– Não tem o menor cabimento!
– Como não? Não é para compartilharmos tudo? Então?
– Meu amor (tom de paciência e resignação após respirar profundamente), entenda que MEU Facebook é MEU Facebook! Não faz o menor sentido você utilizá-lo para postar as suas coisas!
– Ah, é? Mas se eu não posso utilizar nem mesmo o meu, então isso significa dizer que eu posso utilizar o seu!
– Você que utilize o seu do jeito que quiser!
– Ah, mas agora eu até já apaguei ele.
– Nem me venha com essa. Você sabe que a qualquer tempo dá pra recuperar tudo. Você já fez isso muito mais de uma vez!
– Escuta: de que adianta eu ter o meu Facebook se eu não posso colocar aquilo que quero? Você não deixa!
– Não é que eu não deixo, mas toda vez que você muda sua senha e eu não consigo acessar o seu Face, acabo ficando desconfiada, né?
– Desconfiada de quê? Em todos esses meses que estamos juntos já lhe dei motivos pra não confiar em mim?
– Ah, você deve estar brincando, né? E aquelas sirigaitas que ficavam flertando com você no Inbox?
– Não, mas aquilo não tinha nada a ver…
– Ah, não? Tá bom. Faz de conta que eu acredito.
– Mas aquilo foi passado…
– Passado ou não, não interessa. Você tem o SEU Face e se quiser publicar alguma coisa que vá na timeline do SEU Face.
– Como se eu pudesse.
– Ah, não pode, é?
– Não. VOCÊ não deixa! Toda vez que eu coloco meu posicionamento político ou tento encorajar algum movimento social, você vem me dizer que aquilo vai te prejudicar de alguma forma!
– Acontece que você não pensa! Tudo o que você vê é a necessidade de escrever o que quer, de colocar sua posição! E eu, como fico? Seu “posicionamento político” é totalmente diferente do meu, não dá pra deixar, na minha própria timeline, que as pessoas pensem que eu concordo com aquilo que você escreve!
– Tá vendo? Tá vendo? É esse o problema: você me sufoca. Eu fico travado, não posso falar o que penso, não posso sequer discutir aquilo que acredito ser o certo. Que culpa eu tenho se o MEU certo é diferente do SEU certo?
– O problema não é esse. O problema é que você vende uma imagem de “salvador da pátria”, do lutador, do batalhador, de alguém que respira revolução. Como se na vida real você fosse assim! Acho que é esse realmente o problema: sua imagem na Internet é mais importante que nosso relacionamento! Desse jeito não é possível!
– Ah, imagem, é? Então vamos falar de imagem. E você, então? Você é a pessoa mais antissocial que eu conheço. Entre sair com meus amigos e ficar em casa vendo filmes e séries baixados da Internet, você não pensa duas vezes! Aquela moça cheia de sorrisos, cheia de energia, toda atleta e tudo mais que aparece nas fotos da sua timeline simplesmente não é a mesma pessoa que passa por essa porta todas as noites!
– (…)
– Ah, não acredito! Ficou sem resposta, né? A verdade dói, não é mesmo? E é por isso que, já que eu não posso fazer o que quero no meu Face, então vou usar o seu Face pra isso. Daí você vai ter o gostinho de sentir a mesma sensação que senti em todos esses meses: violado moralmente!
– Se tá tão ruim assim, então por que é que ainda estamos juntos?
– Eu gosto de você. Eu te amo! Mas não posso deixar minhas convicções de lado.
– Suas convicções… Sua imagem, isso sim!
– Que seja, mas é o que sou – e não vou mudar!
– Olha, se o problema é a Internet, então vamos fazer o seguinte: não deixe de ser quem você é. Vamos ficar fora disso. Por um tempo. Sei lá, vamos tentar… Por favor?
– Como é que é? E como vou pagar minhas contas? E os e-mails com meus contratos? E a publicidade pelo Face? E a política?
– Dá pra fazer tudo isso sem Internet…
– Meu amor, entenda: não existe vida sem Internet.
E assim terminou aquela discussão. Naquele momento. De modo fulminante. Não havia mais nenhum argumento. Nada mais a declarar. E naquela noite foram se deitar. Emburrados, enfezados, cada qual com um nó na garganta. E agora? Como continuar? Voltar atrás? Permanecer daquele jeito? Sem respostas, assim dormiram. Bunda com bunda.
Mas, por sorte ou por azar, quis o Destino se intrometer nessa briga, inserindo um inesperado capítulo nessa novela que estava longe de acabar. Em se falando do mundo da informática como vilã, eis que, exatamente por uma providencial confusão no processamento de dados nos computadores do banco, os débitos em conta não caíram no cartão de crédito. E assim, menos de um dia depois da desavença, viram-se eles chegando em casa tarde da noite enfrentando um breu sem saber o porquê. Sem energia. Sem telefone. Sem celular. E, obviamente, sem Internet.
No começo foi esquisito. Não tinham como se mover naquela escuridão. Lanternas? Quem tem isso nos dias de hoje? E, ainda que tivessem, as pilhas já teriam se esgotado. Velas? Nem de aniversário. Mas tinham aquelas aromáticas! O jeito era espalhar as poucas existentes pela casa.
E assim foram tomados por aquele novo e estranho ambiente de aconchegante e perfumada penumbra…
No dia seguinte, cada qual em seu canto, cada qual em seu trabalho, ambos ainda tentaram – sem sucesso – vencer a confusão que o computador lhes proporcionou. Continuavam desconectados do mundo. Nem mesmo os celulares permitiam acesso! Mas a vida continua e as contas vencem nos prazos de sempre. Com o cartão bloqueado a saída era pegar a fila no banco. Audácia! Imaginem, nos dias de hoje, serem submetidos a uma forma tão arcaica de atitude.
– E aí, sujeito!
– Hm? Ah, oi. E aí, moça, há quanto tempo, hein?
– Só se for pra você! Que acontece? Faz uns dois dias que não te vejo online…
– Ah, não. Só tô dando um tempinho, sabe? Internet demais, sabe como é…
– Ah, não sei não! Eu não consigo ficar um dia sem saber o que está acontecendo! Mas – nossa – não sabia que você estava assim com o cabelo grisalho. Sua foto lá está diferente…
– É… Tá meio velha, né?
– Não sei porque não atualiza. Ficou bem assim. Na verdade, se pensarmos bem, acho que já tem meses que nos vimos pessoalmente!
– É mesmo! Foi quando nasceu seu filhote! Como está o bebê?
– Já está andando, rapaz! Você realmente tá fora do mundo real, hein?
E foi assim, com aquela frase final na cabeça, que naquela noite ele voltou para casa começando a vislumbrar e perceber o quanto de razão poderia haver em tudo aquilo. E ambos conversaram sobre isso, conversaram muito mesmo, pra tentar se entender. E, agora já sob a luz de velas de verdade emolduradas num belo castiçal que ela havia encontrado num brechó durante o dia, jantaram animadamente – como há muito não o faziam – e brindaram com suas já não mais empoeiradas taças de vinho. Por um breve momento quase lamentaram a falta de um Instagram para registrar o momento – mas, afinal, isso serviria para quê? Só pra fazer inveja a quem quer que seja? Bobagem. A vida a dois era muito mais importante. E, desde que se conheceram – pela Internet, diga-se de passagem -, pela primeiríssima vez estavam tendo uma noite a dois, sem a presença da multidão onipresente que invariavelmente os cercava: e-mail, blogs, Facebook, Twitter, Instagram, Foursquare, WhatsApp, GTalk, e sabe-se lá quantas outras “ferramentas” inventadas para trazer a comodidade que eles simplesmente não precisavam.
Mas que também não sabiam inexistir.
Simplesmente por forças ocultas alheias – sim, o Universo conspira quando necessário – ambos se viram obrigados a viver uma vida desconectada. Por mais tempo que imaginavam e, o que no início era um desconforto, passou a ser uma cotidiana busca de opções. Nada de filmes ou seriados na portentosa TV de cinquenta polegadas – por não poder baixá-los e, muito menos, assisti-los. Compartilhar livros começou a tornar-se um hábito e discutir – no bom sentido da palavra – o posicionamento de cada qual com relação aos autores, mais ainda. Receber (e conhecer) amigos de um de outro, também. O que era a princípio estranho para as visitas, tornou-se um charme. Motivo de comentários nas redes sociais – dos quais eles sequer tomavam conhecimento. Sem energia o negócio era improvisar, de modo que sempre tinha alguém com um violão, uma flauta e – pasmem! – até mesmo um violino, numa memorável noite de foundue!
O problema tão digladiado na origem perdeu-se na memória, pois não havia – nem por parte de um nem por parte de outro – nenhuma necessidade de “passar uma imagem” de quem pretendiam ser. Pois, do ato ao fato, passaram efetivamente a sê-lo. Até mesmo a política, essa eterna controversa, passou a ser melhor compreendida entre ambos. Não que tenham mudado seu posicionamento – jamais! Entretanto, por pura falta de opção, se viram obrigados a entrar um na cabeça do outro e compreender o que cada um pensava e se forçar a rever suas próprias íntimas convicções, sem ninguém para “curtir” ou “comentar” algum eventual desabafo de momento. E, como sempre, respeito gera respeito.
Mas, como dizia o poeta, tudo que é bom um dia acaba.
E os computadores resolveram fazer as pazes e solucionaram os problemas de débitos e créditos pelo qual tanto tempo foram submetidos.
Numa bela noite de sábado, após um revigorante dia com amigos de ambos na piscina do condomínio (sim, lá havia uma piscina na qual jamais haviam sequer chegado perto), entre confusos e ofuscados entraram naquela estranha casa toda iluminada para só então descobrir que era a mesma em que moravam. E ela lhes pareceu apática e sem personalidade. Jantaram cabisbaixos e foram dormir em silêncio. E agora? Como continuar? Voltar atrás? Permanecer daquele jeito?
No dia seguinte resolveram tomar seu café da manhã fora, como também há muito não faziam. Aquela casa agora era estranha, cheia de sons silenciosos e zumbidos ocultos que lhes testavam a compreensão. E, mais uma vez, conversaram, conversaram muito pra tentar se entender.
E assim o foi. A televisão, venderam. Os computadores, também. Os tablets e notebooks viraram presentes para filhos de amigos.
Como sei de tudo isso? Encontrei-os há pouco, na usual “feira do rolo” de domingo, aqui perto de casa. Tinham acabado de fazer uma troca, com um atônito rapazinho, em que entregaram seus ultramodernos smartphones por aparelhos da década passada, somente de teclas e ainda com aquele visor verde. De quebra estavam levando também uma coruja de madeira e uma bomba de ar, daquelas antigas, para encher o pneu de suas bicicletas.
– Uai? Depois de tudo isso, celulares, é, moça?
– É. Não dá pra fugir de tudo, né? Mas somente daquilo que for possível…
– Tãotáintão. E no mais?
– No mais? A vida continua!
E foi assim, olhos nos olhos e sorrindo, que os vi desaparecer de mãos dadas no meio daquela multidão de pessoas reais.