Um grito, um sapo e um barranco

Me é estranho, após tanto tempo, retomar da pena.

Ou melhor, do teclado.

As palavras que outrora fluíam tão naturalmente encontram-se escondidas, relutantes – recalcitrantes até.

Mas é necessário desenferrujar estes nervosos neuróticos neurônios que têm fugido de mim tal qual o tinhoso foge da luz, num bloqueio que há muito já ultrapassou o limite do que poderia pensar em ser considerado razoável.

Então, como Roger Waters já vaticinava, é o que me resta: “Tear down the wall”!

E para isso comecemos com um causo recente, algo bem leve, quase que corriqueiro.

Ou não.

Estava eu, numa dessas noites recentes, em casa desfrutando de minha usual breja na varanda enquanto pensava qual seria o tamanho da tal da Superlua por detrás das nuvens, quando ouvi um grito agudo. Vindo lá de dentro de casa. Da Dona Patroa.

Fiquei tranquilo, beberiquei mais um gole. Após tantos anos de convivência aprendi a identificar cada um dos faniquitos, ops, tipos de grito que ela tem. E esse, desse timbre, dessa altura, com essa duração, era inconfundível. Pensei comigo: “sapo”.

E eis que ela me surge na varanda.

– Vai AGORA lá no fundo. Tem um sapo gigante dentro da vasilha de ração da Leia!

– Mesmo? Será que ele é tão grande assim?…

– NÃO QUERO SABER. Só quero que tire ele de lá!

– Ah, tadinho, deixa ele curtir um pouquinho…

– De jeito nenhum! Quero mais é que jogue essa criatura gorda e nojenta lá no meio do mato!

– Ei, sem ofensas! Espero que você esteja se referindo ao sapo!

– VAI! LÁ! AGORA!!!

Ô coisinha estressada, credo…

Mas preciso contextualizá-los: moramos num local que é uma espécie de vale, bem em frente a uma larga avenida que, juntamente com um córrego que a margeia, dividem ambos os lados desse vale, sendo que de um lado ficam as casas e do outro uma Área de Preservação Permanente toda arborizada com uma mata nativa que segue por alguns quilômetros. Basta atravessar a rua e na beirada da calçada do outro lado está a mata, que já começa bem no barranco que desce até o córrego.

Fui até o fundo de casa e encontrei o bichinho bem onde ela disse que estava. “Gordo mesmo”, pensei na hora. Municiado com um saco plástico nas mãos (isso mesmo, não tenho a mínima vontade de pegar um sapo com as mãos nuas) peguei aquele pequeno filhote de hipopótamo anfíbio e fui devolvê-lo à mata de onde não deveria ter saído. Ainda fiz um pouco de graça enquanto o carregava só pra ver a Dona Patroa dar no pinote quando cheguei perto. Ah, essas pequenas maldades…

E justamente enquanto atravessava a rua eis que o fiudumaégua do sapo começou a… mijar! Mas soltou um jorro de longa distância que por um triz não me pega! Quase me deu vontade de dali mesmo arremessá-lo à distância lá pro meio do mato! Quase.

Acabei o trajeto, dei uma última olhada para aquela carinha rechonchuda e bem ali na beirada do barranco, com um ligeiro movimento joguei-o no meio da folhagem lá embaixo. E me virei para voltar pra casa. E pisei em falso. E me desequilibrei.

E caí.

E rolei.

Morro abaixo.

Uma cambalhota atrás da outra, atrás da outra, atrás da outra.

O céu no chão, o chão no céu, o mato na boca e tudo rodopiava pra tudo quanto é lado.

Parei numa aconchegante moita orvalhada que me deixou encharcado.

Fora a terra.

Fora o barro.

Fora a lama.

Puto. Eu estava PUTO da vida. Fiadaputa de sapo dos infernos! Fui subindo de volta à rua, patinando, escorregando e puto. E caí sentado. E fiquei ainda mais PUTO.

Mas era pior do que eu imaginava.

Foi só quando cheguei de volta à varanda – puto ainda, diga-se de passagem – é que me dei conta.

“Meu celular. Cadê o meu celular? Onde está a porra do meu celular???” Olhei pro outro lado da rua, pr’aquela escuridão molhada e enlameada. Olhei pro exato ponto em que eu havia sumido e cambalhotado metros barranco abaixo e então, com desalento, me veio a única conclusão óbvia. “Lá.”

Chamei novamente a Dona Patroa.

– Liga pra mim.

– Ué, por quê? Você já está aqui na minha frente. E por que você está todo sujo assim?

Respirei fundo.

– Celular. Mato. Lá.

– Você perdeu o celular lá embaixo? Mas por quê?

– Meu ANJINHO, só liga pra mim, faz favor!

Novamente atravessei a rua e enquanto perscrutava a escuridão do meio do mato vi o brilho da tela e o característico toque do meu celular. Ufa! Resgatei-o e ele estava inteirinho, sem um arranhão sequer. Duplo ufa!

E é lógico que enquanto eu voltava pro mundo dos vivos escorreguei mais umas duas vezes e quase cambalhotei de volta…

Após toda essa rocambolesca cena circense só me restava tomar um belo de um banho e dormir. Até porque no dia seguinte, bem cedinho, tinha que levar meus meninos para escola.

No dia seguinte, enquanto a criançada tomava seu café, fui até a varanda novamente. Ainda estava escuro. Dei uma olhada pro outro lado da rua e mentalmente xinguei o bendito do sapo.

E, apesar de tão cedo, ouvi um “blip-blop” do celular no meu bolso. Sinal de mensagem. Estranho. Fui pegar meus óculos para ver qual era a mensagem, pois depois dos quarenta o “braço ficou curto” e sem eles não consigo ler absolutamente nada.

Foi aí que me dei conta.

“Meus óculos. Cadê os meus óculos? Onde está a porra dos meus óculos???” Olhei pro outro lado da rua, pr’aquela escuridão molhada e enlameada. Olhei pro exato ponto em que eu havia sumido e cambalhotado metros barranco abaixo e então, com desalento, me veio a única conclusão óbvia. “Lá.”

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