Dizendo tudo sem dizer nada

Cena: duas menininhas, de uns cinco e seis anos, brincando alegremente, à noite, no playground de um condomínio, próximo à guarita de entrada. Passados alguns momentos, com uma certa carinha de preocupação, correm para lá.

– Tiuôô! Que horas são, façavor?

O vigia, com um ar empertigado e prestimoso, prontamente lhes disse:

– Um momento… São vinte e cinquenta e cinco.

– Ah… Tá… Então, obrigada…

As duas saem com uma cara de interrogação do tamanho do mundo. Cochicham entre si e saem correndo de volta cada qual para seu apartamento.

Acho que, ainda sem saber que horas seriam, na dúvida seria melhor voltar pra casa…

Um dia no campo

Sim, o pescador aí em cima é o Jean. Juntou a obstinação samurai herdada da mãe com a teimosia mineira herdada do pai e não arredou o pé do lago enquanto não conseguiu pegar ao menos um peixinho.

Foi um final de semana curioso, pois fomos todos conhecer um sítio (de um primo da Dona Patroa) onde se criam avestruzes. É. Isso mesmo. Avestruzes. Bicho esquisito. Grande e esquisito.

Apesar de ter perdido meus óculos e – literalmente – ter sido obrigado a carregar um saco de merda (“esterco fertilizante” que a Dona Patroa levou pra casa), a criançada se divertiu MUITO. De um lado o caçulinha atacou de pescador, enquanto que o mais velho – pra surpresa de todos – atacou de cavaleiro junto com o primo. Surpresa porque normalmente ele é o mais arredio e introspectivo de todos…

E o do meio? Heh… Esse demonstrou as características urbanóides do pai. Correu, pulou, brincou, pescou e até se divertiu. Mas ficou bem mais à vontade com um lápis e um papel na mão, desenhando e descobrindo a sonoridade de sílabas novas que estava aprendendo.

Cinematográficas

Cena 1: Alta noite. Fria. Família dorme sossegada. Uma chuva fina cai lá fora.

De repente, o marido acorda. Acha que ouviu um barulho. Não sabe identificar exatamente o quê, mas tem certeza que ouviu algum tipo de barulho. Talvez uma espécie de clique, seguido de um lento arrastar. Perscruta a escuridão com o olhar, mas nada consegue enxergar naquele negrume. Apura os ouvidos, mas, fora os pequeninos barulhos normais da noite, tudo está em silêncio. Resolve voltar a dormir. O sono vem chegando, lentamente. Naquele exato momento, equilibrado entre o dormir e o acordar, novamente ouve um barulho. Desta vez bem mais próximo. No mesmo quarto. Seu cérebro despertou, mas o resto do corpo não – está envolto numa estranha e confortável torpeza. Seu coração dá um solavanco quando sente algo frio que lenta e inexoravelmente começa a avançar sob as cobertas, bem do seu lado direito. Não consegue raciocinar com clareza. Não consegue que o corpo responda. O coração, acelerado, ameaça romper o peito a cada batida. E aquela massa fria vem subindo até parar na altura de sua cintura. E daí vem a pergunta:

– Paiê, posso ficar aqui?

E então, com um terno sorriso, todo aquele cenário digno de Vincent Price desaba. Ele puxa o filho nº 2 até a cabecinha se aninhar em seu ombro, envolve-o bem com as cobertas e aconchegando-o com um forte abraço responde:

– Claro, filho. Claro…

Cena 2: Praça. Começo da noite. Bairro residencial. Frio. A esposa, com as crianças dentro do carro, espera o marido voltar da casa do sogro, do outro lado da rua, onde foi pegar alguns documentos.

E então o filho nº 1, taurino, do alto de seus oito anos, declara:

– Mãiê! Tô com sede.

– Ah, filho, agora não tem água.

– Mas tô com sede!

– Olha só, a garrafinha tá vazia. Não tem nem um pouquinho de água. Daqui a pouco a gente chega em casa e você toma água, tá bem?

– Não tá não. Eu tô com sede.

A mãe suspira. Sabe que é uma batalha que está fadada a perder. Olha a sua volta e vê um a casa de um dos vizinhos com a porta aberta, ali mesmo na praça. Chama-o, conversa um pouco, pede um copo d’água. Ele se propõe a encher a garrafinha. Ela agradece. Volta para o carro.

– Toma, filho. Sua água.

– Essa água eu não quero não.

– CUMÉQUIÉ???

– Eu é que não vou tomar essa água. Não sei de onde veio.

– Filho, é água, simplesmente água. Aquele senhor foi gentil e até encheu a garrafinha. Vê se toma essa água e sossega.

– Não.

– Ah, filho! Larga mão de ser fresco!

– Fresco não. Sistemático.

Um no cravo, outro na ferradura

Meu filho do meio tem apenas cinco anos de idade e tenho percebido que suas atividades escolares são, principalmente, voltadas à percepção do ambiente que o cerca.

Sua última tarefa foi a respeito de “ruídos que o corpo faz”. Teria que fazer um desenho a respeito disso…

Pois bem.

O desenho que ele fez envolvia EU, dormindo. E sonhando. Um sonho muito bonito, diga-se de passagem, pois é exatamente da maneira que ele vê os próprios pais. Na nuvenzinha de sonho que desenhou, eu e a Dona Patroa estávamos nos beijando…

Hm?

Ah, tá.

Vocês querem saber o que isso teria a ver com ruídos do corpo.

Numa outra parte, ocupando todo o espaço restante, estava escrito o seguinte:

“RRROOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNCCCCCCCCC..”

Ora, baratas!

Pequena conversa de ontem à noite, durante o jantar:

– Paiê?

– Fala, filho.

– Sabe qual é o inseto mais veloz do mundo?

Pensei em falar dos malditos pernilongos que surgem do nada, zumbem dentro de nossos ouvidos e, enquanto estamos a caçá-los, aproveitam pra picar nossas canelas. Mas achei que não seria isso.

– Não sei, não filho. Qual é?

– A barata!

– Hm?

– Sabia que se um homem e uma barata fossem do mesmo tamanho e apostassem uma corrida ele perdia, porque a barata consegue chegar a trezentos quilômetros por hora!

– (…)

Tão vendo? Filhote também é um repositório de cultura.

Inútil.

Mas, ainda assim, um repositório de cultura.

(PS.: índio véio descansou ontem, pois também não é de ferro…)

Consagrado excreto

Essa eu juro que não aconteceu comigo, mas sim com um grande amigo e seu pequeno petiz de tenros cinco anos de idade (o que, aliás, comprova a teoria de que efetivamente, independente do endereço, criança dá trabalho).

De repente, não mais que de repente, o pequenino encontrou lá um lápis, um pauzinho, ou algo similar e saiu pela casa afora, realizando um pequeno ritual. Um dos primeiros lugares foi a cozinha. Chegou, com aquele olhar distante, ar compungido, e mirou sua mãe de alto a baixo.

– Que foi filho? Que é isso? – já perguntou ela com um meio sorriso nos lábios.

(Suspiro profundo) – Deus b’çoe essa cozinha. Em nóm do pai, do fio, espanto, amém.

E deu-lhe as costas (ignorando as gargalhadas que ficaram pra trás), seguindo rumo aos demais cômodos da casa e consagrando-os um a um.

Até que chegou no banheiro.

E lá estava seu pai numa posição, digamos… concentrada. Pensando na vida. Resolvendo os problemas do mundo. Tá bom, tá bom, cagando mesmo.

Ainda assim, isso não o abalou. Recomeçou seu ritual.

– Deus b’çoe esse banheiro. Em nóm…

– Ô filho, dá um tempinho pro papai, vai. Agora papai tá ocupado, tá fazendo cocô…

– Então Deus b’çoe o cocô do papai. Em nóm do pai, do fio, espanto, amém.

E, cumprida a missão, foi embora, deixando seu pai perplexo.

E agora?

Dava ou não dava descarga?

Afinal de contas aquela matéria havia sido transubstanciada pelo seu próprio filho em merda benta…