E eis que no último sábado, logo pela manhã, fui agraciado pelos serviços de entrega do Correio com a chegada do meu exemplar de A Gargalhada de Sócrates: como o maior filósofo do ocidente desvendou o intrigante caso do assassino em série ateniense, com a improvável ajuda de seu desafeto Aristófanes, de autoria de Nelson Moraes Alves.
Como sempre costumo fazer quando me chegam às mãos novos livros (não necessariamente livros novos), dei uma boa olhada na capa, li o conteúdo da contracapa, li atentamente ambas as orelhas do livro, fiquei feliz com o autógrafo, dei uma checada na dedicatória e… só. Mais tarde eu daria início à leitura, juntamente com os outros quatro ou doze livros que sempre estão me aguardando na cabeceira de minha cama.
Os prognósticos já eram bons, pois, da Internet, já conhecia o “jeitão” do Nelson escrever – desde os tempos do blog Ao Mirante, Nelson! (falarei disso mais adiante) e, mais recentemente, pelas redes sociais, com seus ferinos comentários ou pequenas e bem humoradas parábolas. Mesmo assim permanecia um certo “receio”, pois não se tratava de uma coletânea de seus escritos (como eu já havia feito com meu blog), mas sim de algo totalmente novo e desconhecido: um romance completo, com começo, meio e fim distribuídos por mais de 300 páginas! E esse meu sentimento somente se dá porque, para mim, existem basicamente dois tipos de livros: aqueles que você não consegue largar e aqueles que você não consegue voltar… E se ele fosse dessa segunda categoria? Bem, só mesmo lendo para saber.
Como os sábados sempre costumam ser um tanto quanto atribulados (aliás, não diferente dos demais dias úteis da semana), deixei para a noite de domingo para começar a me engraçar com o livro. Assisti alguns episódios de algumas séries junto com a Dona Patroa (dentre elas, a britânica Killing Eve – recomendo!) e lá pelas dez da noite, enquanto ela ainda assistia um filme que me causou mais sono que interesse, recolhi-me ao quarto, afofei os travesseiros, engatei a primeira e abri o livro.
E só o fechei às cinco horas da manhã!
Na última página.
Sem parar.
É bem como está lá no comentário de Janaína Jordão, na contracapa do livro: “Me diverti horrores. O livro prende do começo ao fim, é impecável. Não dei conta de largar. E do epílogo para frente fiquei lendo com um misto de curiosidade crescente e um medo de acabar logo”. Aconteceu o mesmo comigo, pois foi de uma só toada.
Os incautos podem até vir a se assustar um bocadinho num primeiro momento, pois o livro é composto quase que inteiramente de diálogos na segunda pessoa do singular (eu, tu, ele… lembram?) e com muitas palavras tanto complexas quanto “de época”, pois a estória se passa no século 4 a.C. – eu mesmo quase fui buscar um dicionário para deixar ali do ladinho. Mas é só uma primeira e equivocada impressão. Ao começar a entrar no fio da meada a gente acaba percebendo que mesmo aquelas palavras desconhecidas se encaixam perfeitamente no contexto das frases, sendo subliminarmente compreendidas e não atrapalhando em nada a dinâmica da leitura.
O que, aliás, me fez lembrar de uma antiga piada envolvendo estudantes de grego clássico, marinheiros e uma inusitada viagem à Grécia…
Mas deixemos isso para um outro momento.
Voltemos ao livro.
O Nelson conseguiu montar uma trama excelente e bem humorada, com diálogos totalmente permeados de trocadilhos e ironias. E, de quebra, podemos aprender e compreender o que era o método maiêutico utilizado por Sócrates, bem como a maneira pela qual funcionava a contemporânea Escola Sofística de pensamento. E não, não vou explicar. Se quiserem saber vão pesquisar – ou melhor, comprar o livro!
E se prestarmos um pouco mais de atenção a esses diálogos, veremos que também temos verdadeiras aulas sobre justiça, democracia e até mesmo sobre a forma e os limites do humor…
A base da estória (não se preocupem, sem spoilers) gira em torno de como Sócrates, aprisionado enquanto aguardava a execução da sentença que o condenou à morte, conseguiu, juntamente com Aristófanes, desvendar o caso do assassinatos que, um a um, estavam acontecendo em Atenas enquanto se desenrolava a trama. Trama essa muito bem construída para esconder a identidade do assassino até o último momento – se bem que, confesso, logo após o terceiro assassinato comecei a ter minhas desconfianças, as quais se confirmaram no final. Mas isso não é uma crítica e nem diminui a beleza da obra, pois talvez tenha se dado simplesmente porque já li muitos livros da Agatha Christie e todos do Sherlock Holmes, sendo que, neste caso em especial, me veio à mente Um Estudo em Vermelho.
Enfim, leiam. Leiam esse livro sem dó. Recomendo veementemente.
Mas ainda resta uma última pergunta: quem afinal de contas é esse tal de Nelson Moraes Alves?
Blogueiro das antigas, mas que há muito já aposentou seu blog Ao Mirante, Nelson!, tive que dar uma fuçada no Internet Archive para encontrar algumas de suas antigas referências… Parece que tudo começou por volta de outubro de 2002, no endereço www.aomirante.com, mais tarde tendo passado para o www.interney.net/blogs/aomirante, o que duraria até dezembro de 2009, quando foi para o www.aomirante.net e lá ficou até seus últimos posts, em dezembro de 2011. Ao menos é o que eu acho, mas posso estar errado…
Mas creio que quem possa melhor descrevê-lo seja o Idelber Avelar, conforme publicou lá em maio de 2009 no também finado blog Biscoito Fino e a Massa:
“Nelson Moraes talvez seja o único blogueiro brasileiro a ter inventado um gênero. O que você lê em Ao Mirante, Nelson! não é microconto, não é poema em prosa, não é fait divers. É um gênero próprio, burilado ali, algo para o qual ainda não há nome e que poderíamos chamar de post elevado à condição de arte.
No final de 2004, logo depois de abrir o Biscoito, ainda sem saber onde aterrizara, saturado de ler porcarias – ou uns poucos blogs bem escritos que, no entanto, não me diziam muito –, já meio rendido à tese de que tudo na blogosfera era ruim, eu cheguei a um post. Foi, ao mesmo tempo, lição de humildade e fonte de gargalhadas que insistiam em se repetir cada vez que eu revisitava o texto. Eu nunca havia visto aquilo: um diálogo de meia página que combinava uma erudição assombrosa com um domínio perfeito de todos os tiques da linguagem tecnológica daquele momento. Trata-se daquele que eu ainda considero o post mais perfeito já produzido em lusitana língua: Se os diálogos de Platão fossem pelo MSN. Se você nunca leu, siga o link e fique por lá. Volte aqui só no domingo.
A obra de Nelson Moraes – sim, de uma obra se trata – tem essa característica, a de agarrar um momento da tecnologia, da política ou do cotidiano, extrair-lhe a essência mais hilária e, ao mesmo tempo, confrontar-nos com o seu vazio. No caso da tecnologia, o mais recente exemplo é o emblemático Jornal x Blog x Twitter: a série, que diz mais que todas as nossas verborrágicas discussões sobre o futuro das mídias. Os próprios blogs são temas constantes, como nesta paródia aos comentaristas ou nesta sátira à republicação de posts. Não custa lembrar, Nelson é o responsável pela tese de que não existe ex-blogueiro.
Ninguém se lembra o que realmente foi roubado do MASP em 2007, mas para muitos de nós, aquele desimportante acontecimento jamais será esquecido. Foi, afinal de contas, quando Nelson escreveu Ladrões arrombam o MASP e se recusam a furtar inúmeras obras de arte. A criminalização da bebida para motoristas já vai caindo no olvido, como sói acontecer com as leis brasileiras, mas duvido que eu me esqueça de Lei seca ameaça piadas de bêbado. “Leem” e “voo” já me saem naturalmente sem acento (e eu não conheço tema de discussão mais chato que a Reforma Ortográfica). Mas muito depois que tenhamos nos esquecido que “heroi” “heroico”* um dia teve acento, lá estará um clássico: Após o acordo ortográfico, entra em vigor agora o acordo aritmético.
Nelson possui uma tremenda erudição literária, cinematográfica, musical e filosófica. No entanto, ao contrário de certo humor pseudoaristocrático que floresceu durante algum tempo em comarcas mais direitosas da blogosfera, a erudição de Nelson não exclui, mas inclui o leitor, mesmo aquele que não domine todo o intertexto do post. Eu, que possuo cultura cinematográfica tão vazia que nela não cabe mais nada, não deixei de gargalhar com Post Noir.
Uma vez vislumbrei uma antologia de posts de Nelson Moraes ilustrada por André Dahmer. Bem promovida, venderia mais que boa parte do catálogo de qualquer editora, mesmo que não se apagasse nada da internet. Talvez, algum dia, apareça um editor lúcido o suficiente para fazê-lo.
Vida longa e infinitas Bohemias para o Almirante.”
Por fim, uma última observaçãozinha pessoal… Desde sempre eu achava que, menos que o sujeito que derrotou Napoleão, o nome do blog dele era um trocadilho com o nome deste Almirante Nelson, da mesosóica série Viagem ao Fundo do Mar…