A Biblioteca

Já faz um bom tempo que não escrevo…

Não tanto por falta de querer, nem menos por não ter assunto – talvez mais pela ausência de algo que me desperte a vontade…

E eis que, dia desses, uma amiga com a casa em reforma contou, toda orgulhosa, o amor que tem por seus mais de mil livros.

Mil livros!

Não é pouco não!

Nos dias de hoje não conheço muitas pessoas que possam se orgulhar de ter um acervo com um número desses (e vocês, os Bicaratos, não contam!)… Conheço, entretanto, uma ou outra moçoila que certamente, ainda que não os tenha, já deve ter lido muito mais que isso, invariavelmente curtindo ao fundo alguma música dos anos oitenta e saboreando uma boa taça de vinho!

Anos oitenta…

Quando essa década perdida começou, contava eu lá com meus dez pra onze anos de idade. Cursava a quinta série numa escola pública – EEPG “Dr. Rui Rodrigues Dória” – em Santana. Pertinho de casa, à distância de apenas duas quadras. Invariavelmente tínhamos um ou outro trabalho pra fazer, quando então era necessária uma pesquisa mais aprofundada. Internet? Google? Redes sociais? Esqueçam! Mas nem os filmes de ficção da época podiam prever este nosso atual “admirável mundo novo”… Assim, sem pré-condicionamentos do que deveríamos ou poderíamos fazer, a biblioteca da escola era o nosso primeiro destino.

Simplesmente pífia!

Não sei se por falta de alguém com conhecimento mais aprofundado, se por falta de recursos ou de vontade mesmo, lá era um lugar onde, na época, mal encontrávamos alguns livros de leitura obrigatória. E só.

Alguns sortudos, de vida mais abastada, ainda tinham em casa a famosa “Barsa” – antiga enciclopédia vendida de porta em porta, constituída por quase duas dezenas de livros de bom tamanho (ótimos como enfeite das prateleiras da sala), e que, em termos de informação e conhecimento, possuía um pouco de tudo em todas as matérias. Lá em casa, quando muito, tínhamos os quatro livros que formavam a “Enciclopédia do Estudante”. Funcionava assim: toda semana chegava nas bancas um novo fascículo e a gente ia montando o conjunto; ao final vinha uma edição especial com a capa dura, quando então juntávamos tudo e levávamos para encadernar. Voilà: um livro inteirinho à nossa disposição!

Mas às vezes nem mesmo isso era suficiente. O negócio era pegar o busão para o Centro (ou, dependendo do dia, ir a pé mesmo – apenas uns três quilômetros) e buscar informações lá na Biblioteca Pública Cassiano Ricardo.

Onde ficava? No mesmo lugar onde hoje se encontra, mas havia algumas fantásticas diferenças na época…

Pra começar, ainda que o acervo já fosse maravilhoso, não havia nada daquela interna construção atual composta de vidro e aço. Era um antigo casarão assobradado. E só. Sabem como é? Com cheiro de casa antiga, cera nos assoalhos de madeira, uma ou outra goteira aqui e ali e – por que não? – algumas teias de aranha esparsas, nos cantos mais altos e difíceis de limpar. Lembro-me bem que lá dentro era geladinho – daquele mesmo tipo de friozinho de quando entramos numa dessas igrejas mais antigas – e sem ter nenhum sistema de ar condicionado em canto algum!

A origem desse casarão remonta ao ano de 1907, quando nem mesmo existia, mas uma comissão formada por moradores do município fez a proposta de construção de um teatro para a cidade. De propriedade de Bertolino Leite Machado, construído pelo Major de Finis e tendo Graciano Fachini como Mestre de Obras, o “Theatro São José” foi inaugurado em 24 de dezembro de 1910. Foi o centro da vida cultural durante as décadas de dez e de vinte, funcionando ainda como cinema e salão de bailes.

Mais tarde, nos anos trinta, juntamente com algumas áreas vizinhas, foi adquirido pela Prefeitura Municipal e nas décadas seguintes abrigou tanto a sede da Prefeitura quanto da Câmara Municipal. O Legislativo saiu dali no final da década de sessenta e o Executivo, na de setenta, quando então a Biblioteca Pública foi transferida para o local, lá permanecendo até os dias de hoje.

Naquela época, no início dos anos oitenta, a entrada se dava pela porta lateral, na Rua Sebastião Hummel, bem de frente com a esquina da Sciamarella, quando já nos deparávamos com o guichê e um balcão nos aguardando logo adiante e, à direita, uma longa escada de madeira.

E era ali, nos degraus daquela escada, que a magia começava!

Ao chegar na parte de cima do antigo sobrado encontrávamos os fichários – se não me engano, eram três: por título, por autor e por assunto. E quando digo “fichário”, é porque era isso mesmo! Cada um dos livros possuía sua correspondente ficha devidamente arquivada, um pequeno pedaço de cartolina retangular devidamente datilografado com informações indicando em que sessão, armário e prateleira as obras estariam nos aguardando. Nada de computadores, buscas ou downloads! O que havia eram alguns bloquinhos de notas ao alcance para anotar os dados e então…

Pensaram que eu ia dizer “bastava pedir para alguém pegar o livro”, certo? ERRADO!!!

Os tempos eram outros e tínhamos acesso direto ao acervo, o que era simplesmente delicioso! Às vezes eu ia buscar um determinado livro e encontrava diversos outros ainda mais interessantes, simplesmente porque estavam todos ali, pertinhos uns dos outro e totalmente acessíveis. E, não raro, eu simplesmente ia até lá para ler alguma coisa. Ainda estava bem no começo do início da minha adolescência, não tinha desenvolvido minha paixão por bicicletas e as meninas eram simplesmente boas amigas e não cada qual um mistério a ser decifrado… Passava tardes inteiras lá dentro da biblioteca!

Foi lá que li toda a coleção do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, e, dentre outros livros esparsos, divertia-me com edições muito antigas de Seleções (“Reader’s Digest”). E, ainda, li todos os livros de Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, bem como a maioria dos livros de Agatha Christie – os quais mais tarde viria a adquirir através do “Clube do Livro”, mas isso é uma outra história…

E, voltando às pesquisas para a escola, quando encontrávamos um ou outro livro que precisávamos ler com mais calma, em casa, bastava levá-lo para aquele guichê lá no térreo, onde iriam carimbar nossa “carteirinha” com a data de devolução – se não me falha a memória, tínhamos uma semana de prazo.

Mas hoje tudo mudou.

Não só naquele prédio, como também em nossas vidas. O imediatismo e a superficialidade ocuparam o espaço antes dedicado à pesquisa e à profundidade. Tudo tem que ser rápido e facilmente digerível, pois “pensar” é um luxo não permitido em nossa sociedade on line e extremamente conectada. Mesmo no meu ofício – arcanas artes jurídicas – tenho que me utilizar de técnicas de escrita, beirando o jornalismo (estou falando do “bom jornalismo”) para fazer com que alguns magistrados se interessem o suficiente pelo texto para ler uma peça até o final. E que a compreendam de modo claro e inequívoco. Não tem sido fácil, não…

Particularmente, continuo lendo, como sempre. Talvez não tanto quanto gostaria, mas me esforço. No meu criado-mudo sempre tem uns quatro ou doze livros me aguardando, invariavelmente divididos entre aqueles que não consigo largar e aqueles que não consigo voltar. Mas, ainda assim, tenho por obrigação lê-los, todos, até o fim. Coisa de taurino, eu acho.

Quanto à nossa querida Biblioteca, nunca mais voltei lá. De quando em quando até que passo em frente, às vezes de carro ou mesmo à pé, mas não me encorajo a entrar. Talvez seja receio de macular essa sensação boa de lembrança que eu tenho de como, nem tanto tempo atrás, tudo era tão diferente.

Ah, por fim, não que alguém esteja contando, mas da última vez que dei uma conferida lá no meu cantinho (e pra desespero da Dona Patroa), entre livros, gibis, revistas, restaurações e outras edições especiais, o número passava de quatro mil… 😉