Cinematográficas

Cena 1: Alta noite. Fria. Família dorme sossegada. Uma chuva fina cai lá fora.

De repente, o marido acorda. Acha que ouviu um barulho. Não sabe identificar exatamente o quê, mas tem certeza que ouviu algum tipo de barulho. Talvez uma espécie de clique, seguido de um lento arrastar. Perscruta a escuridão com o olhar, mas nada consegue enxergar naquele negrume. Apura os ouvidos, mas, fora os pequeninos barulhos normais da noite, tudo está em silêncio. Resolve voltar a dormir. O sono vem chegando, lentamente. Naquele exato momento, equilibrado entre o dormir e o acordar, novamente ouve um barulho. Desta vez bem mais próximo. No mesmo quarto. Seu cérebro despertou, mas o resto do corpo não – está envolto numa estranha e confortável torpeza. Seu coração dá um solavanco quando sente algo frio que lenta e inexoravelmente começa a avançar sob as cobertas, bem do seu lado direito. Não consegue raciocinar com clareza. Não consegue que o corpo responda. O coração, acelerado, ameaça romper o peito a cada batida. E aquela massa fria vem subindo até parar na altura de sua cintura. E daí vem a pergunta:

– Paiê, posso ficar aqui?

E então, com um terno sorriso, todo aquele cenário digno de Vincent Price desaba. Ele puxa o filho nº 2 até a cabecinha se aninhar em seu ombro, envolve-o bem com as cobertas e aconchegando-o com um forte abraço responde:

– Claro, filho. Claro…

Cena 2: Praça. Começo da noite. Bairro residencial. Frio. A esposa, com as crianças dentro do carro, espera o marido voltar da casa do sogro, do outro lado da rua, onde foi pegar alguns documentos.

E então o filho nº 1, taurino, do alto de seus oito anos, declara:

– Mãiê! Tô com sede.

– Ah, filho, agora não tem água.

– Mas tô com sede!

– Olha só, a garrafinha tá vazia. Não tem nem um pouquinho de água. Daqui a pouco a gente chega em casa e você toma água, tá bem?

– Não tá não. Eu tô com sede.

A mãe suspira. Sabe que é uma batalha que está fadada a perder. Olha a sua volta e vê um a casa de um dos vizinhos com a porta aberta, ali mesmo na praça. Chama-o, conversa um pouco, pede um copo d’água. Ele se propõe a encher a garrafinha. Ela agradece. Volta para o carro.

– Toma, filho. Sua água.

– Essa água eu não quero não.

– CUMÉQUIÉ???

– Eu é que não vou tomar essa água. Não sei de onde veio.

– Filho, é água, simplesmente água. Aquele senhor foi gentil e até encheu a garrafinha. Vê se toma essa água e sossega.

– Não.

– Ah, filho! Larga mão de ser fresco!

– Fresco não. Sistemático.

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