A Síndrome do Bezerro de Ouro

Sei que é um título – e um texto – um tanto quanto, digamos, “esquisito” para ser colocado logo no pós-Natal, mas me chamou a atenção não só pela coerência como pela capacidade de dizer o óbvio – no caso, o tipo de coisa que está na nossa frente o tempo todo e raramente enxergamos.

Pois bem. O texto é de Donald Norman e foi feito na época em que o produto da vez que estava em voga no mercado eram os aparelhos de som (mas aplicável à questão da tecnologia de um modo geral). Recortado e colado direto lá do Boteco Escola:

A ADORAÇÃO DE FALSAS IMAGENS
(A síndrome do bezerro de ouro)

Donald A. Norman

POET p. 174-6

O designer – e o usuário – pode ser tentado a adorar a complexidade. Alguns de meus alunos realizaram um estudo sobre máquinas copiadoras de escritórios. Descobriram que as máquinas com mais funções, e muito mais caras, eram sucesso de vendas entre as empresas de advocacia. As empresas precisavam das muitas funções extras de tais máquinas? Não. Na verdade elas gostavam de colocar as máquinas na parte da frente dos escritórios perto da sala de espera dos clientes. Um show de equipamentos com luzes flamejantes e lindas telas. As empresas, assim, ganhavam uma aura de modernidade, mostrando sua capacidade de lidar com os rigores da alta tecnologia. O fato de que as máquinas eram muito complexas para serem operadas pela maioria das pessoas nas empresas era irrelevante; as copiadoras sequer tinham que ser usadas, importava a aparência. Em tempo: os adoradores de falsas imagens neste caso eram os clientes.

Uma colega me narrou as dificuldades que ela enfrentou com o seu conjunto caseiro de audio/TV, formado por diferentes componentes que, isoladamente, não eram muito complexos. Mas as combinações eram tão difíceis que ela não podia usar o conjunto. A solução de minha amiga foi trabalhar cada operação que ela queria fazer e escrever instruções explícitas para si própria. E mesmo com essas instruções, não foi fácil operar o aparelho. Aqui, claramente, o culpado são as interações entre componentes. Imagine-se tendo de escrever diversas páginas de instrução para poder utilizar seu próprio aparelho de som!

No caso do conjunto de audio/TV extremamente complexo, os componentes eram de diferentes fabricantes. Foram concebidos para serem comprados e usados isoladamente. Mas eu já vi complexidade igual em componentes produzidos por um único fabricante. Alguns vendedores tentam criar a impressão de que é assim que deve ser, pessoas com alguma competência técnica podem fazer com que o aparelho funcione. Não, esta atitude não é correta. O equipamento simplesmente é muito complexo, a interação entre os equipamentos é muito difícil. Não há nada particularmente avançado com relação ao equipamento de minha colega. E ela é uma pessoa razoavelmente sofisticada quanto à tecnologia – é uma doutora em ciência de computação – mas foi derrotada por um audio caseiro.

Um dos problemas com equipamentos de audio e vídeo é o de que, mesmo que os componentes tenham sido planejados com cuidado, a interação intercomponentes não é fácil. O receptor, o toca-fitas, a televisão, o videocassete, o aparelho de CD, etc parecem ter sido planejados de modo relativamente isolado. Colocá-los juntos é o caos: uma admirável proliferação de controles, luzes, medidores e interconexões que podem derrotar até mesmo tecnófilos de talento.

Neste caso, a falsa imagem é a aparência de sofisticação técnica. Este é o pecado responsável pela complexidade extra de muitos dos nossos instrumentos, dos telefones e televisões às lavadoras e secadoras de roupa, dos painéis de automóveis aos conjuntos audiovisuais. Não há remédio aqui a não ser educação. Você pode argumentar que este é um pecado sem vítimas, ferindo apenas aqueles que o praticam. Mas isto não é verdade. Fabricantes e designers fazem produtos para aquilo que eles percebem como demandas de mercado; assim, se um número razoável de pessoas comete o tal pecado – e a evidência é que elas irão pecar – todos nós pagamos pelo prazer de uns poucos. Pagamos na forma de equipamentos coloridos e elegantes cujo valor de uso é quase zero.

E daí?

Guardadas as devidas proporções, conseguiram identificar cada qual o Bezerro de Ouro que carrega ou vislumbra?

Talvez aquele celular de última geração, que tira fotos, filma, conecta à Internet, funciona como ondas-curtas, faz pipoca, lava, passa e cozinha? Mas que você usa somente para fazer e receber ligações…

Ou, talvez, aquela TV hiper-super-ultra-mega-blaster-advanced-plus, com possibilidade de 1.469 conexões diferentes e que você usa somente para assistir – quando muito – sua novelinha…

Um carro – por que não? – com todos os acessórios possíveis e imagináveis, capaz de chegar a 492 km/h, do tipo todo-terreno, anfíbio, quatro-por-quatro, com tv a cabo e lavadora a bordo – e que vai somente de casa para o trabalho e do trabalho para casa…

Pois é, creio que talvez todos nós tenhamos nosso “Bezerro” enfiado em algum canto da casa – ainda que não percebamos isso!