Diante da polêmica desatada quanto aos direitos da Legião Urbana sobre a obra de Renato Russo, além do uso criminoso de sua música “Que País é Esse?” nas manifestações de extrema-direita, resolvi investigar e entrar no assunto.
Alguns pecados foram cometidos contra a memória de um dos nomes mais talentosos da cultura nacional. Ainda não deixaram em paz o compositor, músico, poeta e artista multimídia Renato Manfredini Júnior.
São muitas as mortes do genial Renato Russo.
A primeira foi sua morte física, vitimado pela AIDS aos 36 anos de idade, em 1996. Ele se foi no auge de sua capacidade criativa, no ápice de uma produção brilhante, quando compunha verdadeiros poemas e depois, com o esmero de um ourives, lhes adaptava a melodia.
Agonizou a seu modo, discreto e altivo, enfrentando com evidente tranquilidade o seu determinismo biológico. Assistido pelo velho pai, um advogado de renome e alto funcionário do Banco do Brasil, preparou a cerimônia do adeus, que ia da destinação de toda herança a Giuliano, seu filho único, até mesmo ao local onde deveriam ser jogadas ao vento suas cinzas, nos jardins do sítio de Burle Marx. Clarividente, Renato conservou o bom humor nos dias tristes do fim. Morreu entre livros, desenhos, letras inéditas e seus discos, num dia ensolarado da primavera carioca. Já era um mito.
Outra morte, a segunda, ocorreu longe da atenção do distinto público, do sofrimento da legião de fãs da Legião Urbana e do conhecimento da imprensa. Foi a maneira como seus parceiros na célebre banda lidaram com o fim do grupo e a partida do seu líder. Um deles, Dado Villa-Lobos, chegou a agredir fisicamente o pai de Renato, um homem cuja honestidade era patente e inatacável, por motivos fúteis. Filho de um diplomata que serviu a ditadura militar com fidelidade canina, a agressividade do explosivo Dado era algo como um resquício do ambiente pesado da Brasília recém liberta dos milicos e suas práticas. Por essa época Dado alardeava,inclusive na imprensa, que se recusava a participar de “um velório sem fim”.
O outro integrante da banda era Marcelo Bonfá. Manuscritos de Renato, encontrados recentemente em seu apartamento (ainda hoje intocado, preservado como estava no dia de sua morte), deixam mal o moço, a quem Renato atribui um comportamento mesquinho e irascível. Com Dado, ele compunha o cenário onde Renato esbanjava charme mesmo sendo um homem feio. Renato lançava uma forma de dançar girando os braços que, mesmo desengonçada, caiu no gosto do país e influenciou declaradamente Caetano Veloso, por exemplo. Seu timbre de voz, grossa, algo melodramática, caiu no gosto de dezenas de milhões de admiradores e reverbera ainda hoje na memória deles todos, em gravações reproduzidas em rádios, em TVs, na internet ou em festas, bares, festivais.
Renato era um gênio, carismático e temperamental. Seus companheiros da Legião eram pouco mais que pajens, cambonos ou auxiliares de palco. Depois do fim da banda e da morte do seu líder, os dois jamais aconteceram, vivendo como ciprestes florescidos à beira do túmulo, herdeiros de milionárias migalhas de um eventual e finado parceiro. A extensa produção musical, profícua e exuberante, se foi com Renato Russo. Dado e Bonfá recebem os direitos autorais das parcerias com o falecido (algo como pouco mais de 20% do que Renato compôs) e não estouraram nas paradas de sucesso, não demonstraram algum insuspeito talento, alguma genialidade inesperada, um brilho que não se apresentou talvez por não existir.
E o que fizeram a família, o herdeiro, os que administram o legado artístico e empresarial do desaparecido líder da banda que morreu com ele? Continuaram a tocar adiante o patrimônio tanto material quanto artístico deixado por Renato Russo. O filho, Giuliano, adotou um modelo de gestão muito parecido com o que João Cândido Portinari utiliza para preservar o legado de seu pai, nosso maior artista plástico. Cercou-se de advogados, administradores, curadores e pesquisadores da obra de Renato. Muitos deles, amigos do fundador e líder da Legião.
Aí acontece a segunda morte de Renato Russo. E ela envolve caráter. E dinheiro, muito dinheiro.
Os seus antigos companheiros de banda, que até então cometiam abusos como shows na boate Kiss, trágico palco da tragédia de Santa Maria (RS), tournée internacional no Uruguai sem autorização da família, um desastrado tributo com Wagner Moura protagonizando Renato no palco, sempre utilizando o nome “Legião Urbana”, uma marca histórica a ser preservada. Os herdeiros de Renato perdoaram as leviandades, engoliram os abusos, nada fizeram. E erraram, certamente.
O legado já estava sendo organizado, um farto material esparso sendo reunido, a obra tomando um bom rumo e passando a ser gerenciada com profissionalismo e competência. Como, aliás, o fazem os herdeiros de Tom Jobim, de Jorge Amado, de Frank Sinatra… A cultura deve ser tratada como um bem para consumo público mas dotada dos instrumentos que a protejam, preservem, evitem sua deturpação ou mesmo sua morte.
Aqueles rapazes secundários no palco de Renato, parceiros em bem menos de 1/3 das músicas (as letras, todas, de autoria de Renato), resolvem ir à Vara da Fazenda, na Justiça do Rio de Janeiro, e alegam através de seus advogados que eram donos da marca, já que a Legião era um trio, Renato morreu e eles teriam direito a 33% cada um, cabendo aos herdeiros a terceira parte, tão somente.
E fazem, através das redes sociais, um estardalhaço absoluto, total, amparados por uma legião estridente de fãs da Legião Urbana. Fãs sinceros, aliás, mas desinformados da questão envolvida: um assassinato de direitos.
A história é longa, mas pode ser contada em poucas linhas.
Renato sempre foi um sujeito extremamente organizado, meticuloso, cuidadoso com suas coisas, direitos e obrigações. Não parecia, mas era. E registrou nos idos de 1987 a marca Legião Urbana, através de uma empresa da qual presenteou (isso: presenteou) Dado e Bonfá com uma pequena fração (8 alíquotas cada um), ficando senhor absoluto do controle acionário total, com 198 alíquotas. No mesmo ano, a dupla revende ao mesmo Renato o que dele havia recebido como mimo.
Quase duas décadas depois da morte do líder da banda, e mais de duas décadas depois do negócio – por sinal registrado na Junta Comercial de Brasília – os que ganharam, revenderam e receberam o acertado, resolvem que são donos do que venderam! E em fração muito maior, algo como saltando de irrisórios menos de 10% para 66% da empresa!
Giuliano é um jovem apaixonado pela obra e pela memória do pai. Pelo que se sabe, vive longe da badalação e pouco usufrui da riqueza material, discreto que é. Teve o mérito de reorganizar a obra e de administrá-la assessorado por profissionais da área. A cultura agradece. Porém, ele apanha de gente que sequer havia nascido quando seu pai morreu, insuflados pela desinformação, como uma matilha virtual no Facebook. Recordam o caso de uma ex-amante de Di Cavalcanti que, de posse de uma carta duvidosa do grande pintor, impediu que a obra de Di fosse festejada, citada, organizada, utilizada em benefício do país e dos autênticos herdeiros. A história sequer registra o nome dela. Mas sua loucura atrasou em décadas um trabalho que ainda hoje não se fez.
Os ambiciosos ex-pajens de Renato estão perdendo no mérito. Não vão morder o dinheiro que não lhes pertence. Mas lograram o discutível direito de se utilizarem da marca em suas apresentações em shows, como aquele da boate-crematório. Que sejam felizes.
A terceira morte de Renato Russo é a mais cruel de todas. É ideológica.
Renato foi um homem avançado, declarado admirador de Lula, leitor dos clássicos da literatura mundial, conhecedor dos pensadores e grandes personagens históricos. Sua obra é claramente revolucionária, quebrando paradigmas, inovando, rompendo tabus e se impondo por um nítido caráter transformador. Mas em manifestações da extrema-direita, como a ocorrida dias atrás na Avenida Paulista, a meia-dúzia de ratos pingados entoava “Que país é esse?”, ao mesmo tempo em que defendia o impeachment de uma presidente reeleita faz poucos dias, urrava pelo retorno dos militares, defendia a pena-de-morte entoando um verdadeiro hino que reverbera nas consciências. Um escândalo, um absurdo. As cinzas de Renato voaram, de novo, nos jardins de Burle Marx.
O mais amargo tributo que os grandes artistas pagam é o eventual desvio de finalidade das obras que nos legam. Picasso renasceria para morrer de novo se Guernica fosse exposta no palácio de um ditador.
O direito à propriedade intelectual, o direito autoral, a preservação da obra e o respeito à produção cultural são verdadeiros dogmas. Não cabe discussão barata com quem não entende do assunto e com quem não respeita a lei. Ou pior, com quem quer faturar o que não lhe pertence.
Palmério Doria