Atleta urbano – mesmo sem querer

E então, logo cedinho, café preparado, tomado e processado, eis que saio para levar os filhotes para a escola. De cara já encontro o saco de lixo reciclável meio rasgado, meio espalhado. Taquiôspa! Querem fuçar, fucem – mas precisa rasgar e espalhar? Como invariavelmente o lixeiro passa às sete – e só faltavam alguns minutos – pedi para a Dona Patroa juntar tudo aquilo. Dali em diante, operação padrão: levei os filhotes, soltei-os pelo “drive-thru” da escola (é esquisito, mas é isso mesmo…) e voltei pra casa. Minha excelentíssima senhora raio de sol ainda estava a varrer os últimos pedacinhos de papelinhos.

– E aí, deu tempo?

– Quase. Ficou um pouquinho pra trás…

– Paciência. Falta do que fazer, né?

– É. Vamos correr?

Essa última frase é só pra comprovar que a Dona Patroa dirige pra lá de perigosamente quando está numa conversa. Ela muda de assunto numa guinada de 180 graus, sem dar seta, nem sinalizar. Normalmente isso me faz perder alguns segundos até que eu possa me situar e me adaptar à nova situação. Ou ao novo assunto, como queiram.

– Nah… Não tô legal…

– Isso é ressaca! Não foi a cachaça de ontem, não?

– A-mor-da-mi-nha-vi-da (assim mesmo, desse jeitinho lento e sincopado, que é para garantir total atenção), entenda uma coisa: eu sei muito bem o que é ressaca. E isso não é. Pelo jeito estou ficando é meio gripado. Prefiro ficar em casa, mesmo.

Só para lembrar nossas desventuras tuitísticas compartilhadas nas redes sociais: eu, de férias, passei praticamente os primeiros quinze dias conjuntivitiaditivado. E, agora, na segunda quinzena, provavelmente deverei passar engripado. Garganta coçando e a cabeça doendo.

E, de volta à nossa desventura, lá se foi ela rua afora, lépida e faceira, com seus bem pesados cinquenta quilos distribuídos por um metro e cinquenta e três de pessoinha. Hah! Tô fora. Prefiro mais é tomar um (outro) café.

Passado um tempinho, pontualmente vinte para as oito, eis que toca a campainha. Estranho. A empregada somente chega às oito…

Fui dar uma olhada e, lá embaixo, estava a Dona Patroa aguardando para que eu jogasse as chaves. Ah, só pra contextualizar: nossa casa foi construída acompanhando um morro, de modo que o primeiro patamar, no nível da rua, abriga a garagem, o segundo patamar, um andar acima, a casa propriamente dita e ainda há um terceiro patamar, no quintal, onde fica lavanderia, varais, as plantas que a Dona Patroa planta para meu sogro cortar quando ela menos esperar, etecétera e coisa e tal. Isso faz com que tenhamos um muro de uns quatro metros a proteger a frente desse verdadeiro bunker – muito prático, diga-se de passagem. Lá de cima dá pra ver quem tocou a campainha e até fazer de conta que não tem ninguém, conforme seja um cobrador, um oficial de justiça ou uma testemunha de jeová. Bom, enfim, tirei um sarro por ela não ter levado a chave e joguei-lhe o molho. Aliás, sabiam que, nesse contexto, pronuncia-se “mólho”? Sim, sim, continuamos hoje e sempre com nosso programa de cúltura inútil…

Foi quando ela me respondeu:

– Engraçadinho! Caiu na escada, não foi?

Na hora já compreendi que ela não havia esquecido as chaves, mas, sim, perdido. Engoli em seco.

Por mais que o bunker seja um bunker, com a chave certa qualquer um facilmente entra. Simples assim. Perguntei-lhe se era sério. Era. Merda. Calcei o tênis e, a contragosto, parti para a caminhada que não queria fazer em busca das chaves de casa. “Está num chaveirinho assim, azul…”, ela me disse. Ah, que ótimo! Facilitou muito. Com isso devo ter descoberto no mínimo umas dez espécies novas de miosótis que nasceram por toda extensão da mata lateral à calçada em que costumamos caminhar…

E eu ali, engripado, preocupado, com dor de cabeça e a garganta arranhando, tal qual Lancelote, parti na empreitada em busca da santa chave perdida.

Isso é só pra provar que, por mais que você esteja fodido, as coisas ainda podem piorar. Sempre. É como aquele caboclo que perdeu a namorada, está arrasado, sem vontade de trabalhar, de comer, sequer de viver, e, para coroar tudo isso, teima em buscar a música mais dor de cotovelo que existe na face da Terra e colocá-la para tocar em alto e bom tom, que é pra poder afundar de vez na fossa, chorar copiosamente sua perda e arrebentar com tudo de vez.

Mas tergiverso.

E lá fui eu, passo a passo, literalmente escaneando a calçada, o meio-fio, a mata adjacente. Meu sexto sentido me dizia que essa chave somente poderia ter sido perdida em um de três lugares distintos, que é onde eu faria uma busca com maior acuidade. Mal caminhei cinquenta metros e um caboclo do outro lado da rua, de uma empresa que trabalha com gesso, começou a me chamar, balançando um jogo de chaves ao alto. Não acreditei! Ele me viu procurando alguma coisa e supôs que seriam aquelas chaves. Que sorte!

Atravessei a rua e ele me perguntou se eu estaria procurando algumas chaves, eu lhe disse que sim, ele disse que tinha aquelas ali que tinha encontrado na mesma calçada de caminhada, eu lhe agradeci, dizendo que a Dona Patroa tinha perdido as chaves ainda há pouco, enquanto pegava de sua mão aquele chaveiro vermelho (Péraê, péraê! Vermelho?…), ao que ele disse que não, não era de hoje, mas tinha encontrado aquelas chaves há alguns dias, quando conclui que não, aquela não era nossa chave, então tá, fica assim, paciência, boa sorte aí pra você e tomara que encontre sua chave! A conversa foi mais ou menos essa e só sei que saí de lá sem chave nenhuma. Que azar!

Continuei minha inglória busca enquanto, para ajudar, o sol começava a despontar. Já cansei de lhes falar que eu e o sol nunca tivemos um relacionamento lá muito bom. Sou, por excelência, notívago e quando me exponho ao dito cujo, em que nível for, tenho vampirescos problemas de pele. Não. Nada a ver com aquela viadagem do Crepúsculo, onde vampiros viram purpurina. Minhas reações estão mais para Christopher Lee, aquele dos antigos filmes de vampiro, dos estúdios Hammer, da década de cinquenta, pois qualquer pouquinho a mais de queimadura com qualquer mínima exposição que eu tiver ao sol e ainda acabo virando pó.

 
Oi?

Não sabem de quem estou falando?

Tudo bem, vocês fazem parte da geração que somente vai lembrar desse ator no recente papel de Conde Dookan, da saga Star Wars, ou, ainda, como Saruman, em Senhor dos Anéis…

E passo a passo prossegui até o ponto que costuma ser o limite da caminhada da Dona Patroa. E nada. Fucei e fucei na grama, nos equipamentos de ginástica, no mato, em tudo quanto é canto e nada. Resolvi voltar e, agora, prestar mais atenção no meio-fio. Mas sem descuidar do resto. E cada um que passava por mim, eu ainda tinha um mínimo de esperança que olhasse para aquela patética figura da minha pessoa e dissesse: “Parece que você está procurando algo. Seria uma chave? Acabei de encontrar esta ali atrás…” Nisso eu ficaria agradecido, sorriria, diria algum gracejo, agradeceria novamente e tomaria o rumo de casa, pronto para, vitorioso, me apresentar à Dona Patroa. Mas a vida é uma caixinha de surpresas… Ou não. Nada de ninguém me abordar e, muito menos, de eu encontrar a malfadada chave.

O que me faz lembrar de um antigo causo da época da faculdade. Tínhamos um professor, o P.C., que, se não me engano, dava aula de Direito Penal. Jé era um princípio para eu não gostar do caboclo… Mas acontece que ele adorava contar his(es?)tórias de sua própria época de faculdade – para desencanto geral de nós, pobres alunos ouvintes… Uma delas diz respeito a uma farra que eles fizeram numa noite, na praia, e no dia seguinte, ainda de ressaca, ele saiu a procurar o relógio que havia perdido. Palavras dele (juro!):

“- Então eu estava ali, com o sol começando a raiar, procurando meu relógio naquele mundo de areia. Mas, de repente, eu vi um brilho e percebi que só podia ser meu relógio. Isso porque era um brilho diferente, pois, não sei se vocês sabem, o ouro de um Rolex legítimo realmente tem um brilho diferenciado…”

Sim. Pasmem. Essas eram minhas aulas de Direito Penal.

E que pena que nem o chaveiro nem a chave perdida sejam de ouro de (en)Rolex. Eu poderia chamar esse antigo professor pra ver se encontrava a porra da chave.

Enfim, cheguei em casa. Fui confirmar mais uma vez se ela não havia esquecido as chaves no próprio bolso, ou perdido em frente de casa, sei lá. Nada. Com ela já pronta para sair para o trabalho, desci até a garagem para que trocássemos os carros de lugar (logística, lembram?). Mal saiu e eu, ainda manobrando o bom e velho Cruzador Imperial (também conhecido como Opalão), eis que ela volta.

– Uai? Que foi?

– Óculos.

– Êitcha! Parece que o dia hoje promete. Quando você não está perdendo alguma coisa está esquecendo outra…

E lá se foi ela escadas acima atrás dos óculos. E nadica de nada das chaves. Paciência. E tudo isso somente para uma coisa serviu: para que eu, mesmo não querendo, acabasse fazendo uma caminhada. Ainda que gripado.

Ah, antes que eu me esqueça, quanto àqueles três lugares distintos que minha infalível intuição garantiu que as chaves estariam: não estavam.

Ou seja, já tá na hora de recalibrar essa piromba de sexto sentido…

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