Eu me lembro de uma estória – contada em verso, prosa e quadrinhos – de um mago que conseguiu ampliar seus poderes ao vender pedaços de sua memória a vários demônios. Lembranças tão antigas que ele sequer sabia mais que as tinha. Considerou-as inúteis e, pedaço por pedaço, as foi descartando.
“Primeiro dia na escola? Pode levar essa lembrança!”
“Brigas com meus pais? Para que vou querer isso?”
“Colegas de trabalho, conhecidos do dia-a-dia? Não me servem de nada.”
“Aquele relacionamento que não deu certo? Essa eu até pagaria para você levar!”
Enfim, cada uma daquelas memórias – ou sequência de memórias – foi sendo levada, substituída por mais e mais poder. Assim ele se tornou o mago mais poderoso de sua era.
E também o mais confuso.
Sem o auxílio das memórias – mesmo daquelas que ele sequer lembrava – todo seu embasamento moral, toda sua estrutura emocional acabou por ficar em frangalhos…
O mago em questão imaginou que estava fazendo um ótimo “negócio” simplesmente porque não tinha noção do verdadeiro poder da memória. São nossas memórias que nos fazem ser quem somos e como somos. Elas nos definem. Nos acalentam e nos protegem quando precisamos. Mas também doem. Também machucam. Também deixam o coração apertado, espremido e saturado.
Basta um cheiro. Uma música. Um lugar. Uma frase. Qualquer mínima fagulha serve para abrir os diques d’alma e nos inundar com memórias nem sempre desejadas.
E mais: é um erro pensar que manter-se em movimento ou em constante mudança evitaria essas fagulhas. Nada mais estamos fazendo que criando novas memórias – que, ao seu devido tempo, invariavelmente entrelaçadas com as anteriores, também poderão nos consumir…
Ou seja, não há fuga.
Não há onde se esconder.
Não há local, remédio, bebida, trabalho, diversão ou companhia que surta efeito quando tratamos do quesito apagar memórias. Exceto, talvez, a solução radical adotada em Sucker Punch…
Então, na prática, não tem jeito. A única alternativa (e se é única, por que seria alternativa?) é conviver com nossas memórias, tentando mantê-las sob controle, com rédeas curtas e, se preciso for, até mesmo focinheira! Pois as memórias estarão sempre ali, estáticas, esperando para nos pegar de assalto. Então é bom que estejamos prevenidos!
Aliás, é creditado a Bob Marley a frase de que “a única razão de sermos tão apegados em memórias, é que elas não mudam, mesmo que as pessoas tenham mudado”. E as pessoas mudam. Sempre. E é mais uma vez culpa da maldita memória a insuportável insistência que temos em tentar resgatar os bons momentos. O problema é que os bons momentos não podem ser resgatados. Eles já se foram. Podem apenas ser preservados. Onde? Sim, na memória.
O truque então é manter o foco em outro objetivo: criar novos bons momentos. E tentar mantê-los, protraí-los no tempo, distendê-los até que se tornem uma constante em nossas vidas. E, dessa maneira, esses novos bons momentos poderão fixar sua indelével marca na memória, talvez até mesmo sobrepujando aquelas que teimam em doer…
Porque a dor de uma memória é uma dor inigualável. É a dor que vem da sapiência do que foi, do reconhecimento do que poderia ter sido e do desespero do que não será. É uma dor que dilacera, que rasga, vira no avesso e torna a rasgar. E que invariavelmente nos leva às lágrimas.
Mas – incomensurável detalhe – essas lágrimas em especial não vêm do corpo.
Vêm da alma…