Direito autoral de poeta psicografado

Uma das listas das quais participo é de genealogia (a excelente Geneal-BR). E lá surgiu uma questão para qual não tive resposta imediata. Tá, na prática posso encher livros e mais livros com questões para as quais não tenho resposta – mediata ou imediata – mas em termos de juridiquês fiquei curioso. A mensagem que surgiu foi mais ou menos a seguinte:

Sapeando pela internet, achei o seguinte site: (…) Nele é possível ver que estão publicando um livro sobre poesias, que está sendo vendido nas Lojas Americanas, inclusive, informando que um dos poemas é de (…) – meu tio-bisavô – e que foi psicografado! Meu sentimento é de que isso está errado. O que vcs acham? Gostaria de uma opinião.

Alguns palpitaram que os direitos autorais caem em domínio público após 70 anos de sua publicação – mas não estamos falando aqui de obras publicadas, mas sim, em tese, de um “original”.

Outros sugeriram a cobrança dos royalties que seriam devidos à família por essa produção post-mortem.

Uma boa parte ainda achou que trata-se meramente do uso indevido do nome do falecido.

Foi destacado que o grande dilema diz respeito a quem na realidade seria o titular dos direitos autorais da obra psicografada. Seria o médium? Os herdeiros do de cujus? O próprio espírito?

O problema aí é que a “existência da pessoa natural” termina com a morte do indivíduo – tá lá no Código Civil. É a “Lei”. Assim, tecnicamente falando, uma pessoa falecida não poderia ser titular de direitos. Dessa forma parece que afastamos a possibilidade de abrir uma caderneta de poupança em nome do espírito.

Já no que diz respeito aos herdeiros, estes o são daquele monte-mór apurado quando do falecimento do indivíduo. Nesse sentido há que se diferenciar entre descobrir algo que não havia sido originalmente colacionado à herança de algo que sequer fazia parte da herança – no caso a obra literária – eis que produzida depois. Até porque os tribunais decidem sobre fatos que lhes são apresentados, não lhes cabendo decidir acerca da existência ou não desses fatos – no caso a atividade intelectual de um falecido. Assim, afastamos também uma eventual guerra jurídica interminável de famílias querendo receber por tudo que o Chico Xavier já tenha escrito.

Portanto, ainda que em nome de “terceiro”, parece-me que o direito autoral efetivamente dito acerca da obra psicografada realmente pertenceria ao médium que a escreveu.

Restaria então um único pontinho a ser esclarecido: o eventual uso indevido do nome, ou, como diria o Código Penal, “atribuir falsamente a alguém, mediante uso de nome, pseudônimo ou sinal por ele adotado para designar seus trabalhos, a autoria de obra literária científica ou artística”.

E aí eu entro numa seara que efetivamente não saberia definir.

Acontece que o psicógrafo realmente acredita ser aquela obra de autoria de um espírito. Em tese não haveria que ser falar de plágio, pois nada foi reproduzido e tampouco adaptado – quando muito talvez tenha ocorrido uma espécie de “pastiche inconsciente”.

Mas isso também seria juridicamente questionável.

Enfim, fica a pergunta no ar…

Sistema de cotas

Curioso. Ainda ontem estava proseando sobre isso. Mas saibam que meu posicionamento pessoal é que essa questão das cotas foi uma das maiores besteiras já idealizadas em termos de legislação nacional. Concordo plenamente com o posicionamento do Deputado citado na nota abaixo – tanto que grifei.

TJRJ – Lei que prevê o sistema de cotas nas universidades estaduais é suspensa

Publicado em 26 de Maio de 2009 às 12h03

Estão suspensos os efeitos da Lei estadual 5.346, do ano de 2008, que prevê o sistema de cotas para o ingresso de estudantes carentes nas universidades estaduais. A decisão é do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio, que concedeu ontem, dia 25, uma liminar ao deputado estadual Flávio Nantes Bolsonaro. Ele propôs ação direta de inconstitucionalidade contra a lei de autoria da Assembléia Legislativa do Rio (Alerj).

O deputado, que também é advogado, defendeu a ação no plenário do Órgão Especial. A Lei estadual tem o objetivo de garantir vagas a negros, indígenas, alunos da rede pública de ensino, pessoas portadoras de deficiência, filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.

Segundo o parlamentar, há, hoje em dia, discriminação entre cotistas e não-cotistas nas universidades que adotam o sistema. “A lei é demagógica, discriminatória e não atinge seus objetivos. O preconceito existe, não tem como negar, mas a lei provoca um acirramento da discriminação na sociedade. Até quando o critério cor da pele vai continuar prevalecendo? A ditadura do politicamente correto impede que o Legislativo discuta a questão”, ressaltou.

O Relator do processo, Desembargador Sérgio Cavalieri Filho, votou pelo indeferimento da liminar. Segundo ele, tal política de ação afirmativa tem por finalidade a igualdade formal e material. “A sociedade brasileira tem uma dívida com os negros e indígenas”, salientou. No entanto, o Órgão Especial decidiu, por maioria dos votos, deferir a liminar, suspendendo os efeitos da lei. O mérito da ação ainda será julgado.

Nº do Processo: 200900700009

Fonte: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Aliás, em termos de “dívida para com a sociedade”, então cadê a cotinha dos amarelos e alemães que foram discriminados na época da Segunda Guerra Mundial? Em função da participação de seus povos na guerra, no Brasil existiam “guetos” onde os japoneses deveriam viver concentrados e sob o controle do Estado. Aliás, meu próprio tio-avô, José Claudino Nunes (*1888 / +1953), ainda que descendente de portugueses, por ser loiro e de olhos azuis somente podia circular por aí carregando um “salvo conduto” para provar que não era alemão…

Falsa moral

Não!

A pretensa “falsa moral” não é por parte dos personagens do filme “Os Intocáveis”. A imagem acima é apenas para ilustrar um ponto de vista. Mas vejamos a notícia (direto do clipping do IOB Jurídico):

STF – Ministro nega liberdade a comerciante de CDs e DVDs piratas
Publicado em 11 de Maio de 2009 às 14h25

O Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu liminar em Habeas Corpus (HC 98898) para L.C.B., condenado pela prática de crime contra a propriedade imaterial, como pequeno comerciante de CDs e DVDs copiados sem a autorização do titular do direito autoral.

O comerciante foi surpreendido por policiais com a posse de 180 CDs “piratas” de diversos títulos e intérpretes. Laudo pericial comprovou que os CDs eram cópias não autorizadas para comercialização. L.C.B. foi então condenado a dois anos de reclusão, em regime semiaberto, e multa, pela prática de violação de direito autoral.

A Defensoria Pública de São Paulo alegou que a conduta é socialmente adequada, “visto que a sociedade não recrimina quem pratica a venda de CDs e DVDs reprografados e sim estimula cada vez mais a sua prática, dados os altos preços dos CDs e DVDs insuscetíveis de serem adquiridos pela grande maioria da população”.

Também afirmou que os pequenos contrafatores, por força do princípio da adequação social, não estão abrangidos pela norma do art. 184 do Código Penal e que somente os grandes contrafatores estariam sujeitos às penas do referido artigo da Lei Penal, pois estes sim colocariam em risco os direitos autorais.

Na decisão, o Ministro negou o HC depois de transcrever o teor do acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo o qual “mostra-se inadmissível a tese de que a conduta do paciente é socialmente adequada, pois o fato de que parte da população adquire produtos não tem o condão de impedir a incidência, diante da conduta praticada”.

Para Lewandowski, a análise que se faz possível nessa fase processual – análise do pedido de liminar – não permite identificar as excepcionais hipóteses que autorizariam a concessão do pleito.

Processo relacionado: HC 98898

Fonte: Supremo Tribunal Federal

Na realidade não tenho muito mais a dizer.

Mas sim a mostrar.

Alguém por aí ainda lembra daquela clássica (antológica?) cena em que os ditos intocáveis vão dar uma batida em um depósito de bebidas? Ninguém sabia onde ficava. Ninguém? Todo mundo sabia. Bastava atravessar a rua. Bastava querer. A falsa moral a que me refiro – relacionada à notícia – é, literalmente, destruir a vida de um pobre coitado em função de sua “conduta socialmente inadequada”.

Ora, façam-me o favor!

Ou que regulamentem ou que prendam todo mundo.

Mas que não me venham com essa historinha pra boi dormir!

É simplesmente ridículo.

E chega.

Já falei demais.

Seguem algumas cenas do filme para os desmemoriados de plantão…

Coerência

É bom ver um pouco de coerência numa decisão de nossos magistrados ante a verdadeira indústria de dano moral que se instituiu nesse país. O grifo é meu.

A 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça confirmou sentença da Comarca de Lages e negou o pedido de indenização por danos morais formulado por Angelita Alves da Silva contra Adria Alimentos do Brasil Ltda, após ter encontrado um produto estranho em pacote de biscoito fabricado pela empresa. Angelita conta que em abril de 2007, ao servir biscoitos da marca Isabela a seus convidados durante sua festa de aniversário, achou no pacote um pedaço de “pano velho e podre” e fragmentos do que achou ser uma aranha. Na ocasião, chegou a verificar o prazo de validade do produto, mas observou que ele não havia expirado. A perícia constatou que não se tratou de uma forja – ou seja, o objeto não fora colocado após abertura do pacote – e que os supostos fragmentos do aracnídeo eram, na verdade, pedaços de barbante, oriundos de saca de farinha de trigo.

O pedido de indenização por dano moral, contudo, pareceu demasiado na avaliação do magistrado. “Verifica-se a existência de um exagero despropositado; o fato, por si só, não é capaz de atingir-lhe a dignidade pessoal ou de causar-lhe injúria moral ou sofrimento, embora se constitua em inegável dissabor e indignação”, afirmou o relator da matéria, Desembargador Mazoni Ferreira, ao explicar a função da reparação moral. Na decisão, o Magistrado levou em consideração o fato de Angelita estar entre amigos, o que afastaria a possibilidade de ter suportado alguma situação vergonhosa.

“A situação poderia ser resolvida pela reposição do prejuízo material com relação ao valor pago pelo produto, ou ainda pela simples troca com um pedido de desculpas. É assim que agem os cidadãos conscientes de que os pequenos dissabores do dia-a-dia se resolvem melhor pela via amigável”, finalizou. A decisão foi unânime.

Processo: (AC) 2008.025113-7

Juridiquices, bloguices e outros bytes mais

Os Waltons. Após um bom tempo em silêncio, eis que temos de volta ao mundo virtual o copoanheiro Bicarato – coincidência ou não, no mesmo dia em que o Bicarato resolveu re-re-re-re-tomar suas atividades. Só senti falta do ainda sumido Bicarato

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Uma no cravo, Em Santa Catarina (processo nº 2003.005260-7) a Segunda Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça proibiu a quebra do sigilo em sistemas de informática de um indivíduo. Essa quebra foi solicitada para investigação numa ação indenizatória. Só que a Constituição assegura a todo cidadão não apenas o direito à privacidade e à intimidade, como também o sigilo de correspondência – o que alcança qualquer forma de comunicação, ainda que virtual. Ademais, tal tipo de produção de provas somente seria possível numa investigação criminal ou instrução processual penal. Segundo o juiz: “Com efeito, se se liberar as entranhas do computador para produzir prova civil, a intimidade e a privacidade das pessoas estará liquidada. Como exercício especulativo, imagine-se como isso seria utilizado no delicado campo do Direito de Família”.

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outra na ferradura, O Tribunal Superior do Trabalho (processo nº 1640/2003-051-01-40.0 – AIRR) manteve a reforma de uma sentença em segunda instância que considerou válidas provas retiradas do conteúdo de um CD-ROM (gravações de diálogos) e e-mail corporativo, em processo envolvendo justa causa por acusação de assédio sexual. Embora o assédio não tenha sido caracterizado as provas foram aceitas para confirmar a má conduta capaz de justificar a demissão. Em sua defesa o ex-funcionário alegou que, em relação ao conteúdo do correio eletrônico, houve invasão de privacidade e intimidade, e destacou que as mensagens com conteúdo erótico reproduzidas no processo não foram enviadas, apenas recebidas por ele. Não adiantou. O entendimento consolidado no TST é no sentido de que o e-mail corporativo é considerado, juridicamente, ferramenta de trabalho fornecida pelo empregador ao empregado, o qual deve usá-lo de maneira adequada, visando à eficiência no desempenho dos serviços.

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e mais uma no casco. No Superior Tribunal de Justiça (processo nº 848362 – AG) tramitou uma ação de indenização por danos morais em que um sujeito foi condenado por divulgar informações falsas de programas eróticos com o e-mail e telefone da ex-namorada. Em uma ação cautelar de exibição de documentos movida contra o provedor da mensagem a mulher obteve a informação de que o correio eletrônico pelo qual foram enviados os e-mails pertencia ao ex-namorado dela. A partir daí requereu a condenação ao pagamento de indenização pelos danos morais sofridos.

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Professor. Mino Carta vem dando uma saborosa aula de ideologia, história e política e afins em seu blog nos últimos dias. Tão interessante quanto seus posts só mesmo os comentários que deles resultam. Confiram lá no Blog do Mino.

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Desburrocratizando. Normalmente numa ação exige-se que as cópias juntadas referentes a decisões de outros tribunais estejam autenticadas. Contudo a Terceira Câmara do Superior Tribunal de Justiça (relatora Ministra Nancy Andrighi) admitiu que cópias de documentos retirados da Internet (no caso, do site do TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), ainda que sem a certificação digital, podem ser aceitas em processos judiciais. Até porque, na prática, o Código de Processo Civil fala em cópias, mas não faz qualquer especificação sobre como devem ser providenciadas tais cópias ou outros requisitos.

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Big Brother is watching you. O Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região (processo nº 00728-2008-036-03-00-0 – RO) manteve decisão de primeira instância que deferiu horas extras a motorista que utilizava veículo rastreado por satélite. Ainda que as Convenções Coletivas de Trabalho da categoria estabeleçam a inexistência de horas extras no transporte de cargas, restou claro que o reclamante, ainda que na estrada, estava sujeito ao controle de horários. Segundo o Juiz relator: “De fato, a lógica aponta nesse sentido, pois o empregador, ao controlar o trajeto do veículo, via satélite, tem informações precisas acerca do início, intervalos e término da jornada de trabalho, assim como onde se inicia a viagem, a localização do autor durante o trajeto, a rota escolhida e os horários e locais de estacionamento e repouso, podendo até mesmo bloquear o funcionamento do automóvel.”

Larápia consciência – parte II

Recentemente falei do ladrão que, ao furtar um veículo, descobriu uma criança dormindo no banco de trás (podem ler aqui). Mas ao ler o Migalhas de hoje (nº 2003) encontrei um interessante artigo do advogado Eudes Quintino com o seguinte questionamento: na qualidade de Promotor, você denunciaria? Tire suas conclusões com a leitura a seguir – que passa inclusive pelos centenários Guimarães Rosa e Machado de Assis:

Você denunciaria?

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Advogado, Reitor da UNORP

A imprensa noticiou que um puxador, com maestria profissional, subtraiu um veículo e, para sua surpresa, nada agradável em razão das dificuldades apresentadas, encontrou na rabeira uma criança que dormia, por mais paradoxal que seja, o sono dos justos. Imediatamente parou o veículo. Dirigiu-se a um telefone e contatou a autoridade policial. Apresentou-se como furtador e prontificou-se a abandonar o veículo em determinado local para que a criança fosse resgatada. Na realidade, não seria um resgate, pois não houve seqüestro. Solicitou à autoridade para que advertisse os pais da criança, chamando-os de irresponsáveis e criminosos. Eles sim que deveriam ser responsabilizados criminalmente.

Apesar de hilariante, o fato vem revestido de um senso ético marcante. A intenção do furtador era somente a de subtrair o veículo, encaminhá-lo para o responsável pela encomenda, ganhar seu dinheiro e seguir a vida. A presença da criança no banco traseiro não estava na sua linha de desígnio, portanto, excluída de sua intenção delituosa. Não pretendia seqüestrar, já que sua especialidade era a subtração, pura e simples, sem violência a qualquer pessoa. Diante da ponderação subjetiva, no exato encontro do si para o sigo mesmo, conforme Guimarães Rosa, resolveu interromper a prática do delito, não ultrapassando os limites da tentativa. Devolveu-o com a criança em seu interior. E mais: apontou os verdadeiros criminosos, como sendo os pais da criança, que a abandonaram no interior do veículo, enquanto freqüentavam um bar tomando aperitivo. Esta omissão, segundo ele, poderia provocar a morte da criança, como já aconteceu em outros casos idênticos. A subtração frustrada até que foi providencial.

Quando se vê uma atitude responsável e consciente, mesmo que seja exteriorizada por quem vive à margem da lei, renasce a esperança no homem. A vida humana ocupa o núcleo real de importância, abrindo espaço para que a consciência moral e ética fale mais alto. De repente, no desenrolar de uma ação ilícita, o infrator é tomado de sentimentos de generosidade e altruísmo, que proporcionam uma conduta totalmente contrária à vontade inicial. O que seguia pela contramão de direção, passa, pela mesma via, a conduzir-se corretamente, de forma exemplar, disciplinando o vai-e-vem irresponsável das pessoas. Faz lembrar a observação feita por José Saramago, no livro Ensaio Sobre a Cegueira, no sentido de que a ocasião, apesar de propícia, nem sempre faz o ladrão.

Amigos, hoje perdi o dia, como Tito, teria dito o furtador. Mas, no seu íntimo, agora revestido do apanágio da nobreza, tinha a consciência de ter praticado uma conduta responsável. Como Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao achar uma moeda no chão, solicitou o concurso policial para que ela fosse ter às mãos de seu proprietário. A sensação foi de um “ato bonito e exprimia um justo crepúsculo, um sentimento de alma delicada”. Não a medindo pela extensão do dano maior que pudesse provocar, como aqueles em que, em situação idêntica, arrastaram impiedosamente um menino, provocando-lhe a brutal morte. Nem mesmo para se ver impune da subtração tentada. Mas sim porque atendeu o apelo que ainda iluminava a sua tênue zona de penumbra, do crivo de justiça feito rapidamente no âmbito de seus estreitos preceitos e, imbuído de valores à moda antiga, desistiu de sua conduta ilícita. Não antes de apontar para a sociedade os verdadeiros culpados. Em razão do furto de um pão para sustentar a família, Jean Valjean, personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo, cumpriu dezenove anos de prisão. Depois, em liberdade, por voltar a acreditar nas pessoas, tornou-se um bem sucedido empresário, marcado pela sua bondade e generosidade.

A pergunta que se levanta: você, como promotor, denunciaria?

Há uma lei ditada por Machado de Assis na obra já referida, denominada “Lei da Equivalência das Janelas”. É simples, objetiva e adequada para toda situação: para compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuadamente a consciência. Sem reprimenda, sem coação. Basta a vontade de querer melhorar, de procurar se ajustar da melhor forma na comunidade em que vive. A lei do Estado é rude, coativa, arbitrária, quase sempre sem o retorno desejado da tão falada ressocialização. Impõe temor, mas não incute o comprometimento social. Tanto é que a lei é aceitável somente num estado profundamente imperfeito de sociedade humana. Daí, com toda razão, Dennis Lloyd afirmar na sua obra “Idéia de Lei” que “a lei é algo ruim, que só pode ser tolerado como expediente temporário, enquanto o homem permanece relutante ou incapaz de realizar uma sociedade justa”. Ou, ainda como utopicamente ambicionou Montesquieu, no “Espírito das Leis”, na realização espontânea do Direito. O pai que deve alimentos ao filho, Poe exemplo, sponte própria, sem a medida coativa judicial, cumpre sua obrigação.

Inserindo o fato relatado no Código Penal, que irá examiná-lo com a frieza que lhe é peculiar, com o olhar vetusto, corroído pelo tempo, verdadeiro corpo sem alma, mirando o infrator à distância, com receio de captar algum lampejo de sua sensibilidade, fatalmente fará a adequação típica da conduta e elegerá o delito de furto em sua forma tentada como o responsável para buscar a reprimenda suficiente para censurar o ilícito praticado.

O membro do Ministério Público que ainda desenvolve os passos iniciais da carreira, dedicado e extremado conhecedor das regras jurídicas penais, certamente irá denunciá-lo. Em sua mente fica a voz da consciência, vulgarmente chamada de opinio delicti, que o adverte a todo instante a respeito do princípio da legalidade: nec delictamaneant impunita. Tudo bem, reflete o novato promotor debruçando-se sobre o inquérito policial, que, de ofício, foi instaurado pela autoridade encarregada da persecução. O indiciado desistiu voluntariamente de sua conduta ilícita, arrependeu-se eficazmente, restituiu o veículo ao proprietário e entregou a criança aos pais, porém, pela regra do ordenamento penal, não responderá pelo crime de furto consumado, mas sim tentado. Encontra ainda amparo nos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade, que martirizam sua mente. Feito o ato instaurador da ação penal, sua consciência jurídica descansa no limbo reservado aos que se encontram no estágio probatório, aguardando a aprovação ou reprovação de seus tutores correcionais. Verdadeiro servidor e cumpridor da lei.

Já o promotor experiente, calejado pelos anos, pelos amontoados de processos e crimes com as páginas encerradas, antevê uma situação clara e definida de proposta de arquivamento. Nem se dá ao trabalho de terminar a leitura do procedimento policial. Remete imediatamente seu pensamento para Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievsky, relembrando o calvário que conduz ao arrependimento, a consciência que fica corroendo a alma do infrator, o castigo, não o da lei, mas o do autoflagelo, do cilício que açoita o senso moral, denunciando a ilicitude. A conclusão é que o homem, pela sua natureza, carrega bons e maus impulsos, que constantemente se digladiam, mas por maior que seja a dominação do mau, há sempre uma centelha que renova as esperanças na supremacia do bem. A conduta do larápio, vista sob este prisma, conclui o experiente representante do Parquet, nada mais é do que uma causa inonimada de exclusão de punibilidade. Se o próprio agente, após perambular pelas fases do iter criminis, decide sustar a execução do ilícito e desiste de ingressar na prazerosa área do exaurimento, é interessante para o Estado recompensá-lo com a impunidade. Fran Liszt falava da existência de uma “ponte de ouro”, quer dizer, a peregrinação criminosa desenvolveu a contento para o agente, sendo bem sucedida, porém, num repente, pretende desfazer o ato e é nesse momento que surge a salvadora ponte, permitindo que retroceda e desfaça sua conduta ilícita, culminando com o regressus ab initio e a restitutio in integrum. Junte-se a este argumento a ampla e abrangente política criminal, que fundamentado se encontra a proposta de arquivamento.

As duas posições trazem conseqüências processuais diferenciadas. O arquivamento proporcionará ao infrator uma meditação a respeito de sua repudiada conduta. Analisará que inicialmente contrariou as normas de convivência harmônica, mas em razão de sua própria definição, a posteriori, mais incisiva do que a originária que trilhava pela senda do crime, reverteu todo o quadro e reassumiu postura do homem reto. Quem sabe, até atingiu a decisão de escolher a própria vida, segundo a Idade da Razão, de Sartre. Em contrapartida, receberá do Estado um voto de confiança que ficará incrustado no seu recôndito moral, sua única reserva de auto-prestígio. Se, por outro lado, segundo a linha inflexível do legislador penal, preenchidas as condições, o agente vai responder pelo seu ilícito perante o Juizado Especial Criminal, por se tratar de crime de pequeno potencial lesivo, que imporá a ele uma pena restritiva de direito. Realizada a Justiça da lei, com a manutenção de seu império, mas não aquela proveniente de uma decisão aprofundada a respeito dos mistérios que envolvem o ser humano.

Para a sociedade, única e exclusiva destinatária das decisões judiciais, fica o questionamento a respeito da validade da lei que interfere numa situação já definida pelo próprio agente infrator, com a sua mea culpa, que recebeu o placet da comunidade.

Muitos argumentos poderiam ser perfilados, como as histórias infindáveis narradas por Scheherazade. Cada dia um fato novo para perpetuar a história do homem. Mas, o importante é provocar a meditação a respeito desta totalmente desconhecida natureza humana, que apresenta reações inesperadas, que a todo instante provoca surpresas, muitas vezes agradáveis e obriga o homem a fazer a análise da aprovação ou reprovação jurídica.

Você denunciaria o gatuno ético? Fica a indagação.

Recorrendo do recurso recorrido

De um extenso artigo do George, lá no blog Direitos Fundamentais, foi possível colher uma perolazinha no mínimo u-ótima acerca do juridiquês que nos cerca.

É que ele cita que o jogador Edmundo foi condenado a cumprir uma pena de quatro anos e meio de detenção – pela morte de três pessoas em um acidente de trânsito – mas ainda não cumpriu a punição em função do seguinte (respirem fundo e vamos lá):

ainda está pendente de julgamento no STJ o “agravo regimental contra decisão monocrática do Ministro relator, que rejeitou embargos declaratórios contra decisão monocrática, que indeferiu liminarmente Embargos de Divergência opostos a acórdão da Turma do STJ, que rejeitou embargos declaratórios contra acórdão da Turma, que negou provimento a Recurso Especial interposto contra acórdão da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que deu parcial provimento à apelação contra sentença proferida pelo Juízo de Direito da 17ª Vara Criminal da Comarca da Capital, que condenou o jogador, como já dito”

HEIN???

De novo, mas dessa vez com calma e beeeem passo a passo:

– foi proferida sentença condenatória pelo Juizo de Direito da 17ª Vara Criminal;

– houve recurso de apelação contra a sentença;

– essa apelação foi parcialmente procedente (acórdão da 6º Câmara do TJ);

– contra esse acórdão foi interposto recurso especial;

– foi negado provimento a esse recurso através de novo acórdão (por Turma do STJ);

– contra esse ato foram interpostos embargos declaratórios;

– mais um acórdão de Turma do STJ que rejeitou os embargos;

– houve então embargos de divergência contra esse acórdão;

– o STJ indeferiu liminarmente esses embargos;

– foram interpostos embargos declaratórios contra essa decisão monocrática;

– o Ministro Relator rejeitou esses novos embargos;

– e, por último, foi interposto agravo regimental contra essa decisão do Ministro.

E é esse agravo regimental que ainda está pendente de julgamento…

UFA!

Nas palavras do George: “Simplesmente hilário. Acho que todo professor da disciplina ‘Recursos’ deveria mostrar esse caso para os alunos aprenderem duas coisas: primeiro, o nome de todos os recursos; segundo, a total irracionalidade do nosso sistema recursal, que permite que absurdos assim ocorram.”