As Origens do Super-Homem – Quinta Parte
Numa tentativa final de atualizar a imagem do Super-Homem, Clark Kent deixa o Planeta Diário. O jornal tinha sido comprado por Morgan Edge, uma mescla de Rupert Murdoch e Don Corleone. Engolido completamente pelo Sistema Galáxia de Telecomunicações de Edge, o venerável Planeta tornou-se apenas uma pequena engrenagem num grande império da mídia, e Kent transformou-se em âncora do SGT. Com o cabelo devidamente tratado, gravatas largas e chamativas, o “novo” Clark parecia distante da criação de Siegel e Shuster. E, para muitos, o conceito de Clark como personalidade televisiva pareceu problemático desde o início. Se, digamos, o Cid Moreira fosse secretamente o Homem de Aço, como ele poderia cobrir um desastre natural ou um sequestro ao vivo e ainda cumprir seu dever heróico? O trabalho de Clark como repórter de jornal dava exatamente a mobilidade de que ele necessitava para, simultaneamente, cobrir histórias chamativas e ainda salvar a pátria como Super-Homem. No entanto, estar diante das câmaras comprometia demais sua tão necessária liberdade.
Durante essa era, por um curtíssimo período, uma lenda dos quadrinhos passou a trabalhar com o Super-Homem. Jack Kirby, assim como Siegel e Shuster, fôra um dos precursores dos quadrinhos de super-heróis e, em quase meio século de carreira, esteve envolvido na criação de uma infinidade de personagens com apelos quase tão duradouros quanto os do Homem de Aço.
Contratado para trabalhar na revitalização do personagem, Kirby preferiu atuar mais perifericamente, indicando o caminho, em vez de comandar sua revista principal. Ele assumiu o título Superman’s Pal: Jimmy Olsen a partir do nº 133, de outubro de 1970, e deixou naquelas páginas a marca de seu impressionante gênio criativo. O resultado foi puro brilhantismo num título anteriormente chinfrim. As histórias em Jimmy Olsen nunca tinham sido mais do que histórias do Super-Homem com outra roupagem, mas, sob a tutela de Kirby, Jimmy conquistou um espaço bem maior.
Kirby ressuscitou a Legião Jovem – equipe criada com Joe Simon na década de quarenta – e, com ela, enviou Jimmy numa frenética jornada pelo mundo da contracultura do início da década de 70. Ali estavam os Cabeludos, um grupo quase tribal de motoqueiros hippies que habitava uma cidade arbórea na Área Selvagem. Ali estava o Projeto, um experimento ultra-secreto que produzia super-criaturas geneticamente alteradas de todas as formas e todos os tamanhos, inclusive o grupo de agentes especiais conhecido como os DNAlienígenas. Ali também estava a Montanha do Julgamento, um colosso motorizado que cruzava velozmente o interior do país numa missão misteriosa e incompreensível. Em páginas de três quadros, Kirby despejava conceitos que um roteirista menos capacitado teria espalhado por três ou quatro revistas.
No título The Forever People, Kirby apresentou ao Super-Homem os Deuses de Nova Gênese. Pela primeira vez, o Homem de Aço encontrava seres que eram iguais ou talvez superiores a ele.
Lamentavelmente, esta torrente de criatividade teve vida curta. O principal interesse de Kirby estava voltado para seu ciclo do Quarto Mundo, os Novos Deuses, o Povo da Eternidade e o Senhor Milagre. Esta tapeçaria de intrincado tecido, retratando um Novo Ragnarok, uma guerra cósmica entre seres de estatura divina, tomava todo o seu tempo. Quando acabou sua participação em Jimmy Olsen, ele havia contribuído para o panorama geral, mas não tinha influenciado os outros títulos o suficiente. O Super-Homem ainda enfrentava sérios problemas.
Foi nessa época que o roteirista Dennis O’Neil apontou o que ele acreditava ser o maior defeito no herói. O Homem de Aço havia se tornado poderoso demais. O’Neil afirmava que era impossível criar histórias empolgantes e dinâmicas com um ser praticamente divino. Ao lado do editor Julius Schwartz e do veterano desenhista Curt Swan, O’Neil iniciou sua reformulação do personagem.
Teria sido difícil selecionar uma equipe melhor. Schwartz já era um dos Grandes Anciões tanto das revistas em quadrinhos quanto da ficção científica. Sua carreira era tão longa quanto a do Super-Homem, e ele já tinha renome por revitalizar personagens conhecidos.
Swan havia começado a desenhar o Super-Homem em meados da década de 50, e seu trabalho estava entre os melhores. Seu estilo limpo e realista era o mais identificado com o Homem de Aço. O’Neil era um roteirista premiado, vindo da surpreendente revitalização do Lanterna Verde e, principalmente, do Batman, com histórias que tinham recuperado muito do conceito original do Cavaleiro das Trevas.
O’Neil tomou uma atitude bem simples: privou o personagem de um terço de seu poder. Isto foi concretizado a partir de janeiro de 1971, na edição Superman 233, com a criação de uma duplicata do Super-Homem. A enigmática criatura recebeu um terço do poder do Homem de Aço e, dessa perda, emergiu um herói mais gerenciável. Para sorte do desenergizado Super-Homem, toda a kryptonita da Terra foi transformada em ferro inofensivo por uma reação em cadeia gerada pelo mesmo acidente que criara a duplicata. Ao fim deste ciclo, a duplicata havia drenado metade dos poderes do Homem de Aço.
Schwartz humanizou um pouco mais Clark Kent, deixando-o de costeletas e usando ternos de outras cores além de azul. Ele também começou a integrar mais o Super-Homem com o universo DC. Em grande parte por causa da “realidade” intrincada e interativa criada pela Marvel Comics, leitores de toda parte exigiam aventuras mais complexas e ambientações mais perenes para os personagens DC. Mort Weisinger havia criado uma continuidade bastante coerente entre os títulos do Super e, agora, Schwartz se dispunha a fazer com que o herói interagisse mais com os outros personagens da editora.
Depois da saída de O’Neil, o Homem de Aço recuperou seus poderes perdidos. Afinal, muitos afirmavam que os dons de qualquer kryptoniano eram infinitos, e dois terços do infinito são… bem… ainda infinito (esta leitura dos poderes do personagem tinha o efeito colateral lamentável de implicar que Krypto e Beppo, o supermacaco eram tão poderosos quanto o Super-Homem, mas, uma vez que nenhum dos dois continuava aparecendo, o problema potencial havia sido habilmente jogado para debaixo do tapete.
No início da década de oitenta, outra reavaliação entrou em andamento. O editor-executivo Dick Giordano e a diretora Jenette Kahn perceberam que toda a linha DC estava irremediavelmente bagunçada. Uma enorme faxina se fazia necessária.
Grandes mudanças foram possibilitadas por uma mega-saga sem precedentes na história: Crise nas Infinitas Terras, um massacre calculado. Os leitores ficaram sem fôlego. E, mais importante ainda, foram preparados para outras mudanças. Era a ocasião perfeita de se fazer outra reformulação no Super-Homem. Na verdade, a mais completa de todas elas. Dick Giordano me procurou e, em íntima colaboração com os editores Mike Carlin e Andrew Helfer, eu estabeleci os parâmetros de um novo Super-Homem.
Ele fez sua estréia nos EUA em 1986 e, para falar a verdade, não era tão “novo” assim. Foi uma aproximação do personagem de Siegel e Shuster. Eliminamos os poderes divinos e sua carreira como Superboy. O planeta Krypton foi reprojetado e redefinido. Jor-El e Lara pareciam diferentes. O casal Kent estava mais jovem quando encontrou o bebê. Os dois disseram ao mundo que o garoto era filho natural, e não tiveram de passar por um elaborado ritual de adoção.
Mais uma vez, como no início, ele chegou à idade adulta sem assumir a identidade de Superboy. Na verdade, uma vez que nesta versão seus superpoderes se desenvolveram lentamente, o jovem Clark não precisou esconder suas capacidades, pois ainda não as tinha. Quando visto pela primeira vez, com a idade de dezoito anos, ele havia se tornado campeão pelo time de futebol americano do Colégio Pequenópolis, para irritação dos outros jogadores. Ao ver a chateação dos colegas de equipe de Clark, Jonathan Kent decidiu contar ao filho a verdadeira história de seu nascimento e deixou bem claro para o rapaz que ele jamais deveria usar suas habilidades extraordinárias para se fazer superior aos outros, mas sempre para ajudar a todos.
Adquirindo humildade por meio das palavras do pai, Clark resolveu assumir a responsabilidade inerente a seus poderes de maneira secreta. Ele não queria que o mundo soubesse que um “anjo da guarda” estava à disposição.
Somente depois de ser forçado a agir abertamente para salvar um ônibus espacial em Metrópolis, Clark Kent voltou a Pequenópolis e, com a ajuda de seus pais, criou a identidade uniformizada de Super-Homem. Só então ele decidiu alterar sua aparência como Clark, assumindo o tradicional penteado para trás e os óculos fundo-de-garrafa.
Numa grande inversão filosófica, Clark tornou-se o verdadeiro personagem, que se fazia passar pelo Homem de Aço, e não o contrário. Mais ainda, ninguém na Terra, exceto Martha e Jonathan Kent, sabia que o Super-Homem tinha dupla identidade. Livre da compulsão exaustiva de fingir que não era Super-Homem, Clark pôde se tornar um personagem mais dinâmico, exibindo orgulhosamente seus troféus de futebol americano, que também serviam para justificar seu físico magnífico.
Lois ficou livre para se tornar a personagem inteligente e segura de si de cinquenta anos antes. Uma vez que ninguém suspeitava que o Super-Homem tinha um alter ego, Lois não precisava mais perder tempo tentando revelar o segredo.
O Planeta Diário voltou a seu local original na história. Perry White foi apresentado como editor-chefe, e não executivo, tornando mais lógico o relacionamento íntimo com seus repórteres.
Talvez a maior de todas as mudanças tenha sido proposta pelo meu colega Marv Wolfman. Ele sugeriu “ajeitar” Lex Luthor. Não mais um cientista maluco, Luthor tornou-se um “super-homem” dos negócios, o mais poderoso de Metrópolis… até a chegada do Homem de Aço. O herói tirou de Luthor sua posição privilegiada. Como o Salieri em Amadeus, reconhecendo o gênio de Mozart, Luthor sabia que, para voltar a ser o Número Um, deveria eliminar seu rival. Porém, diferente de Salieri, Luthor não aceita a idéia de que o Homem de Aço é melhor do que ele e, por isso, está condenado a fracassar sempre.
Desta forma, nosso herói decola rumo ao seu segundo meio-século. Ele passou por situações difíceis nas suas cinco primeiras décadas de vida. Voou mais alto do que qualquer outro personagem, mas também caiu a pontos baixíssimos. Conquistou a glória em histórias empolgantes e mergulhou na tolice e na pretensão. Serviu como um orgulhoso emblema para a nação e foi constrangido pelos excessos dela. Brega, cultuado, clássico.
Ele foi essas coisas e muito mais. Mas, acima de tudo, sempre foi o Super-Homem.
E sempre será.
John Byrne
(Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)