fiquei um tempo perdido com essa definição até que acabei descobrindo – no exemplo seriam trinta casas (cada casa um fogo, em torno do qual se une a família) e cem pessoas (cada pessoa, uma alma).
Mas onde estávamos? Ah. Sim. O Centro.
Durante muitos anos trabalhei no Banco Nacional (“O Banco que está a seu lado!”) – aquele do Ayrton Senna. Ficava bem em frente das Lojas Americanas. Sou da época em que o banco estava começando a se modernizar, de modo que comecei trabalhando com as antigas máquinas Burroughs, aquelas autenticadoras de documentos com centenas de botões na face. Ainda me lembro da dificuldade de se autenticar alguns tipos de carnês muito estreitos – chegava a machucar a mão! Houve uma época, pelo cargo que eu ocupava, em que eu era simplesmente o primeiro a entrar e o último a sair, o cara que abria e fechava os malotes diários. Lembro-me de cada detalhe do prédio, até mesmo das reformas pelas quais ele passou. Cada trinca, cada rangido, cada cheiro. São lembranças que fazem parte de mim e de mais ninguém, até porque o prédio não mais existe. Foi totalmente derrubado para construção de alguma outra coisa. Tudo que se vê – hoje – é um grande descampado bem no centro comercial da cidade, maior mesmo que um campo de futebol.
Nessa época do banco costumávamos almoçar em algum dos diversos restaurantes que fervilhavam pela cidade. Bem do lado do banco existia uma pastelaria de um chinês que tinha conta conosco – o dinheiro que ele trazia sempre cheirava a fritura – e seguindo pela mesma calçada, após uma loja só de calças Lee, havia uma espécie de cantina muito simpática, bem lá no fundo. No mesmo quarteirão, ao dobrar a esquina, passando bem em frente da Doceira do Vale, encontrávamos um outro restaurante. Toalhas e guardanapos de linho, garçons sempre simpáticos (qual não é?), um ambiente diferenciado, um local para conclusão de grandes acordos comerciais. Mesmo antes de entrar no banco, numa época em que trabalhei com marcas e patentes num escritório de publicidade, já costumava levar meus clientes ali para fechamento de contratos. Em particular lembro-me das saborosas bolinhas de manteiga (feitas por eles próprios) para se comer com um pãozinho antes das refeições. Do prédio só restou a fachada, o resto todo foi vítima de um incêndio há muitos anos. Aliás, no lugar daquela doceira temos agora uma moderna farmácia, e todo o espaço da pastelaria, da loja de jeans e daquele outro restaurante foi tomado pelo novíssimo e brilhante prédio dos correios.
Seguindo pela mesma rua, na esquina oposta a um dos poucos hotéis de luxo da cidade (na época), havia um simpático bar, que, pela sua construção antiga, possuía o piso bem mais alto que o da rua. Ficávamos tomando nossa cervejinha ali do alto, observando os transeuntes e papeando com as moçoilas que ainda iam entrar. O aconchego de suas cadeiras, o confortável formato de seus assentos ainda é uma lembrança nítida. Hoje? Não, nada de bar. Um prédio de uns vinte andares (cuja construção acompanhei dia-a-dia) tomou seu lugar.
Para os fins de semana havia o Cine Palácio, um respeitável cinema bem em frente de uma grande praça – daqueles que possuíam camarote, nos quais crianças e casais adolescentes NÃO podiam subir. Se não me falha a memória o primeiro filme que assisti nesse cinema (com um certo deslumbramento, confesso) foi o do Superman – o primeiro, com o Cristopher Reeve. Por seu tamanho e localização era um local disputado para realização de solenidades, formaturas, etc. Mesmo assim, no final da década de noventa seu prédio passou a abrigar mais uma das franquias da Igreja Universal – e hoje, totalmente despido de telas, cadeiras, mármore, tapetes e todo o resto, nada mais é que um grande estacionamento.
Sei que ando meio saudosista por esses dias, mas, fazer o quê? Esse sou eu. Também sei que a cidade não pára, tem que continuar crescendo, mudando, se modificando. Talvez essa pele da cidade seja como nossa própria pele. Possuímos marcas, cicatrizes, às vezes um hematoma – mas tudo passa: ou saramos, ou nos acostumamos com isso de tal maneira que deixa totalmente de nos incomodar, por mais gritante que seja a marca. Assim é a cidade. Com o tempo nos acostumamos de tal maneira com as mudanças, que sequer lembramos mais como era antes. Mas, no meu caso em particular, acho que é como dizia aquela música, “tudo que morre fica vivo na lembrança; como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça (…)”.
Mas, falando em cemitérios – que mórbido! – já disse mais de uma vez o quanto aprecio genealogia e história, até porque são duas matérias que andam de braços dados. Participo de algumas listas de discussão desse gênero, tenho uma pequena, mas rica (culturalmente falando), biblioteca sobre o assunto e sempre que posso faço o possível para ajudar a guardar a memória histórica de uma cidade. Semana passada, após uma longa espera e algumas negociações, me veio às mãos um livro de registros de uma cidade vizinha. Minha missão voluntária: digitalizar e transcrever o conteúdo de suas páginas, que carregam mais de cento e trinta e cinco anos de história. Pois é, cada louco com sua mania…
Por fim, para não passar totalmente em branco, informo a todos os interessados, curiosos e afins, que FINALMENTE acertei a mão com a bendita antena. Como em casa só tenho sinal da TV aberta, eu precisava ao menos tentar melhorar a recepção da Cultura – último bastião de seriedade cultural no meio de todo o resto. Abaixo temos dois ângulos da arte desta criança grande que vos escreve.