Habeas Carrum

Tenho que dar a mão à palmatória: alguns juízes de Florianópolis, em suas sentenças, têm bom humor até quando estão de mau humor…

O pior de tudo é que a peça foi protocolada por um “Estudante de Direito”! É por essas e outras que me dá até uma certa tranquilidade a quantidade de advogados que são despejados por ano no mercado. Se mantiverem em sua vida profissional uma “qualidade” como essa da vida acadêmica, jamais vou ter que me preocupar com a concorrência!  😀

Confesso que eu quase fiquei com dó do caboclo…

Quase.

Confiram a peça, ipsis litteris, e a decisão nesse processo que mal chegou a tramitar em uma das Varas do Juizado Especial Criminal da Comarca de Florianópolis, SC:

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA ___ DA COMARCA DA CAPITAL/SC.

“FULANO”, brasileiro, solteiro, Estudante de direito, RG sob N° ***, CPF sob o N° ***, residente nesta Capital, na rua ***, N° ***, bairro centro, vem, respeitosamente, requerer

HABEAS-CARRUM

a favor de seu veículo Marca FIAT, modelo PALIO, ano modelo 1997, placas *** RENAVAM *** pelo que a seguir expõe:

Em 14/05/06 o veículo em questão foi apreendido pela autoridade policial nesta capital, na rodovia sc- 406 Km 14, bairro Rio Vermelho, pelo seguinte motivo:

“Art. 230 inciso V- CTB Conduzir o veículo sem que não esteja registrado e devidamente licenciado”.

Venho humildemente requerer a liberação do veículo, pois este estava sendo utilizado para ajudar um amigo meu de infância que teve seu veículo MARCA FIAT, MODELO UNO, ANO 96, cor bordo, 4 portas, PLACAS ***, furtado na avenida das rendeiras em frente ao chico´s bar, na Lagoa da Conceição, não teria sido utilizado se não fosse extremamente necessário, é sabido que as forças policiais não tem condições de fazer diligências, e nem procuram o paradeiro do veículo com o afinco que todos os amigos tem para com os seus, o veículo apreendido estava sendo usado para o bem, não continha drogas, armas ou qualquer outro objeto que causasse dano a sociedade ou a outro veículo, mas ironicamente foi apreendido por agentes que em sua viatura ouviam rádio, e ao invés de usarem o rádio para reduzirem os custos a máquina pública, o agente utilizou um telefone (…)

[ A peça tem ao todo 6 laudas, mas só consegui “descobrir” a primeira, acima, e a última, abaixo. ]

Paciente (veículo) foi preso no dia 14/05/06, e se acha recolhido no pátio da polícia rodoviária estadual norte da ilha rodovia sc-401 (próximo a praça de pedágio inativa).

Estando o paciente sofrendo coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, requer o impetrante a V. Exa. Se digne de mandar que o mesmo lhe seja imediatamente apresentado, e de conceder a ordem de HABEAS-CARRUM, ou qualquer outro que possibilite a liberação do veículo para que seu dono tenha a oportunidade de efetuar a regularização e manter-se dignamente nesta capital, como de Direito e de Justiça.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Florianópolis, 19 de maio de 2006.

“Fulano”

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Processo nº 023.06.032015-2

Ação: Outros

Vistos para decisão.

Trata-se de requerimento elaborado por “Fulano” quanto à possibilidade da liberação de veículo automotor junto DETRAN desta Capital.

Muito embora o remédio constitucional de habeas corpus não necessite de capacidade postulatória, nota-se totalmente descabido o requerimento ante a finalidade a que se presta o instituto.

O art. 647, do CPP, é claro quando menciona que “alguém” deve sofrer, ou estar na iminência de sofrer, o constrangimento da liberdade e não algo. Ainda, o art. 648, também do CPP, não prevê, dentre as suas, a situação descrita pelo requerente (sequer uso a palavra impetrante).

Não fosse pelo já argumentado, o objeto do presente requerimento não é passível de ser analisado por este Juízo e, como dito, menos ainda pela via escolhida pelo requerente.

A mais, quero crer que pelo relato feito na presente e pela falta de conhecimento jurídico demonstrado, que tal situação não se trata de deboche, já que num primeiro olhar soa como gozação e menosprezo ao trabalho do Poder Judiciário que só nesta seção possui cerca de cinco mil processos para serem tutelados. Nessa esteira, vê-se que o requerente pode ter sua situação bem resolvida se contar com a assessoria de profissional habilitado.

Sem dispender mais tempo com o presente requerimento, deixando de lado a análise quanto ao demais absurdos jurídicos suscitados, determino que sequer seja autuada a presente peça, providenciando-se sua devolução ao autor do pedido, o intimando do presente despacho e dando ciência ao mesmo que qualquer outro requerimento desta natureza será visto como acinte a este Juizado Criminal e provocará instauração de termo circunstanciado para apuração de responsabilidade quanto ao exercício ilegal de profissão.

Assim, via Distribuição, cancelem-se os registros.

Intime-se.

DEVOLVA-SE.

Florianópolis, 24 de maio de 2006.

Newton Varella Júnior
Juiz de Direito