O Sebastianismo

Vocês já ouviram falar do “Sebastianismo”? Então. Até há pouco tempo, nem eu. Mas dentre os 4 ou 12 livros que sempre tenho à cabeceira para leitura, dia desses retomei um que traz a história de Portugal desde antes de ser Portugal, passando por todos seus reis e, dentre eles, D. Sebastião.

D. Sebastião I foi o Rei de Portugal e Algarves de 1568 até 1578. Mas, na prática, já era o rei de fato desde 1557, quando faleceu D. Manuel I, seu avô e antecessor no trono. Entretanto, como tinha apenas quatro anos de idade, teve que esperar mais um bocadinho…

Nesse meio tempo, enquanto regentes cuidavam do trono, foi educado “para reinar”, isto é, foi criado dentro do culto do heroísmo militar e do caráter divino da realeza. Desse modo convenceu-se desde cedo que caberia a ele ser o instrumento de salvação da cristandade em tese ameaçada pela reforma protestante que vinha tomando um corpo cada vez maior desde a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, em 1517 – uma obsessão que somente acentuou-se com o passar do tempo.

E no decorrer dos dez anos que reinou sonhava com a derradeira luta contra os “inimigos da fé”…

E a “oportunidade” surgiu em 1578, quando, do alto de seus meros 24 anos de idade, embarcou para a África com o firme propósito de tomar a cidade de Marrocos, a qual havia sido conquistada por um mouro apoiado pelos turcos (o que significaria que a Turquia iria dominar todo o Norte da África, ameaçando assim a Europa Cristã). Ainda que estivesse com um exército de 17 mil combatentes, o confronto com as forças do rei de Marrocos, que se deu nas proximidades de Álcácer Quibir, resultou num estrondoso fracasso. Metade dos soldados morreu e a outra metade foi aprisionada. E o próprio rei morreu. Porém seu corpo nunca foi encontrado.

Sem herdeiros diretos que pudessem se habilitar ao trono de português, após muito embate este acabou sendo entregue nas mãos de seu parente Filipe, rei da Espanha (Filipe I em Portugal). E assim permaneceu por mais duas gerações, com Filipe II e III.

E essa situação política de subordinação à Espanha foi se traduzindo numa inconformidade por parte do povo e gerando uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa, através de um esperado retorno triunfal de D. Sebastião, já que vários setores da população simplesmente não acreditavam na morte do rei. Estava criado o “Sebastianismo”, uma espécie de consciência coletiva popular que traduzia-se na firme convicção de que em épocas de sofrimento generalizado do povo, haveria de aparecer uma figura heroica, salvadora, não sendo possível dizer quem seria ou de onde viria, mas que haveria de salvar a todos!

Escritores de renome, tais com o Padre Antônio Vieira, Fernando Pessoa e mesmo Ariano Suassuna dedicaram-se a esse tema. Mas o mais interessante é que as origens do Sebastianismo são de fato anteriores à morte e até mesmo ao nascimento de D. Sebastião!

Vejam como isso se deu através das palavras de José Hermano Saraiva, em seu livro História Concisa de Portugal:

“Em 1530, o rei D. João III deu a Vila de Trancoso a um seu irmão mais novo, o infante D. Fernando, que por essa altura se casou. Os lavradores e artesãos de vários ofícios amotinaram-se e não permitiram que o infante tomasse conta da Vila. Isso porque preferiam a dependência direta da administração da Vila por parte dos funcionários reais, que eram mais ou menos indulgentes na cobrança de impostos, em vez de pertencerem a um grande senhor rigoroso e às vezes cruel em suas exigências. Essa situação de rebeldia manteve-se durante alguns anos e o rei entrou em negociações com um representante dos moradores, confiando em que o tempo acabaria por resolver a situação. Não se enganou, porque o infante morreu já em 1534 e a Vila de Trancoso voltou ao patrimônio da Coroa.”

E o que isso tem a ver com o Sebastianismo? Calma, calma… Veremos!

“Foi durante os anos da revolta anti-senhorial de Trancoso que um sapateiro que lá morava, Gonçalo Anes Bandarra, escreveu umas trovas que o tempo haveria de tornar célebres. Era um homem rude (“próprio para ovelheiro”, diz um auto do Santo Ofício), que se metera a ler a Bíblia em português e mantinha contatos com cristãos-novos [judeus forçados a se converterem à fé católica], a quem recorria para que lhe explicassem as passagens que não entendia. Misturando confusas citações da Bíblia, reminiscências da poesia popular tradicional, mitos espanhóis (o Encoberto, a que faz alusão, é um mito ligado à revolta das comunidades espanholas de 1520-1522), profecias que andavam de boca em boca, vestígios de lendas do ciclo arturiano [em especial as lendas britânicas de que Rei Arthur estaria vivo e algum dia iria retornar], críticas sociais à corrupção e à prepotência dos grandes, compôs uma espécie de auto pastoril profético, que era inicialmente um protesto conta a doação da Vila ao infante irmão do rei.

Mas acontecia que o sapateiro era mau escritor. Usava os termos que lhe pareciam bem soantes, mas que não sabia ao certo o que queriam dizer, reproduzia, embaladas na toada popular da redondilha, palavras, frases e símbolos ouvidos aqui e ali, mas era incapaz de lhes definir um sentido claro. O resultado foi que as trovas se podiam entender em tantos sentidos quanto se quisessem. Começaram a circular cópias de mão em mão e quando se iniciou a perseguição da Inquisição aos cristãos-novos estes julgaram ler o anúncio da vinda de um Messias salvador nos versos que, na realidade, eram um apelo a D. João III para que defendesse a Vila de Trancoso da ambição do infante. Nessa altura a Inquisição interveio e prendeu o sapateiro, que apareceu como suspeito de judaísmo. O Bandarra era porém tão alheio a esses entendimentos que os judeus lhe faziam das trovas que acabou por ser posto em liberdade e condenado apenas a não escrever mais versos e a não se meter em leituras profanas.

Os inquisidores julgaram que a sua sentença punha termo ao processo, mas na realidade este apenas estava por começar.

A morte de D. Sebastião em condições misteriosas [quase 50 anos depois do episódio da Vila de Trancoso e dos versos compostos por Bandarra] veio dar uma nova acepção às trovas do sapateiro. O rei morreu durante a batalha, mas ninguém afirmava tê-lo visto morrer, embora muitos o tivessem visto já depois de morto (segundo a ética cavaleiresca, confessar que se tinha visto morrer o rei, sem dar a vida por ele, seria uma infâmia – o que explica em grande parte o mistério). Entre o povo dizia-se que o rei conseguira escapar e ia regressar ao País. Há notícia de vários aventureiros que exploraram essa crença popular e procuraram fazer-se passar por D. Sebastião.

As profecias de Bandarra passaram então a ser lidas com olhos diferentes: o Messias cujo regresso anunciavam era D. Sebastião. O público leitor já não é mais formado só pelos cristãos-novos, mas por nobres saudosistas. Versões sucessivas foram adaptando a redação ao seu novo sentido, de tal modo que o movimento de Restauração que viria a ocorrer somente em 1640 pareceu trazer a confirmação das trovas. Considerado o profeta nacional, o sapateiro foi venerado como santo, e até mesmo o arcebispo de Lisboa autorizou a colocação de uma imagem de Bandarra num altar da cidade.”

O Sebastianismo, devidamente adaptado de tempos em tempos, deixou suas marcas que se estenderam em múltiplas variações até meados do século XVIII, cada qual com um novo rei como titular, tendo chegado ao Brasil já quando de sua colonização e mais tarde, no final do século XIX, foi o que inspirou Antônio Conselheiro quando do movimento que criou Canudos. E deu no que deu.

“Mas, mais funda do que o artifício literário, a consciência sebastianista permanece como estado instintivo e permanente. O mito do ‘rei que há de voltar numa manhã de nevoeiro’ ainda hoje é um lugar comum da linguagem popular portuguesa. Ninguém o diz a sério, mas a frase é muitas vezes usadas para aludir a um intraduzível estado de espírito que consiste em crer que aquilo que profundamente se deseja não deixará de acontecer, mas ao mesmo tempo em esperar que aconteça independentemente do nosso esforço e sem implicação da nossa responsabilidade.”