Trindade – III

– E aí, moçada?

– E aí?

A traseira do caminhão tinha apenas uma roda sobressalente deitada num canto, algumas lonas dobradas e cordas do outro, algumas vassouras, tudo mais ou menos perto da cabine do motorista, e sobre esse monturo de coisas, meia dúzia de gente.

Rapazes iguais à nós, com suas mochilas e sacolas, também na estrada também indo pra algum canto, também durangos. Começamos a trocar uma ideia – eles já saíram junto com o caminhão, também com destino ao litoral, o motorista era vizinho deles e topou levar aquela turminha pra praia.

– Legal! Vão pra onde?

– Ah, Caraguá mesmo. Lá na Martim de Sá.

Naquela época as praias do Centro eram muito feias e largadas, de modo que TODO MUNDO ia pra Martim de Sá. Pensando bem, as praias do Centro não são mais assim, e todo mundo CONTINUA indo pra Martim de Sá… Vai saber…

– E vocês?

– Estamos indo pra Trin…

– PULIÇA!!! PRO CHÃO!!!

Nos distraímos com a conversa e acabamos ficando desatentos…

E não, não é o que vocês estão pensando.

Não fomos cercados, alvejados ou vítimas de algum comando.

Simplesmente esquecemos do Posto de Guarda. Na realidade são dois (ou, na época, eram apenas esses dois): um logo no começo da Tamoios, saindo da zona urbana de São José, e outro bem no alto da serra. Vocês devem se lembrar que hoje em dia é proibido viajar (ou mesmo ser transportado) na carroceria de um caminhão aberto, certo? Então. Naquela época também era. E iria ser encrenca da grossa se o caminhão fosse parado por isso – e o que se viu foi um tal da rapaziada se atirar de peito no chão (a carroceria do caminhão era de madeira, com as laterais baixas e vazadas) e tentar se esconder no meio das lonas e cordas e outros quetais.

Dei uma olhada com o rabo dos olhos e vi os guardas lá dentro de sua cabine/posto/guarita/sei-lá-o-quê, olhando com desinteresse para o trânsito. Quase deu vontade de levantar e dar um tchauzinho só pra ver o que rolava – mas algo me disse que eu seria extremamente estúpido se fizesse isso. Talvez tenha sido apenas bom senso. Talvez tenha sido o Vilaça segurando minha garganta enquanto eu esperneava. Enfim, acho que nunca terei certeza…

Passado o “perigo”, logo após a última longa curva depois do Posto de Guarda, levantamo-nos descontraídos enquanto que o motorista passava um sabão na gente, pra que a gente prestasse atenção e, na próxima, ficasse esperto ANTES de chegar na fiscalização. Bem, acho que foi isso que ele disse, pois com o barulho do motor, o sacolejar da carroceria, um monte de adolescentes conversando e rindo, o vento nos ouvidos e o fato de ele ser um tanto quanto fanho – nada disso ajudou para dar uma melhor compreensão de suas palavras. Mas o recado foi entendido.

Aliás, por falar em vento…

Taí uma coisa que sempre gostei: vento. Quer me ver num mau humor desgraçado? Me encontre num dia quente, mormacento e de ar parado. E me aguente. Agora, quer me ver sorrir sozinho? Me dê um dia com vento. Sou daqueles que, andando na rua, louco entre o sãos, abre os braços para receber melhor cada vento, cada brisa, cada sopro que passa por mim.

Desde sempre gosto disso. Desde a mais tenra idade. Quando meu pai tinha um Jipe e íamos para a roça, o vento era presente em todos os cantos possíveis e imagináveis do veículo; mais tarde, com uma Variant (impecável até os dias de hoje), eu sempre escolhia sentar no banco atrás dele, pois ele preferia andar com o vidro aberto, se refrescando com o vento; foi no vento que, em casa, decolei de meu velocípede em alta velocidade e me esborrachei no chão, perdendo os sentidos; foi correndo contra o vento que perdi a noção de direção e, literalmente, bati de cara num muro de chapisco grosso (o que rendeu minha primeira grande cicatriz); foi numa noite de ventania, no escuro, brincando de pega-pega que, de novo literalmente, dei de cara com um varal de arame farpado (o que rendeu minha segunda grande cicatriz); o carrinho de rolimã me ajudava a desbravar o vento tanto quanto, anos depois, eu o faria com minha bicicleta…

E ali, naquele momento, na estrada, num dia que começava a ficar mais fresco graças às nuvens que resolveram tapar o sol, de pé em cima da carroceria de um caminhão, vento é o que não faltava!

Seguimos nosso rumo proseando um bocado, lembramo-nos de tomar todo o cuidado ao passar no segundo Posto de Guarda (“Pô, Vilaça! Não vou levantar, não! Fica na sua! E solta minha garganta…”), até que começou a descida da serra…

Quem já passou por ali, sabe o quão paradisíaca é aquela paisagem. Agora imaginem – apenas fechem os olhos e imaginem – oito garotos aloprados “surfando” serra abaixo, curva após curva, rolando pela carroceria às vezes, levantando-se em seguida, rindo sempre, vento nos rostos, frescor nas almas… Não tem como descrever. Simplesmente não tem como.

E, já na altura do mar, ainda no caminhão, aquele vento de maresia nos envolveu totalmente, já salgando nossos paladares sem sequer termos entrado na água… Foi ali que nos despedimos do grupelho, que ficou por Caraguá mesmo.

– E aí, vocês acabaram não dizendo pra onde vão…

– Trindade, cara.

– “Deus me Livre”!

– Porra, por quê? Ouvimos dizer que lá é bem legal…

– Não, não. Vocês não entenderam. Vocês não tem ideia do que estou falando, né? “Deus me Livre”?

– Carái! Dá pra ser claro?

Sem chance. Aquilo não era táxi e, com o pessoal que ia descer já no chão, o motorista do caminhão simplesmente arrancou e saiu, aliás, quase arrancando eu e o Vilaça de cima da carroceria também. O rapaz ainda gritou alguma coisa – que, lógico, não conseguimos entender – e saiu rindo falando sei lá o quê pro resto da turminha. Paciência.

O caminhão estava indo rumo a Paraty (carona melhor jamais teríamos conseguido) e tudo ia bem…

Bom. Quase. Aquelas nuvens lá no céu, outrora hospitaleiras em encobrir o sol, agora começavam a ficar cada vez mais densas e cada vez mais com cara de nuvens de chuva. Mas, naquela velocidade, certamente chegaríamos ao nosso destino antes que começasse a chover. O negócio era curtir aquela paisagem de mar, totalmente à nossa disposição durante quase todo o trajeto!

E, nessa toada, quando menos esperávamos, o motorista parou. Não vimos nenhuma placa. Nada. Mato, mato, mato e uma estrada de terra à direita.

– Chegamos!

Descemos do caminhão, já com as mochilas nas costas, meio que incrédulos…

– Aqui?

– É isso aí. Agora é só seguir nessa estradinha que já, já, vocês chegam lá.

– Tem certeza, cara?

– Tô te falando…

– Tãotáintão… Valeu, chefia! Boa viagem e vai com Deus!

– ‘Brigado! Boa sorte procês também!

Cumassim “boa sorte”? Olhamos um para o outro enquanto o caminhão seguia seu caminho, sumindo na estrada.

– É, cara, o negócio agora é andar. Porque aqui nessa estradinha eu du-vi-de-o-dó que a gente vá conseguir alguma carona nesse século…

O Vilaça nem se dignou a responder. Atravessamos a pista, olhamos para aquele começo de estrada de terra que seguia morro acima e demos o primeiro passo da nossa caminhada.

Que foi exatamente no mesmo instante em que a primeira gota de chuva caiu na minha testa.

( Continua. Morro acima e chuva adentro. )

 
 
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Trindade – II

De casa, com nossas tralhas, praticamente bastava atravessar a rua para o ponto de ônibus, quase em frente. “Ah, então vocês foram de ônibus?” – Não! Prestenção! Nós fomos para o ponto de ônibus, o melhor lugar para se batalhar uma carona.

Sim, carona. Tenho certeza que vocês já devem ter visto isso em filmes. Daqueles antigos. Na boa e velha década de oitenta ainda era possível viajar meramente de carona…

Uma vez que Trindade ficava um pouco antes de Paraty (era a única referência que tínhamos para a cidade), então teríamos que conseguir alguma carona lá na Tamoios, a estrada que leva ao litoral. Mas, antes mesmo, precisaríamos chegar até lá – coisa de, sei lá, uns dez quilômetros de onde estávamos, em Santana.

Nossa sorte já começou boa. É que, pertinho da casa de meu pai fica o Senai, escola que arregimenta estudantes vindos de todos os cantos da cidade. Por ser um período de férias, não teríamos que disputar carona com nenhum dos alunos de lá (que ficavam às pencas, também tentando uma carona), e, não demorou muito, um caboclo que passava num Golzinho simpatizou com a cara daqueles dois palermas enmochilados e resolveu nosso problema.

– Vai pra onde, chefia? – é, desde aquela época eu já tinha esse costume de tratar todo mundo por “chefia”…

– Vou aqui pro Centro. Tá bom pra vocês?

– Tá ótimo!

Regra número um de um bom caronista: se alguém vai, ainda que minimamente, pro mesmo lado que você pretende ir, aceite. É uma pernada a menos. Regra número dois: seja sempre cordial. Sempre. Converse, demonstre-se interessado, puxe assunto, seja educado. Normalmente quem dá carona costuma ser bom de proseio e está mais interessado em você, para onde pretende ir e como pretende fazer para chegar lá. E não se esqueça de sorrir!

Mas, hoje em dia, creio que essas regras já não valem tanto. Ou melhor, nada. Ao menos aqui nesta nossa terrinha, ou, no mínimo, na região. Já não se dá mais carona, já não se pede mais carona… Todos transitam sozinhos, encastelados dentro de seus próprios veículos, com os vidros fechados, no ar condicionado, blindados à exposição de outras pessoas, transeuntes, pedestres, pedintes, artistas, vendedores e o que mais quer que o mundo lá fora possa oferecer para ofender sua pseudo-segurança. Permitir que um estranho entre no seu carro? Que viole sua intimidade? Jamais! Tá me achando com cara de táxi? Ou de Uber? Quer ir pra algum lugar, que pegue um ônibus! Ou que compre um carro você mesmo, então!

Não… A “carona” é de uma outra era, uma época romântica, quando as pessoas se preocupavam com o próximo além de si mesmas e ainda olhavam nos olhos umas das outras – em vez de, como hoje, passarem ao léu de todos, absortas cada qual no seu mundo virtual de redes sociais. Acho que, na prática, o nome correto deveria ser “redes antissociais”…

– Aqui já tá bom, chefia!

“Apeamos” no Centro, próximos da Rodoviária Velha. É, dali não teria como, o negócio era caminhar, mesmo. O melhor lugar para batalhar uma nova carona seria lá no comecinho da Tamoios, no posto Caminho das Praias (que hoje já nem mais existe). Com o sol a pino e mochilas nas costas, atravessamos todo o centro velho da cidade, seguimos pela Paraibuna e, coisa de uma horinha depois, chegamos no nosso primeiro destino.

– Carái! Essa deu pra cansar, hein?

– Nah! É só porque esse solzão tá forte. Eu é que tô ferrado: se dali do Centro até aqui já tô vermelho assim, imagine depois de uns dias na praia!

– Hah! Vai ficar igual o homem-cobra: soltando a pele!

– Filmaço, né?

– Filmaço.

– Pelo menos aquela caroninha já ajudou. Imagine a gente, assim, carregado, de Santana ao Centro, a pezão na “subida da Rui Barbosa”?

– Putz! A gente tava ferrado! Não aguentava chegar até aqui não.

– Nem eu.

Essa “subida” nem era tanta assim. Mas fugíamos como o diabo da cruz toda vez que tivéssemos que enfrentá-la. Era preferível ficar mais de uma hora tentando uma carona que encarar aquela ladeira! Se tivéssemos a mínima ideia do que nos aguardava…

Enfim, carona de estrada já era um negócio mais complicado, pois normalmente quem ia viajar para o litoral já ia de mala, cuia, família, cachorro, gato, galinha e o escambau. Naqueles tempos o pessoal alugava uma “casa de temporada”, que normalmente só tinha o básico do básico da mobília, e tinham que levar todo o resto: panelas, pratos, mantimentos, lençóis, até mesmo a tevê da sala às vezes ia no porta-malas, junto com o resto das tralhas. E ói que estou falando daquelas tevês enormes, de tubo, hein… Espaço para mais dois caboclos e suas mochilas? Difícil, muito difícil.

Foram horas ali no posto, na beira da estrada. Mas éramos teimosos e determinados. Alguém ainda iria parar. Alguém TINHA que parar… Até porque o tempo já estava começando a fechar, anunciando uma daquelas chuvas de verão se avizinhando. E carona na chuva é algo que beira o impossível! Foi quando um caminhão deu uma guinada, quase em cima da gente e parou, uns trinta metros adiante. O Vilaça deu uma corrida pra conversar com o motorista, enquanto eu fiquei no mesmo lugar, um tanto quanto cético. É que uma das “diversões” do pessoal das estradas era justamente parar o carro lá adiante e quando os pretensos caronistas iam correndo para alcançá-los, faltando alguns metros, eles aceleravam e iam embora dando risada. E a cabine do caminhão estava lotada – eu vi! Estava mais que na cara que era mais um daqueles tiradores de sarro.

Mas não saíram. Apesar de já estarem até atrapalhando o trânsito ali naquela curva de estrada, ficaram parados e trocaram uma rápida ideia com o Vilaça. Fiquei olhando, de orelha em pé…

– Bora!

– Cumassim?

Ligaram o motor e já foram dando seta ao mesmo tempo que o Vilaça já foi subindo na traseira do caminhão.

– Só tem espaço aqui atrás! Bora, bora, bora!

Merda! Saí correndo ao mesmo tempo que o caminhão engatou a primeira. Estava a uns dois metros dele, arranquei a mochila e joguei pro Vilaça, que já estava lá em cima. O filha da puta do motorista engatou a segunda e eu ali correndo os cem metros rasos, a centímetros da carroceria. É, não ia ter jeito, seja o que Deus quiser.

Pulei.

Pulei e me agarrei na madeira do jeito que dava. O Vilaça se cagando de rir da minha situação, e eu ali, pendurado, tentando descobrir onde apoiar ao menos um dos pés – até que encontrei o para-choque e, com o coração na boca, consegui me apoiar firme e decentemente na traseira da porra do caminhão. Foi só o tempo de recuperar o fôlego para, antes mesmo de subir, descarregar nos ouvidos do Vilaça toda a farta coleção de palavrões e impropérios ao meu alcance…

Subi. Olhamos um pro outro. Ele ainda rindo. Menos, mas ainda. Não teve jeito: tivemos ambos um ataque de riso monumental, que deve ter durado de uns cinco a dez minutos! Daqueles de fazer doer a barriga, sabem?

Só então, recuperando o fôlego e tentando manter o equilíbrio, ainda com lágrimas nos olhos é que pudemos dar a devida atenção à situação em que nos encontrávamos.

Não estávamos sozinhos.

( Continua. Serra abaixo e morro acima, mas continua… )

 
 
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Trindade

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Então, crianças, ando meio que encantado com leituras alheias de alhures e acabei percebendo o quanto cada vez mais, menos tenho escrito por aqui neste nosso cantinho virtual. Poderia dizer que é excesso de trabalho (que é verdade), que nas horas vagas tenho me dedicado a outros hobbies (que é verdade), que passei os últimos meses num sufoco cerebral e/ou emocional que não me permitia parar para pensar em novos ou velhos causos (que é verdade), ou poderia simplesmente dizer que estava com uma inenarrável preguiça e sem vontade de escrever (que é mentira, mas tem mais a minha cara).

Então, apesar de muitas ideias para muitos causos de coisas recentes e atuais que vêm acontecendo, preferi me pautar um pouco no longínquo passado de minha infância e adolescência (como se isso interessasse pra alguém… – mas o blog é meu e gosto de encará-lo como minha própria “penseira virtual”) e dentre três ou quatro episódios, me lembrei de Trindade.

Ou seja, é isso mesmo: senta que lá vem história!

Antes de mais nada é preciso falar do Vilaça. Até hoje não consigo me lembrar de como foi que nos conhecemos. Talvez tenha sido da ETEP, quando de minha rápida passagem por lá – o que por si só já dá um outro causo… Só sei que em determinado momento e período de nossas adolescências ficamos amigos e vez ou outra saíamos juntos para uma ou outra desventura. Filho único, morava com os pais e era um ou alguns anos mais velho que eu. Hoje em dia, para todos nós, “adultos” que somos, uns anos a mais, outros a menos, não fazem diferença nenhuma; mas na adolescência – entendam – isso muda tudo! Os adolescentes de quatorze olhavam com respeito para os de quinze, já no segundo grau, que eram desprezados pelos de dezesseis, mais experientes, que por sua vez eram ignorados pelos de dezessete… E os de dezoito? Esses já eram praticamente adultos! Bem, vocês entenderam. Anos ou mesmo meses já faziam toda a diferença para determinar com que turma você andava.

E por isso mesmo essa nossa amizade, com ele um pouco mais velho, era diferente: não tínhamos muitos amigos em comum, pois a turma dele já era de “outro nível”… Como nunca dei a mínima trela pra esse negócio de turma, invariavelmente aprontávamos as nossas somente a dois mesmo.

Assim foi com Trindade.

Estava eu lá em casa, no bom e velho bairro de Santana, do alto dos meus quinze ou dezesseis anos (meados da década de oitenta, tá bom?), numa época em que para gente simplesmente não existia internet, blogs, tevê a cabo, séries, celulares, redes sociais – nenhum desses nossos vícios modernos que, invariavelmente, nos custam um pedaço da alma. Ou, ao menos, da sanidade. Estava lá, fazendo o que qualquer bom adolescente daquela época fazia durante as férias numa tarde abafada de verão: bestando.

Do nada, surge o caboclo no portão de casa.

– Adautô! Adaaauto! Ô, Adauto!

Fui até a sala, abri a portinhola da porta (isso mesmo: as casas de antigamente não tinham o tal do “olho mágico” – algumas até tinham, mas só as de gente mais abastada… – e, na sua falta, as portas tinham uma portinha, mais ou menos do tamanho de um caderno escolar, na altura dos olhos), e de lá mesmo gritei:

– Calma, ô desinfeliz! Já ouvi. Péraê…

Abri a porta e, como desde aquela época eu e minha pele moreno-hipoglós já tínhamos treta da brava com sol quente, dali mesmo do alpendre já falei…

– Desembucha.

– Vamos pra Trindade?

– Quando?

– Agora.

Essa era boa. Dois moleques durangos, assim, do nada, resolvem viajar. Cumassim? E dinheiro? E preparativos? E dinheiro? E locomoção? E dinheiro? E planejamento? E, sobretudo, dinheiro?

Bem, parem de pensar com essas suas cabeças adultas de século vinte e um. Estamos falando de um outro tempo, uma outra época, uma outra vida. Nada disso era necessário. Tá, talvez um tiquinho de dinheiro ajudasse um pouco – e normalmente era só esse pouco mesmo que nós tínhamos.

– Beleza! Me dá um tempinho…

Corri pra dentro de casa, peguei minha mochila de lona, coloquei umas mudas de roupas (que é como chamávamos cada um dos conjuntos de calça-meia-cueca-camisa para uso a cada um dos dias fora), uma ou duas blusas (caso esfriasse), o único calçado era o que já estava no pé mesmo, assaltei umas duas latas de feijoada pronta da despensa (melhor coisa pra não morrer de fome quando não se tem opção acampando), juntei a velha barraquinha canadense de dois lugares que um abilolado de um amigo de meu irmão, lá da USP, e que morou um tempo em casa, acabou deixando pra trás, fucei em todas as gavetas ajuntando todo o pouco de grana que tinha e pé na estrada!

Tenho certeza que entre uma coisa e outra deve ter havido um momento em que eu deva ter falado com minha mãe, talvez pedindo permissão, mais provavelmente comunicando que iria viajar. Mas esse detalhe simplesmente não existe mais na minha memória. Deve fazer parte dos bad blocks do meu cérebro, danificados ao longo dos anos por uma nada suave vida etílica…

( Continua, devagar como a Trindade daquela época,
na medida em que eu não ficar com pressa de contar logo essa história… )

Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?

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O que é um coelho branco? O que ele representa? Uma mensagem de esperança? Um sentimento de renovação? Uma firmeza de propósito? Promessas estranhas que ele mesmo significava sem saber que o fazia… Seja lá como for, quando passou, consultando seu relógio no bolso do colete, já estava atrasado. Aliás, como sempre, como tudo na vida de Alice.

E ao se meter num profundo buraco, eis que Alice, inconsequente, sem pestanejar também se atirou de corpo e alma atrás do coelho e de suas promessas não ditas.

E ao cair naquele buraco sem fim (mal sabendo que, na realidade, tudo na vida tem um fim), enquanto aguardava um fundo que não chegava, fez o que melhor sabia fazer: tagarelava de si para si, pois toda Alice – principalmente as escorpianas – é sonhadora e perguntadeira. E quando o fundo chegou, meio que sem avisar, meio trôpego até, lá ela encontrou um corredor, e do corredor encontrou um salão, e no salão encontrou uma chave de ouro que para sua decepção não abria baús, mas sim portas. Mas, diferente do que possam imaginar, essa chave abria todas as portas. Ora essa, e agora? Como decidir que rumo tomar, qual porta revelaria qual destino, qual futuro?

Ah, essa Alice imprudente! Quis porque quis beber da garrafa do desconhecido e se inebriou, mesmo sabendo que não haveria antídoto que lhe resolvesse! Mesmo com a garrafa quebrada, com lascas e cacos a cortar-lhe as mãos, os lábios, o juízo, a alma – ainda assim ansiava por dela sorver novamente. E seus efeitos mediatos e imediatos era fazer com que seu coração crescesse e diminuísse, que sua alma se expandisse e encolhesse, nunca sem dor, nunca sem mágoa, nunca sem alegria, nunca sem esperança.

E, em sua tagarelice, se ouvia a tecer recomendações para que não sofresse, pois “em geral dava conselhos muito bons para si mesma (embora nunca os seguisse)”

E da porta que escolheu, na jornada em que se meteu, no jardim que desbravava, encontrou abrigo sob um belo cogumelo, onde, ensimesmado, pairava lânguida e senhora de si, fumando seu narguilé, uma lagarta azul. E, não há de se saber como, mas ela sabia, aquela lagarta detinha todo o conhecimento do mundo que ela precisava. Todas as respostas a todas as perguntas estavam com ela, com essa lagarta-bruxa, que sabia ser sua amiga, que exalava mística sapiência. E que não estava só. E, num mundo que para qualquer outro seria de uma realidade atordoante, exceto para as Alices, que sabem que o impossível é apenas uma questão de ponto de vista, pela primeira vez esta Alice duvidou de seus sentidos!

Pois, incorpóreos, na fumaça do narguilé, Gandalf, Yoda e Dumbledore pairavam, numa muda conversa com a lagarta. Todos bruxos, todos poderosos, todos mortos como sua própria magia.

Desconcertada, assustada e, sabe-se lá o porquê, com uma certa raiva por não poder ter a atenção toda para si perante aqueles gigantescos vultos, sentindo-se pequena (e nem fôra por causa da beberagem), deu meia-volta e resolveu afastar-se dali. No meio àquela fumaça e vultos que se dissipavam, lágrimas no rosto, firmou seu passo.

“Volte!” chamou a Lagarta. “Tenho uma coisa importante para dizer!”

Isso parecia promissor, sem dúvida; Alice se virou e voltou.

“Controle-se”, disse a Lagarta.

“Isso é tudo?” quis saber Alice, engolindo a raiva o melhor que podia.

Mas o silêncio e o vazio foram suas únicas respostas.

E tudo que Alice queria era saber que caminho tomar. Sabia que caminho queria, era o que a levava de volta onde esteve, mas não aguentava mais seu coração e sua alma a esticar e encolher, como borracha prestes a arrebentar. E, às vezes, de fato se sentia arrebentada. E então, do nada, um sorriso lhe sorriu. E, por trás dele, um gato, o Gato de Cheshire. Perguntou-lhe:

“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”

“Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato.

“Não me importa muito para onde”, disse Alice.

“Então não importa que caminho tome”, disse o Gato.

“Contanto que eu chegue a algum lugar”, Alice acrescentou à guisa de explicação.

“Oh, isso você certamente vai conseguir”, afirmou o Gato, “desde que ande o bastante”.

Mas, apesar da pouca idade, Alice já carregava um cansaço de séculos… Ainda assim o Gato lhe apontou algumas direções, dizendo que tipo de gente encontraria por ali: todos loucos!

“Mas não quero me meter com gente louca”, Alice observou.

“Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca”.

“Como sabe que sou louca?” perguntou Alice.

“Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou não teria vindo parar aqui”.

E assim, tomou seu rumo. E o Chapeleiro foi quem encontrou. Talvez o mais louco entre os loucos daquelas paragens. E era justamente a última pessoa que precisava encontrar. E era justamente a primeira pessoa que desejava encontrar. Pois esse Chapeleiro alquímico, super-herói de meia pataca, tinha justamente o poder de destilar aquela estranha beberagem que estava arrasando com Alice. E seu silêncio é o que mais comprovava sua loucura, deixando Alice e sua tagarelice a mercê de um destino incerto. “Renda-se” disse ela. “Fale comigo, fale qualquer coisa, mas fale! A vida se nos passa e não há suficiente tempo!”

“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, disse o Chapeleiro, “falaria dele com mais respeito.”

E ela pensou naquela frase enigmática (mas talvez nem tanto), olhou para aqueles olhos juvenis, velhos como estrelas, para seu sorriso de criança que acumulava uma experiência de eras, e entendeu que não havia o que entender.

Louco, louco, louco.

E que também a estava deixando louca.

Melhor enfrentar o Jaguadarte.

Não sabia como, mas sabia. O Jaguadarte, imortal, com garras e bocarra, olhos de fogo e riso louco (por que afinal tudo tem que ser louco na vida de Alice?), ferível apenas pela Espada Vorpal – que ela não tinha – era o destino a que se prestava, era sua sina. Ali estaria o descanso que precisava: esquecer, esquecer e esquecer…

E finalmente ao encontrá-lo, sentado na esquina, sob a árvore Tamtam, ao fitar aqueles olhos, ao vislumbrar aquele sorriso, finalmente compreendeu: ele era ele. Um era o outro. Seu maior louco era também seu pior inimigo, eis que a levava às raias da loucura!

E lembrou-se das palavras da Duquesa: “Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria parecido a eles ser de outra maneira”.

Já havia começado pelo começo e prosseguido até chegar ao fim. Sem dúvida era hora de parar.

Melhor ser normal, que sofrer.

E (Neo entenderia) em busca de um espelho se deu sua nova jornada.

E em sua pressa de se ver livre, tentou repelir todos aqueles pensamentos que lhe atormentavam, como quem repele mosquitos numa noite de calor, e se viu deitada no sofá, a cabeça no colo de Dinah, sua menina, que afastava delicadamente alguns insetos que esvoaçavam por perto de seu rosto.

“Acorde, Alice querida!”, disse-lhe. “Mas que sono comprido você dormiu!”

“Ah, tive um sonho tão curioso!”

E, tentando recapitular, ficou ali sentada, os olhos fechados e quase acreditou estar de volta a seu momento no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade… E tudo que ela queria, agora que adulta, era conservar aquele mesmo coração simples e amoroso de sua infância, reencontrar todas as alegrias simples de criança, sempre pronta para se doar mas também exigente em receber.

“E como foi seu sonho, bem?”

E com a certeza de que esse sonho, de que aqueles momentos somente a ela pertenciam, limitou-se a responder:

“Não tenho a menor ideia…”