Os óculos do Papa Francisco e o Auxílio Moradia do Poder Judiciário: Privilégios e República

Fernando Neisser

Recentemente o Papa Francisco fez algo prosaico: foi às ruas comprar um par de óculos. Ao menos para mim ou você; não para um Papa, cargo historicamente cercado de uma liturgia quase impenetrável. Faço a ele um elogio; mas antes me permito explicar porque não o faço em razão de suas posturas estritamente políticas ou teológicas.

Não sou católico, nem mesmo religioso. Assim, se digo que concordo com suas manifestações costumeiras de tolerância com os desgraçados e perseguidos de sempre, é preciso ter honestidade intelectual: não tenho como afirmar que seus posicionamentos estejam certos ou errados de acordo com o credo da religião que lidera.

Daí porque não me sinto minimamente habilitado a dizer se é um bom ou mau Papa, sob o ponto de vista da Igreja. Posso, por outro lado, avaliá-lo na condição de líder mundial e, até mesmo, de Chefe de Estado, como político que é. E nesta chave seu exemplo é brilhante.

A ida à ótica foi só mais uma mostra da simplicidade que impõe ao exercício de seu múnus. Abriu mão dos suntuosos aposentos papais em troca de viver em um dois-quartos no Domus Sanctae Marthae, ali ao lado. Seu veículo é um Ford Focus… comprado usado.

Esta humildade pública, ao menos a mim, parece sincera; mas pouco importa. Ao menos quando não está em julgamento sua crença – para o que importariam os motivos -, mas seu exemplo político – no qual apenas a ação externa interessa.

Tal forma de exercício do poder não é exclusiva do atual Papa. Há tempos sabemos que parlamentares suecos moram em pequenos apartamentos, lavam suas próprias roupas e vão trabalhar de bicicleta. Tradicionalmente o Primeiro Ministro inglês usa o metrô e, outra semana, foi fotografado em viagem oficial à Espanha na classe econômica.

Rigorosamente o oposto do que vemos no Brasil e, em geral, nos países com altos índices de corrupção e desigualdade.

Aqui, cada oportunidade de uso de um privilégio é não apenas aproveitada como estendida quase ao infinito. Carros oficiais são trocados periodicamente. Auxílios de toda sorte – alimentação, moradia, paletó, creche, etc. etc. etc. ad nauseam – são distribuídos, como se remunerações que representam vinte a trinta vezes o salário mínimo não fossem suficientes para custear tais despesas. Sempre que possível a viagem se dá em classe executiva, com acompanhante e em hotéis de primeira linha.

E a prática não se restringe ao que entendemos tradicionalmente por políticos. Juízes, membros do Ministério Público, altos servidores, ministros, secretários… Todos que podem o fazem.

Agem ilegalmente? Não. Assenhorados da feitura das normas, fazem-nas de modo a tornar lícitos seus privilégios.

Agem legitimamente, contribuindo para uma sociedade melhor? Igualmente não.

O problema não é apenas o péssimo exemplo, que torna cada vez mais odiados pela população em geral os detentores do poder.

O pior é que desde logo os cidadãos percebem que ocupar cargos públicos significa dispor de benefícios inacessíveis aos demais. Atrai-se com isso, no longo prazo, exatamente o tipo de gente que só tem como norte na vida a busca por esta forma de ascensão na escala social: desigual, quase aristocrática, nada republicana. Tem-se um círculo vicioso.

Este tipo de ambição, ínsita a boa parte das pessoas, tem lugar próprio em uma sociedade capitalista: a iniciativa privada. É lá que devem se digladiar os que almejam alugar uma Ferrari em suas férias na Costa Amalfitana, produzindo, neste meio tempo, bens e serviços para a coletividade.

Ao menos era para ser assim. Nosso Estado, vejam só, compete com o mercado e o faz em condições desiguais: a muitos dá estabilidade, aposentadoria integral e pouca cobrança de produtividade. Aí é duro desenvolver um setor privado competitivo.

Assim, qualquer mudança de longo prazo no Brasil, que tenha por objetivo construir uma República onde ainda grassa um arremedo patrimonialista, deve necessariamente superar este problema. E deve fazê-lo rapidamente, de forma sucinta e radical.

P.S. 1: Não generalizo o aproveitamento dos privilégios, falo aqui de forma genérica. Tenho muitos amigos que trabalham em governos, parlamentos, no Judiciário ou no Ministério Público e que não apenas abrem mão, como criticam tais despautérios.

P.S. 2: É preciso deixar claro que não defendo de modo algum a onda de falso moralismo que vem assolando algumas cidades pelo Brasil, clamando para que os salários de vereadores sejam zerados ou tornados irrisórios. Há que se tomar cuidado para evitar que somente os ricos possam fazer política. A remuneração deve ser digna, de modo a permitir a dedicação integral ao serviço público. Ao parlamentar, membro do Executivo ou do Judiciário. Mas nunca faustosa, exagerada, carregada de penduricalhos, como se vê.

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