O Fim da Picada – Uma inusitada parada

Ainda que pela metade, esta é a continuação da aventura
que agora se tornou uma narrativa

UM BOTECO!

Isso mesmo: um botequinho, pé-sujo, de madeira, perdido no meio do nada!

E – pasmem – aberto!

Entre surpresos e cansados, apeamos do carro, e fomos ver aquele local insólito dentro de um cenário que já era pra lá de insólito. Conhecemos o tiozinho que “toca” o lugar, proseamos um bocadinho e pudemos relaxar outro tanto. É lógico que ali, perdido no fim do mundo, as opções seriam limitadíssimas.

Com o friozinho que fazia e os pés meio que úmidos eu adoraria tomar um “choconhaque” – uma boa lembrança de quando fui pela primeira vez em São Thomé das Letras e que, numa situação de chuva calamitosa e barracas flutuando, encharcados até a alma, vim a conhecer essa saborosa mistura que aquece até o coração: chocolate quente com conhaque.

É lógico que ali ele não teria essa beberagem divina, quando muito a garrafinha térmica com café dele mesmo. Pra não passar em brancas nuvens, já que não teríamos um choconhaque, fiquei somente com o conhaque mesmo…

E, após tanta tensão, a Alê, embevecida com a paisagem, sacou de sua máquina fotográfica e começou a registrar tudo que podia – em especial a passarinhada multicolorida que cobria o lugar. O tiozinho explicou que ali era assim mesmo, e que os passarinhos já estavam até acostumados, até comiam na mão. Ante minha cara de incredulidade ele descascou uma banana e colou na murada. Aquilo ferveu de passarinhos! Coloquei uma raspinha na mão e a estiquei. E não é que veio mesmo um curiosinho dar umas bicadas na polpa da banana (e também da minha mão)?

Mais um pouquinho de proseio e de repente a gente ouve o inconfundível som de um motor de fusca. Não apenas um, mas dois, estavam descendo a serra, carregados até o talo de tralhas e, numa boa, como se estivessem passeando em pleno asfalto! De fato, fuscas são bodes mecânicos, aguentam ir até onde jipeiros não arriscariam…

Não sei precisar quanto tempo ficamos por ali, se apenas alguns minutos, meia hora, uma hora ou mais. Eu sei é que estávamos agora bem despertos e mais relaxados e com uma paisagem paradisíaca à nossa frente. Um quê de comunhão com a natureza de poder olhar a paisagem até onde a vista alcança e apenas encontrar a mata densa, fechada, linda, soberba!

Até mesmo a estrada parecia que estava bem melhor a partir daquele ponto!

Mas não se enganem: Murphy é, sempre foi e sempre será um velho sacana – e com a cara do House…

Talvez pouco mais de uma centena de metros abaixo havia uma ponte de pedra no meio do caminho, no meio do caminho havia uma ponte de pedra… Larga o suficiente na justa medida para as rodas do carro passarem quase que na borda…

Foi minha última intervenção como guia. Bem devagar, com as rodas bem alinhadas, ela veio trazendo o carro em linha reta até passar a bendita da pontezinha – sempre olhando nos meus olhos enquanto eu, do lado de fora, ia vendo se as rodas não desviavam de seu trajeto.

Passado esse último obstáculo, de fato a estrada voltou a ser estrada – ainda que de terra, mas já dava para desenvolver até mesmo uma surpreendente velocidade de uns trinta a quarenta por hora…

E continuamos nossas conversas e proseios, agora de fato relaxados, planejando o que faríamos onde ficaríamos e assim por diante. E como quando você não está dirigindo sempre acaba tendo mais liberdade para prestar atenção na paisagem, coisas e pessoas, de repente eu vejo as costas de uma grande placa e fico curioso. Enquanto estávamos passando ao lado da placa, fui virando a cabeça e pude ler o que estava escrito. Não me contive:

“Para! Para! Para! Alê, para esse carro agora! Você PRECISA ver isso!”

Taquiôspa! Só agora que avisam? Não dava pra ter colocado essa placa lá em cima, no começo, ANTES de a gente entrar na estrada? Que caramba!

(essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – A Trilha

Ainda que pela metade, esta é a continuação da aventura
que agora se tornou uma narrativa

Então.

Lembram-se que a estrada tinha mudado de algo como “inacreditavelmente difícil” para apenas “extremamente complicada”? Teimosamente seguindo em frente a estrada conseguiu se tornar “absurdamente impossível”…

Aquelas pedras que faziam parte de alguns pontos da estrada há centenas de metros atrás, agora eram A PRÓPRIA estrada! Sabem aquelas ruas de Paraty, com pedras gigantes, onde não se consegue andar a não ser que seja de tênis? Espalhe um pouco de limo e barro para todos os lados e enfie um carro por ali. É mais ou menos essa a imagem do caminho.

Já não cogitávamos mais voltar. Se aquela caminhonete havia descido, então também era possível que descêssemos. Mesmo num Astra. Isso caso a caminhonete não tivesse despencado ribanceira abaixo. Ah, sim! Ribanceira. Inúmeras. Em curvas fechadas e precipícios vegetais por centenas de metros abaixo. E, para ajudar, em vários pontos da serra minava água da montanha, fazendo com que tudo que não fosse pedra se tornasse um verdadeiro tapete de lama pra lá de escorregadio.

Já não era mais possível ser um mero co-piloto palpitando de dentro do carro. Tomar a direção também não era uma opção – até porque eu não tinha nenhuma intimidade com carros automáticos. Desci e fui caminhando de costas para a estrada e à frente do carro, um verdadeiro guia, batedor naquele nosso safári das letras. Pulando de uma pedra para outra, tentando não escorregar, dançando uma dança de contorcionismos, meio como um Jack Sparrow das montanhas, lá ia eu orientando as manobras do carro:

“Isso… Agora vira tudo pra direita… Acelera! Pára, para! Agora vira pra esquerda… Vem bem devagarzinho… Agora pra direita de novo! Força! Isso…”

E assim por diante. E o carro vindo, todo desengonçado naquela estrada toda torta, às vezes começando ligeiramente a escorregar de lado, em direção à ribanceira, quando eu falava, suando frio: “Alê! Dá uma aceleradinha só, vai, devagarzinho…” E o carro voltava ao leito… Aquilo já havia deixado de ser uma estrada, era quase que meramente uma trilha!

Mas o mais fodasticamente incrível disso tudo foi o grau gigantesco de confiança que ela depositou em mim. Conheço muitas outras mulheres que numa situação como essa simplesmente teriam saído do carro, sentado na estrada e se colocado a chorar. Ela não. Confiou quase que cegamente no meu julgamento de que estava fazendo o melhor possível – mesmo quando o fundo do carro emitia barulhos horripilantes de metal se esfregando nas pedras, como o casco de um Nautilus prestes a arrebentar. E ela, lá. Firme. No mínimo deve ter enfiado a Do Bem e a Do Mal dentro do porta-luvas, só pra não atrapalhar…

Não sei dizer quantas centenas de metros durou esse sofrimento. Eu à frente e ela me seguindo. O medo de o carro quebrar ou enroscar de vez era uma constante. Isso sem falar em derrapar barranco abaixo! O dia já havia amanhecido e, pelos cálculos, sequer estávamos na metade do caminho.

Mas eis que o que já era inusitado acabou nos trazendo algo mais inusitado ainda! Além de todas aquelas pedras no meio do caminho, justamente quando a trilha parecia estar voltando a ser uma estrada, acabamos por encontrar algo totalmente inesperado!

(essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – A Estrada

Ainda que pela metade, esta é a continuação da aventura
que agora se tornou uma narrativa

Bem, já ao alvorecer do dia, prosseguimos viagem, sempre num proseio animado, até que, de repente, não mais que de repente, com um belo dum solavanco, o asfalto simplesmente acabou, dando início a uma estrada de terra!

Paramos o carro.

“Quiéisso???”, ela perguntou.

“Estrada de terra, uai…”, respondi-lhe dizendo o óbvio do óbvio (uma de minhas muitas inúteis especialidades natas).

Numa rápida consulta ao GPS, o desgraçado informou que era por ali mesmo e que ainda faltavam cerca de vinte quilômetros até o centro de Paraty. Ou seja, simplesmente não existiam alternativas. E vamos combinar que voltar trocentos quilômetros até a Via Dutra, retornar até Taubaté para, dali, descer a serra, bem, isso definitivamente NÃO era uma alternativa…

Alás, perdidos que estávamos em nossas conversas, um pouco antes havíamos apenas vislumbrado – mais pela visão periférica que por merecida atenção – uma placa bem no final do asfalto, onde supomos que deveria informar sobre a divisa de estados: ali acabava o Estado de São Paulo e começava o Estado do Rio de Janeiro. Que putz! Ficou claro que a infraestrutura havia ficado lá em São Paulo!

E ela, por sua vez, estava simplesmente pasma. Não era possível que aquilo fosse realidade. Uma estrada de terra, e, ainda por cima, bem ruinzinha. Foi então que lembrei-me o que era que tinha ouvido falar acerca daquela estrada: é que era ruim mesmo. Pecava pela falta de conservação, etc, etc, etc. E tinha ouvido isso foi numa conversa com um antigo chefe já há mais de dez anos! Bem, desde então com certeza a estrada não deve ter melhorado, não é mesmo?…

“Não acredito. É o fim da picada! Como é possível que isso exista? Uma estrada de terra? Aqui? É o fim da picada!”

Ela continuava pasma. De minha parte, hoje, sabendo a história completa, me pergunto como estariam se comportando a Do Bem e a Do Mal lá dentro daquela cabecinha reviravoltada. Provavelmente, naquele momento, AS TRÊS deveriam estar querendo jogar o Do Chapéu montanha abaixo…

Já com o dia tendo despontado, prosseguimos com toda cautela naquela estradinha surreal, descendo a serra, em boa parte à beira de abismos, com trechos onde mal passavam um veículo e com pedras dum tamanho de fazer inveja a qualquer meteoro de respeito.

Creio não ter comentado que estávamos num Astra automático, ou seja, talvez o carro mais inapropriado deste lado do Equador para uma estrada daquele gabarito. Também não ajudava em nada o fato de haver um pouco de barro entre as pedras e poças d’água que não tinha como saber a profundidade. Fiquei de co-piloto, dando palpites por onde passar e por onde não passar e, sinceramente, não sei como ela simplesmente não me mandava calar a boca… Sua tensão era visível e mesmo assim manteve-se firme – ainda que receosa de que talvez aquela estrada não fosse dar em lugar nenhum, quando muito, talvez, numa porteira e só.

Inevitável não lembrar naquele momento do Ítalo Casoni, um sargento reformado do exército com o qual trabalhei já há muitos anos. Ele adorava contar causos de sua época da ativa, em especial quando sua unidade se embrenhava no meio do mato, com jipes, armas e toda aquela parafernália típica do exército. De quando em quando surgiam umas pontezinhas de madeira caindo aos pedaços (isso quando eles próprios não tinham que construir uma) e tinham que passar por ela com o veículo. E bem devagar. Quase parando. E o soldado, quando acabava de atravessar, de dentes tão cerrados muitas vezes estava com o maxilar travado tamanha a tensão pela qual passava! Pelo menos naquela estrada em que estávamos não havia disso…

E lá, com ela, dentro daquele carro naquela situação total e completamente inusitada, perdidos no meio de tanto verde, meio que me encolhi em mim mesmo nos meus devaneios. Explico. Ainda que uma parte de mim estivesse ali, de corpo presente, conversando e tentando trazer um pouco de conforto a ela que – literalmente – entre trancos e barrancos avançava com o carro serra abaixo, uma outra parte de mim estava viajando no meio daquela mata ancestral, com os primeiros pássaros despertando alvoroçados para mais um dia que se iniciava (e provavelmente se perguntando quem diabos eram aqueles dois malucos perdidos por ali), me fazendo lembrar de tantos outros lugares e acampamentos e situações e pessoas e vidas que já deixei pra trás. Sempre fui mais um sujeito de montanha que de praia, de rio que de mar. E ali, naquele local abençoado, meio que minh’alma começava a ser sugada por toda aquela imensidão de verde.

E eu estava ali, meio que presente, meio que perdido nessas lembranças e considerações, quando eis que, do nada, materializou-se no retrovisor e em seguida já estava nos ultrapassando, também descendo, uma caminhonete – acho que da Polícia Florestal ou algo que o valha.

“Vamos perguntar se é esse mesmo o caminho?” – ela sugeriu.

“Que nada, não tem como não ser. Eles mesmos já estão descendo, não estão?”.

Não sei que raio de argumento foi esse, mas até ali ainda haveria um último raio de esperança de um eventual retorno. Ah, nós homens… Nunca nos rendemos a perguntar nada, não é mesmo?

Tendo a estrada melhorado um pouco depois de algum tempo (algo como tendo deixado de ser “inacreditavelmente difícil” para apenas “extremamente complicada”), encontramos um marco implantado numa das curvas. Paramos pra ver. Era um dos Marcos da Antiga Estrada Real!

Pelo menos agora – em tese – sabíamos onde estávamos!

Descemos, demos uma espreguiçada geral para aliviar a tensão, respiramos um pouco daquele ar absurdamente puro, tiramos algumas fotos e conversamos. Ela ainda cogitou voltar e eu, bom taurino teimoso como sempre1, talvez indo contra toda a lógica racional para uma aventura daquela estirpe, ainda insisti que já sabíamos o quão difícil era o que já tínhamos encontrado e, dali pra frente, ainda não sabíamos o que iríamos encontrar e muito provavelmente talvez não tivesse como piorar.

É lógico que eu estava enganado.

 

1 Nota – Somente para que tenham uma idéia do que é teimosia, sempre disse pra todo mundo que sou daqueles taurinos que tranquilamente colocaria o seguinte adesivo no carro: “Não adianta me seguir, pois também estou perdido, não sei onde essa estrada vai dar, MAS VOU ATÉ O FIM!”. Quão profético isso…

(essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – Interlúdio

Ainda que pela metade, esta é a continuação da aventura
que agora se tornou uma narrativa

Falha-me a memória se a parada que fizemos foi antes ou depois de chegar em Cunha… Naquela pousada em que não pousamos. Creio que deve ter sido antes…

“Que parada?”, perguntariam os incautos.

“Simples!”, responde-lhe este cauto que vos tecla.

Estrelas no céu.

Nem mais, nem menos que estrelas no céu.

A noite estava ligeiramente fria e, longe das grandes – e pequenas – cidades, foi possível ver o brilho de cada uma daquelas estrelas que estavam à nossa disposição. Paramos o carro, acendi um cigarro e filosofamos um pouco sobre aquele espetáculo que, ainda que diariamente estivesse presente, raramente tínhamos a capacidade ou sequer o interesse de simplesmente olhar para cima. Ficamos algum tempinho ali, na beira de uma estrada totalmente deserta, encostados no carro, comigo abraçando-a pela cintura e ambos simplesmente olhando para cima…

Constelações inteiras à nossa disposição, as Três Marias nos acenando, verdadeiro deleite visual numa fria noite de inverno. Um cenário de verdadeiramente perder o fôlego.

Enfim, uma fantástica miríade de pontos luminosos e brilhantes sobre um veludo negro somente visíveis em locais tal qual aquele onde estávamos, ou seja, total e completamente afastados da civilização e de suas luzes artificiais, de modo que podíamos apreciar todas aquelas luzes naturais.

Inclusive as coloridas que piscavam e se moviam no céu…

E foi assim, com esses sinais de bons presságios que prosseguimos tranquila e animadamente nosso caminho!

Mal sabíamos o que, muito em breve, nos aguardava…

(essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – O Caminho

Após nossa saída, finalmente a caminho de Paraty, surge a dúvida:

Já na estrada perguntei a ela que caminho pretendia fazer até Paraty – pois pensei na estrada que liga Taubaté a Ubatuba, ainda que seu trecho de serra fosse meio chatinho, pois, que me lembrasse, a qualidade do asfalto por lá não era grande coisa. Pensei (mas não sugeri) que poderíamos também descer pela Tamoios – a estrada que liga São José dos Campos a Caraguatatuba -, mas teríamos que pegar um longo caminho beirando o mar. Ao que ela me respondeu que, segundo o GPS, havia um acesso logo ali na altura de Guaratinguetá, passando por Cunha, que já daria direto na cidade de Paraty. Já naquele momento alguma coisa soou na minha cabeça… Cunha… Paraty… O que eu já tinha ouvido falar desse trecho mesmo? Bem, não devia ser nada de importante… Limitei-me a responder “Legal, vamos por lá então! Bendito aparelhinho de GPS, hein?…”

Nesse meio tempo, nos caminhos da sempre pensante cabecinha dela:

No final do ano passado fiz uma viagem de carro com uma amiga que estava prestes a casar. Somos amigas desde garotinhas e, logo depois de ouvir todos os detalhes sobre a decisão dela e do namorado de morarem juntos, minha primeira reação foi:

– Despedida de solteira!

E a dela foi…

– Hum… Quantos dias?

Passamos trinta dias na Califórnia, alugamos um Mustang conversível, dirigimos de San Diego a San Francisco, entregamos o carro em Las Vegas, falimos em Bahamas e ambas confessamos que em vários momentos só o que queríamos eram poderes paranormais para nos teletransportar para nossas casas. Sabe quando alguém tem poucos graus de miopia, não usa óculos e esquece que ela aumenta com o tempo e a falta das lentes? Nossa viagem foi uma lente de três graus. Nos demos conta do passar do tempo, percebemos que não gostávamos mais das mesmas rotas e transformamos o silêncio em um terceiro passageiro.

Conclui muita coisa sobre viagens de carro na despedida de solteira da minha melhor amiga, mas as mais importantes foram:

1) Acertar a sintonia entre duas pessoas dentro de um carro é mais difícil do que atravessar o deserto de Nevada. A pé.

2) Respirar fundo. Três vezes. Principalmente quando começar a desejar que uma ilha ou alguém que você ama, desintegrem do planeta e reapareçam em Marte.

3) Sempre questione o seu GPS. Sempre.

Quando voltamos para o Brasil, quase aplaudimos o pouso do piloto no aeroporto de Guarulhos. Ela casou, eu me separei e nós duas só não nos separamos pelos bons milagres da amizade. Desde então, mesmo que seja de São Paulo a Praia Grande por uma única tarde, penso duas vezes sobre o caminho sugerido e a companhia escolhida. Sempre. Quer dizer… Quase sempre. Eu fiquei tão contente com o sim que ele me deu para aquela “viagem de uma hora pra outra” até Paraty, que realmente descartei qualquer possibilidade de algo dar errado. Além do mais, quando o GPS disse para seguirmos em frente e virarmos a direita para a cidade de Cunha, alguma coisa soou na minha cabeça… Cunha… Paraty…Virar a direita… Esse baton não tá legal… Beleza! Conheço o caminho. Não tem o que dar errado.

Não pensei em mais nada, muito menos depois de encontrá-lo em Jacareí. Esqueço da vida, ao viver a vida… Você deve saber como é. E foi estranho imaginar que o tempo passa e as pessoas realmente mudam. Estranho pensar que hoje em dia tenho mais afinidades com ele do que com uma amiga que me viu crescer e existir em tantas fases. Não é fácil acertar a sintonia das relações… Às vezes a gente fala demais, às vezes de menos. Às vezes a música completa, alegra, distrai. As vezes ela atrapalha, confunde ou se faz necessária. Pessoas que conhecemos há anos se tornam completas desconhecidas da noite para o dia e, outras, que acabaram de chegar, parecem saber quem somos há trezentos anos. É estranho, mas curiosamente me parece bom…

Enquanto isso, meu sempre analítico eu do meu lado daquela nau, digo, daquele carro:

Prosseguimos viagem com o excelente proseio de sempre. Acho absolutamente incrível como a gente consegue ter assunto o tempo todo, todo o tempo. Normalmente nossas conversas fluem naturalmente por horas a fio… Depois de algum tempo fizemos uma providencial parada para um café e esticar as pernas. Na altura da cidade de Aparecida, viramos à direita, rumo à segunda estrela e seguimos em frente até o amanhecer…

Mas o amanhecer mal havia chegado e estava pronto para nos pegar muito cansados – e bem quando chegávamos em Cunha, depois de uma excelente estrada com um ótimo asfalto (e, deveríamos ter percebido, bem pouco trânsito). Concluímos que, faltando apenas cerca de 30 quilômetros para chegar, seria uma boa idéia descansar em algum hotel ou pousada em Cunha mesmo – até porque, por conta da FLIP, todas as pousadas DO MUNDO em Paraty deveriam estar lotadas. É lógico que rodamos aquela cidade deserta, às cinco e meia da manhã, e não nos deparamos com viv’alma. O único hotel facilmente encontrável era, na realidade, uma pousada.

E nada de ninguém atender a campainha – ainda que insistentemente tocada. Pô! Custava terem atendido? Só porque nem sequer os galos ainda tinham se aventurado para seu canto matinal? Bem, sendo assim, resolvemos então prosseguir viagem, até porque a parada e o frio intenso do lado de fora do carro serviu para despertar do cansaço.

Ou seja, em última análise, tal qual velho costume de criança, tocamos a campainha e saímos correndo, …

(tanto quanto , essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – A Saída

Com tudo combinado, depois de breves cochilos entremeados de curtos e estranhos sonhos, meu despertar foi assim:

Três da manhã, então. Acordo com o celular tocando e aquela tradicional sensação de quemcosô, oncotô, proncovô… Atendo. Ela chegou. “Vamos?” Checo todo o indispensável material necessário que arregimentei para uma viagem desse naipe, ou seja, a roupa do corpo. Celulares carregados (eu também gostaria de ter apenas um), carteira sem absolutamente um centavo sequer (lá deve ter um caixa rápido… TEM que ter!), tênis para andar nas desniveladas ruas de Paraty e – lógico – meu inseparável chapéu! Saio de casa e, ao passar pelo incrédulo olhar do porteiro (que deve ter pensado algo como “onde será que esse caboclo vai a essa hora, nesse frio e a pé?”), chego à rua e…

Cadê?

Olho para um lado, nada. Para outro, nada. “Vai ser a pior piada da face da Terra se isso tiver sido um trote… Pior ainda: e se tiver sido um sonho?” – pergunto eu aos meus estarrecidos botões… E o porteiro esticando o pescoço pela janelinha, tentando ver o que eu fazia…

Já começando a duvidar que realmente tinha recebido uma ligação comecei a andar rua abaixo quando vi um carro parado logo adiante, bem em frente ao condomínio do lado. Ok. Não foi um sonho. Ufa! ACE Ventura (que foi como batizei o carro naquele momento) havia chegado!

Enquanto isso, estando ela parada em frente do condomínio errado, outros despertares estavam em andamento:

Antes de começar a escrever minha parte dessa história, acho melhor contar um segredo meio esquisito. Não é nada grave mas, como se torna gritante durante algumas viagens, vale a explicação.

Dentro da minha cabeça moram duas vozes que raramente concordam uma com a outra e, nem sempre, comigo. Uma delas, a mais tranquila, tem todo o meu jeito. Ela pega leve a maior parte do tempo e é uma apaixonada nata. Gosto muito dessa voz, gosto da forma positiva que ela vê o mundo, dos detalhes que me conta e saca nas pessoas. É meio tonta, meio tagarela, meio confusa, mas é uma voz “do bem” e que convive bem com todo mundo. Quer dizer… Todo mundo, menos com a “do mal”.

A outra voz moradora da minha cabeça, foi apelidada de “do mal” por mim e pela “do bem”. A do mal é exigente, questionadora e racional aos extremos. Ela não dá mole nem pra do bem, nem pra mim, nem pra ninguém. Minha sorte é que ela não tem a menor paciência pra nós duas e acaba aparecendo pouco, graças a Deus. Quando aparece, deixa claro que despreza a do bem e que eu não me canso de decepcioná-la. Um dos únicos momentos que concordamos é viajando, é na estrada. A do bem ama cada téco de natureza desse planeta, cada olhar sobre qualquer universo, inclusive o universo de experiências e sentimentos que compõem cada pessoa. A do mal também, mas é muito mais prática, não curte perder tempo na vida. Ela sabe que viver tem prazo de validade e é assumidamente uma caçadora de prazeres, embora não seja facilmente conquistável. Pra variar, ela não vai muito com a cara dele, acha que nós dois temos defeitos meio parecidos e diz que o maior deles é não termos muitas qualidades. Basta eu lembrar que ele existe e ela surge do nada, de braços cruzados, dizendo que gosta mais dele escrevendo do que existindo. Desde sempre, sei que ela tenta me ensinar a viajar sozinha, me mostrar os encantos da liberdade absoluta, mas sem muito sucesso. Qualquer ser humano (tanto pra mim quanto pra do bem) é uma grande viagem. Algo que a do mal se recusa a entender, chama de prisão de luxo e me aponta um milhão de exemplos de humanos previsíveis e empatadores de emoções. Às vezes concordo um pouco, mas sei também que ela diz isso por egoísmo, por querer andar sozinha e assoprar os caminhos que deseja seguir, sem muita discussão. Ainda bem que quase sempre ela é voto vencido, já que qualquer estrada ou pessoa boa, ainda me divertem, ainda me causam bons arrebatamentos.

Naquele dia – assim que cheguei cantarolando com a do bem em Jacareí – tive a impressão de que a do mal só se ligou onde estávamos quando olhei pelo retrovisor, o vi ajeitar o chapéu e caminhar na direção do carro. Foi só eu olhar essa cena e lá veio ela aparecendo de sopetão…

– E aí? – Saiu das profundezas do meu cérebro, riscando seu salto alto dentro da minha testa e cruzando os braços ao lado da do bem.

– E aí o quê!? – Assustou-se a do bem.

– Isso lá é hora de você aparecer? – Perguntei eu, já com vontade de mandá-la dar uma volta pelo meu fígado.

– É sério que vocês duas vieram parar em Jacareí a essa hora? Posso saber porquê não pediram a minha opinião?

– Ahhh, não enche do mal! Hoje não. Tô precisando de folga. Inclusive de você.

– Não é uma viagem qualquer… É uma “viagem de uma hora pra outra”!

A do bem se sente acuada por ela, vive justificando tudo, mas nesse caso fazia sentido. Viagem-de-uma-hora-pra-outra é, entre nós três, uma frase mágica que quase transformamos em uma palavra só e nos desperta a união. Era ouvi-la e concordávamos, amávamos de paixão cada instante, indiscutivelmente, desde quando éramos crianças.

– Vocês armaram uma viagem-de-uma-hora-pra-outra sem me consultar!? Sério?

– Se tivéssemos “armado” não seria uma viagem-de-uma-hora-pra-outra, né do mal?

– E desde quando vocês precisam ser convidadas, para aparecerem?

– OK. Mas são três horas da manhã e você está parada com o carro numa rua de Jacareí. Você sabe me dizer exatamente o porquê?

– Ela sabe! Vamos pra Paraty. Conhecer a Flip! – Acho tão bonitinho quando a do bem tenta me proteger da do mal…

– Hahahahaha! E você acreditou nela, sua mega-tonta!?

– Anram.

– Tsc, tsc, tsc… Arrááá! Eu sabia! Olha o do chapéu vindo ali! Eu sabia! Ela nem gosta muito de ler!

– Não gosto mesmo! Gosto de escrever, não gosto de ler e todo mundo tá careca de saber. Qual a novidade?

– É verdade… Esqueci que agora você não mente mais…

– Con-ti-nu-andooo, dona do mal: vamos pra Paraty pegar essa estrada linda que te fez dormir por um bom tempo, vamos ver amigos e passear por aquela cidade que mais parece uma poesia de tão encantadora. Tô indo comer peixe no Dona Ondina e passar horas naquela varanda que deixa nós três de bom humor. De repente até compro e leio um livro! Quem sabe? Se a promessa for boa, mudo de opinião. Mas vou pra experimentar cachacinhas, sentir um pouco de sol, de sal e me permitir viver um pouco além do…

– Ok, concordo com tudo isso. Só não entendo porque o grandalhão do chapéu tem que ir junto.

– Ele é legal, do mal…

– Isso! Porque ele é legal. E porque adoro gente que diz sim para os caminhos inusitados dessa vida, ao invés de viajar na maionese discutindo certo, errado e adequado dentro da própria cabeça e sem sair do lugar. A do bem tem razão. Ele é legal e topou uma viagem-de-uma-hora-pra-outra. Até hoje, quantas pessoas nós conhecemos que aceitaram e curtiram isso numa boa? Hein? Hein?

– …

– …

– Ótimo. Que bom que nós três concordamos.

– OK… Você que sabe. Quero só ver aonde isso vai dar. Aceitar – do nada – um convite, é uma coisa. Querer viajar junto, de verdade, é outra.

– Quer saber? Menos, do mal. E olha aqui… Isso é pra vocês duas e é muito sério: se abrirem a boca pra dar um piu durante essa viagem, eu juro que…

– Oi.

– Oi…

Fomos interrompidas pela entrada dele no carro. Retribui o oi, dei-lhe um sorriso com suspiro aliviado e me dei conta de que – tanto a do bem quanto a do mal – estavam erradas. Ele era mais do que um cara legal e até que tem ido relativamente bem existindo. Sei também que viajar junto e fazer uma boa viagem é das coisas mais difíceis, mesmo sendo por um curto período ou trajeto. A do mal tinha suas razões pra questionar pra onde íamos e com quem, mas precisava compreender que quem se joga na estrada as três da manhã com uma mulher que está no volante conversando com duas vozes do além, é no mínimo alguém de coragem. E isso, nós três sempre admiramos.

Foi assim, entre sorrisos e logo depois de ligarmos o aquecedor do carro pra espantar o frio que nós quatro odiávamos, que as duas silenciaram e passaram a fazer o que mais gostam: olhar a paisagem, mesmo no escuro, e seguir em frente. Quietas… Quietas e atentas. E me deixaram conversar só com ele, pelo menos por um tempo…

(tanto quanto , essa história ainda continua…)

O Fim da Picada – O Início

Quando começamos a contar para as pessoas o que havia acontecido, minha parte da história começa numa fria noite de sexta-feira, bem assim:

E então, depois de um dia de trabalho exaustivo, decorrente de uma semana de trabalho exaustiva, lá estava eu, em casa, me preparando para dormir logo após uma saudável refeição altamente nutritiva (um X-Bacon, é lógico). Últimas repassadas nos e-mails… Checada nos tuítes… Uma visitinha ao Face… E veio aquele calafrio, seguido de uma tiritada de frio! Num arresisti e atualizei o status lá do Face dizendo o quão gelado estava! Exatamente 14 minutos depois eu recebo, direto de Sampa, a seguinte mensagem:

“Vamos pra FLIP, tipo… agora?”

Coisa mais inusitada! Me pegou totalmente de surpresa! Avaliei o que foi proposto, ponderei acerca das consequências, analisei as dificuldades, perdi-me em pensamentos acerca dos eventuais desdobramentos de um ato eventualmente tresloucado de pegar estrada naquela hora, enfim, considerei fria e calmamente todas as possibilidades mediatas e imediatas acerca daquela proposta. Nisso devo ter demorado aproximadamente uns 0,013 segundos…

Simultaneamente, em um tempo e espaço dimensional diferentes, lá estava ela:

Sabe quando você olha a sua volta e sente que tem a vida mais besta e sem graça do mundo? Era assim que eu estava me sentindo. Uma semana inteira trabalhando! Sete dias seguidos com os olhos grudados em frente ao computador, bolando estratégias malucas pra fazer o nome de um filme ecoar pelos quatro cantos do país. Trabalho, trabalho, trabalho e mais nada, sabe? Nenhuma diversãozinha básica. E tem gente que ainda acha que o que eu faço é glamouroso… Pfff! Eu estava na labuta numa sexta-feira, as onze da noite, sentada numa cadeira do papai, de pijama, xícara de chá de camomila na mesinha ao lado, notebook no colo, pantufa das tartarugas ninjas nos pés, dois aquecedores ligados na sala porque um só não estava dando conta do recado. Cenário lindo, né? Pois é… A vida de uma web-editora-escritora-marketeira pode facilmente ser confundida com a de um aposentado que ainda acha que dá um caldo.

Pra espantar o tédio e os pensamentos, abri o Facebook. Não adiantou muito, já que a timeline não ajudava em nada, contando somente que meus amigos estavam todos ocupados exibindo suas vidas off-line na on-line. Antes que eu implorasse ao Mark Zuckerberg um botão de “não curti”, vi ele postar uma frase manifestando toda a sua alegria por jantar um… X-Bacon!? E ainda fazia graça com aquele tempo horrível de gelado. Era o próprio Macaulay Culkin, vivendo uma espécie de versão adulta do Esqueceram de Mim…

E eu a cem quilômetros de distância, praticamente falando sozinha…

“Pfff… Como é que alguém pode tuitar felicidade só por causa de um x-bacon?”

E sorri de saudade do bestão, sem mover um dedo pra deixar ele saber disso. Mas, inevitalmente, continuei pensando…

“Isso… Vai em frente. Dá vontade de responder que quem precisa de bacon constrói pontes de safena, mas se eu fizer isso ele vai saber que é indireta e indiretas pela internet me deixam doida e eu cansei de ser doida. Além do mais, uma indireta chama outra indireta e, quando a gente vê, tudo parece que foi escrito com uma intenção, viramos o centro do universo e tudo passa a parecer teoria da conspiração. Não… Deus me livre. Cansei (mesmo!) de ser doida.”

Quieta no meu canto da internet, deixei ele quieto no dele. Um momento histórico de sanidade que durou uns 0,013 segundos, até que vejo ele postar outra mensagem e voltei a pensar…

“Sério que você também vai passar a noite postando no Facebook? Putz… Como a gente é looser…”

Comecei a achar que a vida dele talvez estivesse tão besta feito a minha e seria o fim da picada se deixássemos isso acontecer só porque já era quase meia-noite e só porque somos adultos, sensatos, equilibrados o suficiente pra não nos deixarmos levar por impulsividades do tipo…

“Vamos pra FLIP, tipo… agora?”

Juro que não sei porque cliquei no maldito botão de enviar mensagens e escrevi aquilo. Eu tinha certeza absoluta de que ele diria não. Mas…

Enquanto isso, eu, nestas plagas interioranas:

Bem resumidamente tivemos o seguinte diálogo:

“cê tá falando sério?” – rondou-me a desconfiança de uma piada que eu não havia entendido.

“tô” – lacônica resposta, sem explicação ou motivação.

“então vamos” – afinal de contas o assunto já havia sido exaurido mentalmente numa ferrenha discussão comigo mesmo já há muitos segundos atrás.

Combinada a viagem no carro dela, ficou de passar em casa dali a duas horas para me pegar. Quatro horas depois lá estava ela. Ah, essas mulheres…

Nesse meio tempo, ela:

Nem voltei no Facebook pra ver a resposta! Se ele não tivesse entrado no MSN pra se certificar de que eu não havia escrito do dedo pra fora, eu teria ido dormir. Ele perguntou se era sério, falou alguma outra coisa sobre a volta, eu disse qualquer coisa para que mantivéssemos o foco na ida e, quando vi, desliguei o celular dizendo que chegaria em Jacareí em duas horas.

Me pergunta se dois minutos depois eu sabia o que era tédio? Nem lembrava mais! Aumentei o som e sai dançandinho a trilha sonora do The Blues Brothers. E, como costumo ser muito prática, foi jogo rápido: certifiquei-me de que todas as notas sobre o filme estavam programadas e apertei o botão de desligar fazendo a oração do off-line…

“Querido Deus… Eu vou desaparecer um fim de semana inteirinho e espero que ninguém perceba e se perceberem por favor faça com que o filme seja a maior bilheteria do ano e ninguém me aborreça.”

Dei uma olhada no melhor caminho indicado pelo Google Maps, desliguei o notebook, corri pra tomar banho, passei um tempo olhando pro meu guarda-roupa como se ele fosse uma equação matemática sem solução aparente, liguei pros amigos que estariam em Paraty resolvi a equação escolhendo algumas roupas, botei a fofoca em dia, fiquei na dúvida se levava ou não o pijama, carreguei a bateria da câmera fotográfica, verifiquei os celulares, achei um absurdo eu ter dois celulares, esqueci os óculos, voltei pra pegar os óculos, troquei a bota pelo tênis, levei mais uma blusinha, mais um casaco, troquei de batom, sorri pro espelho, fechei a porta, parei no posto de gasolina, verifiquei se estava tudo certo com o carro, com meus documentos e…

“Putz… Ainda bem que não esqueci o GPS!”

Quatro horas depois, eu estava em Jacareí esperando por ele no portão do condomínio errado, cem metros depois do que ele mora. Mas…

“Putz… Três da manhã! Ah… Tudo bem… Paraty é logo ali mesmo.”

(tanto quanto , essa história ainda continua…)