Alegado, o AdEvogado

Seu curioso nome foi fruto de uma feliz experiência de vida de seu pai. Tendo trabalhado por muitos e muitos anos em uma oficina mecânica de caminhões, ligada a uma transportadora, eis que numa bela manhã de sol viu-se desempregado. Apesar de já beirar os quarenta, sua mulher estava grávida pra valer pela primeira vez. Digo “pra valer” porque ela já havia tido complicações em duas gestações anteriores e dessa vez tudo corria bem.

Talvez tenha sido por isso, ou pela falta de perspectivas naquele momento em um Brasil vivenciando a plena ditadura, que se encheu de coragem para ajuizar uma reclamação trabalhista contra seus ex-patrões. Por certo gostava deles – afinal tinham lhe dado emprego quando sequer conhecia direito o ofício – mas, enfim, precisava sobreviver.

Após alguns meses de demanda, com seu filho prestes a nascer, eis que chegou o dia da audiência. E seus ex-patrões simplesmente não compareceram! Maravilhado com o que mais tarde descobriu chamar-se revelia, ouviu a sentença que foi dada ali, na hora, ditada em voz alta pelo magistrado – mas que guardou na memória tão-somente a parte final: “Assim, em face do alegado, dou ganha de causa ao senhor…”

Estava estupefato!

Seu advogado havia lhe dito que tudo aquilo poderia demorar anos – mas não! Tudo havia dado certo! Ligou para seu vizinho para poder compartilhar sua felicidade com a esposa, mas recebeu a notícia de que ela não estava lá. A hora havia chegado e sua sogra a tinha levado para o hospital.

Pegou o ônibus e dirigiu-se o mais rápido que pôde para maternidade. Aquelas palavras da sentença martelando em sua cabeça. Ao chegar, seu menino, seu herdeiro, acabara de nascer. Era um bom sinal. Tudo aquilo era um bom agouro. Naquele momento decidiu que seu nome deveria refletir a face de sua felicidade. A face de sua sorte. A face do Alegado.

Seu pai soube trabalhar bem com o dinheiro que havia recebido, além de ter arranjado um novo emprego logo em seguida, o que garantiu à família uma boa vida de classe média (quando esta ainda existia).

E Alegado cresceu. E tornou-se adulto. Possuía um tipo comum para quem é do Estado de São Paulo: era mais alto que baixo, mais magro que gordo, mais claro que escuro, com o cabelo mais pra liso que pra cacheado. E, por inúmeros motivos, formou-se advogado.

Sua estrela talvez não fosse tão brilhante quanto a de seu pai, mas é certo que se esforçava. A sorte sempre o acompanhou, mas de braços dados com o desastre iminente. Sua carreira traduz-se numa série de momentos tragicômicos: alguns resultando em vitórias e outros em fracassos – mas sempre gerando algum causo pra ser contado às futuras gerações.

A passagem a seguir ocorreu numa audiência em São Sebastião, litoral paulista. Lá pr’aquelas bandas a predominância é de dois tipos de ações judiciais: investigação de paternidade e reintegração de posse (pela proximidade com o porto e pela grilagem de terras).

Num dia que fazia um calor causticante, aguardando o início da audiência, e tentando demonstrar sua boa vontade, Alegado puxou conversa com os advogados da outra parte. Eis que passam duas moçoilas, bronzeadíssimas, pernas de fora, bustiê, exalando hormônios…

– Êita, que abriram a porta da zona no meio da tarde! – Foi o comentário de Alegado. Os outros advogados só esboçaram um sorriso, piscando entre si. Ainda assim Alegado continuou sua preleção sobre as beldades que passaram.

Minutos depois, no horário marcado, eis que todos são chamados à sala de audiência. E Alegado sentiu o sangue esvair-se do corpo. Deu de cara com as “meninas”: juíza e escrevente, respectivamente…

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Pois bem. Vocês acabaram de conhecer a gênese de “Alegado, o AdEvogado”. Como diria Richard Bach, trata-se de uma forminha de pensamento que criei para poder expressar melhor algumas idéias. Existem diversas histórias que permeiam os corredores dos fóruns da vida e que seriam impublicáveis se conhecida a autoria. Através do Alegado, de quando em quando vou compartilhar tais histórias por aqui. Muitos talvez se recordem que já publiquei alguns desses causos antes, mas – oras bolas – precisava dar um passado ao nosso personagem!…

Ponto pro estagiário!

Bem no meio de uma das inúmeras crises de estresse diário pelo qual eu e minha subprocuradora passamos, o estagiário pergunta:

– Posso sair pra tomar um lanche? Se quiserem que eu traga alguma coisa é só falar…

– Uma Coca Diet – ela brincou.

– Uma cachaça – eu completei.

– Brincadeira. Não precisa de nada, não.

– Calma gente – disse o menino – não fiquem nervosos. Se quiserem, então, eu trago uma cuba libre…

Heh… Esse garoto vai longe…

Pra completar ele ainda mandou um e-mail com doze pérolas jurídicas, o qual transcrevo abaixo (essas eu não conhecia):

1. Dama de muitos leitos

“Nunca se disse que a mãe requerente era uma donzela ingênua, mocinha nova, debutante. Mas também pintar como querem os suplicados, achando que ela ‘dava mais do que xuxu na serra’, isso é uma grande inverdade.”

Da peça de alegações finais, numa ação de investigação de paternidade, julgada procedente no TJ-SC.

2. Escapadelas perdoadas

“Nesses anos todos de união estável, não houve traição praticada pelo réu, nem novos romances que ele tivesse mantido a ponto de desnaturar a relação de marido e mulher, que mantinha com a autora. Foram apenas frugais escapadelas, ‘namoricos’ inconsequentes – que seguramente jamais desbordaram em relacionamento sexual”.

De uma réplica, em ação de dissolução de sociedade de fato, em Montenegro – RS.

3. Barbear em local não-recomendado

“Informamos que o aparelho trabalha com lâminas que cortam bem rente à pele. O saco escrotal possui uma pele bem fina e sensível, além de ser bem enrugado também, e por este motivo o consumidor alegadamente sentiu ardência, e teve pequenos cortes. Recomendamos que o aparelho seja usado apenas para o barbear da face, a fim de evitar o risco de resultados não desejados”.

Teor de documento que instrui contestação em ação indenizatória no 1º JEC de Porto Alegre.

4. Quadril flácido

“Consta que o delegado teria chamado a autora da ação, em duas oportunidades distintas, de ‘juíza bunda mole’, porque ela mandava soltar os infratores por ele detidos, além de insinuar que ela mantinha relações sexuais com ditas pessoas, usando a expressão que a magistrada ‘andava dando’ a eles”.

Trecho do voto do relator, em um acórdão de ação indenizatória contra o Estado do RS, na 5ª Câmara Cível do TJRS.

5. Massagens eróticas

“O cheque que é objeto dos embargos foi, mesmo, emitido pelo devedor e serviu como paga aos serviços profissionais de massagens prestados pela credora ao executado, várias vezes, ao longo do ano de 2001. De nada adianta ao devedor querer escusar-se imiscuindo assuntos de sexo, porque a cártula sustada é um título formal, perfeito, sobre a qual o emitente sequer questiona que sua assinatura seja a própria”.

De uma impugnação a embargos do devedor, na 7ª Vara Cível de Porto Alegre.

6. Senhor juiz, aperte o devedor !

“Pedimos então a V. Exª que entenda que a única maneira de se conseguir receber é apertar o reclamado contra a parede, pois o mesmo não tem palavra para cumprir qualquer tipo de acerto. Excelência faça pela melhor forma possível, porque não tenho mais condições de olhar a fisionomia do reclamado, por não ter mais confiança no mesmo.”

De uma petição na Vara do Trabalho, em Palmeira das Missões (RS)

7. Inseticida no rol de testemunhas

“Discordam do entendimento que cinge importante decisão recorrida em simples decisão interlocutória quando é sabido que a decisão desapontou a lei acenando a antecipação da sentença, no momento em que sucintamente em desrespeito aos atos processuais programático põe um pá de inseticida no rol das testemunhas oferecidas nos rigores da lei ao juízo da causa”.

De uma petição, reclamando contra o indeferimento da oitiva de testemunhas, na comarca de Criciuma-SC.

8. Falecimento sem certidão

“A inventariante deixa por ora de juntar a certidão de óbito de seu finado esposo, por não dispor dela no momento. Protesta pelo deferimento de prazo. Como comprovação junta foto do ‘de cujus’ dentro do caixão.”

De uma petição de abertura de inventário em Barreiras (BA).

9. Quem entender, é favor explicar…

“Diagnosticada a mazela, põe-se a querela a avocar o poliglotismo. A solvência, a nosso sentir, divorcia-se de qualquer iniciativa legiferante. Viceja na dialética meditabunda, ao inverso da almejada simplicidade teleológica, semiótica e sintática, a rabulegência tautológica, transfigurada em plurilingüismo ululante indecifrável”.

De uma petição judicial, transcrita no site da AMB, na campanha em prol da simplificação da linguagem jurídica.

10. Vontade de vomitar

“O firmatário ficou tomado de revolta e impotência ao ler a sentença. Dá vontade de partir para outra profissão e rasgar a carteira da OAB. O advogado patrono do recorrente se recusa a analisar item por item todos os acontecimentos deste feito, e principalmente dos depoimentos prestados pelas testemunhas do reclamado. Dá vontade de vomitar”.

De uma peça de razões de recurso ordinário, oriunda de Caxias do Sul, protocolada no TRT-4.

11. Tropa canina

“Certifico e dou fé que se torna impossível fazer a citação do réu porque o portão da fazenda encontra-se fechado a cadeados. Suspeitando que o réu se ocultasse, pulei a cerca, tendo que correr em retirada, porque alguém atiçou uma tropa de quatro ou cinco cachorros contra mim. Escapei por pouco”.

De uma certidão de oficial de Justiça, em São Gabriel-RS.

12. Réu escorregadio

“Deixei de citar o réu porque, apesar de o ter visto, inclusive tentando se esconder atrás do poste, constatei ser o mesmo muito escorregadio. Quando me aproximei, esgueirou-se no meio dos veículos estacionados nas proximidades e sumiu como que por encanto”.

De uma certidão de oficial de Justiça na comarca de Canoas.

Habeas Pinho

Torcicolo!

Nestes últimos dias por mais de uma vez estive tentado a sentar frente ao computador e colocar em palavras os devaneios de minh’alma. Mas não o fiz. E, sinceramente, perdi aquele momento de inspiração. Eu pretendia falar sobre muitas coisas, desde a riqueza e maravilha do mero SILÊNCIO em um ambiente (certo, Paulo?), passando pelo último filme de Harry Potter (muito bom, como sempre), mais alguns detalhes das obras de marcenaria que me custaram um ombro são (ainda tá doendo), e, talvez, concluindo com a demagógica visita de representante do Tribunal de Justiça para inauguração das novas Varas de Família de São José dos Campos (que sequer estão em condições de atender ao público).

Mas ainda voltarei a falar com detalhes desses assuntos.

Para não passar em branco, eis uma mensagem que recebi na forma de arquivo de powerpoint, enviada por Eloy Franco, com um soberbo fundo musical de Dilermano Reis (Abismo de Rosas):

Em 1955 em Campina Grande, na Paraíba, um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou a polícia e apreendeu o violão.

Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Ronaldo Cunha Lima, então recentemente saído da Faculdade e que também apreciava uma boa seresta. Ele peticionou em Juízo, para que fosse liberado o violão.

Aquele pedido ficou conhecido como “Habeas Pinho” e enfeita as paredes de escritórios de muitos advogados e bares de praias no Nordeste.

Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito Deputado Estadual, Prefeito de Campina Grande, Senador da República, Governador do Estado e Deputado Federal.

Eis a famosa petição:

HABEAS PINHO

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca:

O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção
Não é faca, revólver nem pistola.
É simplesmente, doutor, um violão.

Um violão, doutor, que na verdade
Não matou nem feriu um cidadão.
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade.
Ao crime ele nunca se mistura.
Inexiste entre eles afinidade.

O violão é próprio dos cantores,
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam as mágoas e que povoam a vida
Sufocando suas próprias dores.

O violão é música e é canção,
É sentimento de vida e alegria,
É pureza e néctar que extasia,
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório,
Porém seu destino se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.

Mande soltá-lo pelo Amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas leves e sonoras.

Libere o violão, Dr. Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz,
cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, e afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
perambular na rua um desgraçado
derramando na rua as suas dôres?

É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento.
Juntando esta petição aos autos nós pedimos
e pedimos também DEFERIMENTO.

Ronaldo Cunha Lima, advogado.

O juiz Arthur Moura sem perder o ponto deu a sentença no mesmo tom:

Para que eu não carregue
Muito remorso no coração,
Determino que seja entregue,
Ao seu dono, o malfadado violão!

Tirinha do dia:
Desventuras de Hugo...

Mais dois causos

Uma preguiça do tamanho do MUNDO…

Mais alguns “causos” interessantes de doutores adEvogados de direito jurídico…

E diz que o advogado estava na sala do juiz, sozinho, esperando o meritíssimo voltar. Entra um outro advogado, com um processo na mão.

– Bom dia, doutor.

– Bom dia…

– Escuta, o senhor não acha que esse caso, segundo essa ótica, de acordo com as minhas argumentações, deveria ter uma solução distinta?

– Hmmm (lendo)… Sim, sim, o senhor está coberto de razão!

– Que bom que pense assim! O senhor poderia despachar no processo, então?

– Claro, claro.

Puxou o processo e deu um despacho minucioso acerca do caso.

– Obrigado excelência, muito obrigado. Vou indo para o cartório então.

– Não por isso. Só mais uma coisinha doutor.

– Pois não, excelência?

– Eu não sou o juiz não. Sou advogado, tanto quanto o senhor…

Sinceramente não sei qual foi a reação do advogado.

Noutra oportunidade, esse mesmo advogado – já famoso por suas gozações – chegou numa sala de audiência onde estava uma escrevente de sala nova. Ela ainda não conhecia o juiz. Aproveitando a situação, o danado senta-se de frente para ela, puxa um processo crime e lhe diz:

– Vamos lá! Vou lhe ditar uma sentença.

E a menina, toda solícita, começou a digitar a malfadada sentença, sendo que ele enveredou pelas teses mais absurdas jamais sequer cogitadas no mundo jurídico. Estava já ao final da sentença, quando chega o verdadeiro juiz, se posta entre ambos e fica observando, com um mal disfarçado sorriso no canto da boca.

– … e assim, ante as provas constantes dos autos, condeno o réu ao ENFORCAMENTO em praça pública, a ser realizado ao meio-dia do dia tal, na presença de testemunhas e autoridades de direito, nos termos da Lei. Publique-se, registre-se, intime-se.

Os olhos da escrevente já estavam DESTE TAMANHO, mas não perdeu uma vírgula da sentença. Nisso, o juiz falou:

– Mas o doutor não acha que está carregando muito na sentença, não?

Ao que ele se voltou para o juiz, sorrindo, mas com o dedo em riste:

– Ah não, não, não. Ele merece… Aliás, se o doutor não estiver contente, que apele!

Tirinha do dia:
Desventuras de Hugo...

Dois causos

MUITO quente!

Só pra não passar em branco o dia de hoje, mais duas historinhas (com “H” mesmo) da hora do almoço.

Um certo advogado foi contratado para fazer a defesa em um crime de assassinato. A vítima fôra esfaqueada pelas costas. TREZE vezes.

A teste defendida: “Legítima defesa”.

“Como assim, doutor??? Cumpre lhe lembrar que foram TREZE facadas. Ainda que fosse legítima defesa, como se justificariam os demais golpes?”

“Simples” – ele disse. “O meu cliente sofre do mal de Parkinson.”

Outra:

A vítima levou uma surra e, como golpe final, ao cair de costas no chão, o assassino esmagou sua cabeça com um paralelepípedo (ARGH!).

A tese defendida: “Meu cliente é inocente. Acontece que a vítima já morreu ANTES do golpe final. De susto.”

O juiz, num lampejo de misericórdia, convocou o dito advogado para que trocasse a defesa antes que ele a avaliasse “oficialmente”. Ao que sei, ele trocou…

Tirinha do dia:
Desventuras de Hugo...

Maldades…

Histórias da hora do almoço… Conversando hoje com uma funcionária do Cartório Eleitoral ela nos contou acerca das urnas que chegaram para o referendo sobre a comercialização de armas. E, junto com as urnas, os manuais de operação e o pessoal técnico.

Mas… Havia um estagiário no meio do caminho; no meio do caminho havia um estagiário…

Avisaram o rapaz que, como ele era novo no serviço, teria uma “provinha” a ser feita sobre o manual da urna. “Tudo bem”, ele comentou com os amigos, “quando chegar a hora eu puxo o manual e dou uma colada básica!”

Ao saber disso essa funcionária simplesmente chegou pra ele, com aquela cara de casualidade mais normal do mundo e disse: “Olha, a gente tinha marcado sua prova pra sexta, mas o juiz não vai estar aí. Então vamos fazer o seguinte: fica pra segunda-feira que com certeza o doutor estará no cartório. É até bom, pois daí você vai ter o final de semana pra estudar, né?”

O rapaz ficou verde.

Antes do final do dia ele voltou pra perguntar se tinha que vir vestido “socialmente”. Disseram-lhe que um esporte fino já estava bom.

Correrias normais de um cartório e esqueceram o caso. Já na terça alguém lembrou: “E aí? Foi fazer a prova”, ao que o rapaz respondeu, num cochicho: “Fica quieto, acho que esqueceram…”

Heh… Pequenas maldades. Nada como isso pra alegrar o dia…

Senhor Doutor Você Juiz

Placar atual: Família 5 x Virose 4

Dando sequência às “sentenças curiosas” já publicadas aqui, e graças ao Paulo (aquele, o pai do César e do Daniel), nosso correspondente extraordinário, segue mais um texto interessante. Reparem como o juiz sentenciante “pisa em ovos” no decorrer da sentença…

Lembram-se do Juiz de Niterói que entrou na Justiça contra o condomínio onde morava, apenas e tão-somente pelo fato de ser tratado por “você”?

Saiu a sentença!

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COMARCA DE NITERÓI

NONA VARA CÍVEL Processo n 2005.002.003424-4

S E N T E N Ç A

Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO PLAZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de “senhor”. Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de “Doutor”, “senhor” “Doutora”, “senhora”, sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos.

Instruem a inicial os documentos de fls. 8/28.

O pedido de tutela antecipada foi indeferido às fls. 33. Interposto Agravo de Instrumento, foram prestadas as informações de fls. 52. às fls. 57 requereu o autor que emanasse ordem judicial para que os réus se abstenham de fazer referência acerca do processo, sobrevindo a decisão de fls. 63 que acolheu tal pretensão.

O condomínio se manifestou ás fls. 69/98, e ofertou cópia do recurso de agravo de instrumento de fls. 100, cujo acórdão encontra-se às fls. 125.

Contestação do condomínio às fls. 146 e da segunda ré de fls. 247, ambos requerendo a improcedência do pedido inicial. Seguiu-se a réplica de fls. 275.

Por força de decisão proferida no incidente de exceção de incompetência, verificou-se a declinação de competência, com remessa dos autos da Comarca de São Gonçalo para esta Comarca de Niterói.

Em decorrência do despacho de fls. 303v, as partes ofertaram seus respectivos memoriais, no aguardo desta sentença.

É O RELATÓRIO.

DECIDO.

“O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter.” (Noberto Bobbio, in “A Era dos Direitos”, Editora Campus, pg. 15).

Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito. Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.

Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que ser homem de notada grandeza e virtude.

Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida. “Doutor” não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas para pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de “doutor”, sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa – para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que “professor” e “mestre” são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistrado, após concluído o curso de mestrado.

Embora a expressão “senhor” confira a desejada formalidade nas comunicações – pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir. O empregado que se refere ao autor por “você”, pode estar sendo cortês, posto que “você” não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social. O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe “semi-culta”, que sequer se importa com isso.

Na verdade “você” é variante – contração da alocução – do tratamento respeitoso “Vossa Mercê”. A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome “você”, devem ser classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de “seu” ou “dona”, e isso é tratamento formal.

Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente.

Na edição promovida por Jorge Amado “Crônica de Viver Baiano Seiscentista”, nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Márcio Tati anotara que “você” é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 1999). Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não é ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de “você” e “senhor” traduz-se numa questão sociolinguística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.

Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso não é tema interna corpore daquela própria comunidade.

Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I.

Niterói, 2 de maio de 2005.

Tirinha do dia:
Desventuras de Hugo...