Kamikaze – O Vento Divino

Como um tufão protegeu o Japão da invasão dos mongóis, no século XIII

Alexandre Nuernberg
Adaptado do livro “Japão Antigo”,
da Biblioteca de História Universal Life.

Durante grande parte do século XIII o Japão mostrou-se relativamente próspero e tranquilo sob o forte domínio dos regentes Hojo, o que foi extraordinariamente benéfico para aqueles tempos. A população aumentou; as pequenas cidades cresceram; o comércio com a China foi incrementado, trazendo para o Japão riquezas e novas idéias. Igualmente, em meados do século, o código de honra dos samurai começara a evoluir de um simples conjunto de lealdades feudais para tornar-se um poderoso código de ética, que ainda exerce influência no Japão. E ainda, a maior parte dos implementos de guerra que iriam identificar os samurai durante séculos haviam tomado forma.

Embora o governo militar tivesse imposto ordem no interior do Japão, estavam começando a surgir dificuldades no além-mar, que iriam finalmente colocar a casta dos samurai diante da mais severa das provas. No começo do século XIII, os ferozes a agressivos mongóis irromperam da ásia Central numa campanha de conquistas que aterrorizou a maior parte dos países asiáticos, e por fim também boa parte da Europa Oriental. Os japoneses observavam com crescente apreensão os exércitos mongóis dominarem a China, sob a chefia de Gengis Khan e seus descendentes. Quando viram que também a Coréia caíra sob o poder dos conquistadores compreenderam que um ataque contra o Japão não poderia estar muito distante.

Em 1268, o Grão Khan dos mongóis, Kublai, neto de Gengis Khan, enviou um embaixador ao “Rei do Japão”, a quem se dirigiu como “o governante de um pequeno país”, e sugeriu um amistoso intercâmbio com a China, o que seria desejável. E observou, diplomaticamente, que a falta de tais relações poderia conduzir à guerra. O governo Hojo, de Kamakura, compreendeu que se tratava de uma velada ameaça, mas não se mostrou disposto a se render. Despachou de volta o embaixador mongol para a China, sem lhe dar qualquer resposta, e tratou da mesma maneira silenciosa e desafiadora os embaixadores que o sucederam. Esse desafio não poderia deixar de ser aceito e o regente Hojo percebeu que o primeiro ataque seria provavelmente desferido contra a ilha de Kyushu, base adequada para um assalto contra a ilha principal, Honshu. Ordenou que as defesas costeiras fossem melhor fortificadas, e advertiu aos guerreiros de Kyushu que permanecessem em estado de alerta. Entrementes, seus espiões ficaram observando a Coréia de perto, da qual mais provavelmente deveria partir uma força invasora.

Os mongóis eram cavaleiros da ásia Central, nada entendiam de navegação, mas obrigaram os coreanos a construir e equipar uma grande esquadra de cerca de 450 navios. Em novembro de 1274, a armada, transportando 15.000 soldados mongóis, fez-se ao mar no tempestuoso estreito da Coréia, e tomou as pequenas ilhas de Tsushima e Iki, nas quais as guarnições japonesas morreram até o último homem. Em seguida a esquadra prosseguiu rumo a Kyushu e aportou na baía de Hakosaki, na costa setentrional.

Os samurai do lugar acorreram mais que depressa ao combate. Sabiam que grandes exércitos, despachados pelo Bakufu, estavam em marcha para lhes dar apoio, mas não esperaram qualquer ajuda, lançando-se arrojadamente contra os temíveis mongóis, descritos pelos artistas japoneses contemporâneos como hirsutas criaturas sub-humanas. Os samurai tinham a superioridade de lutar em seu próprio terreno, mas sob todos os outros aspectos estavam em posição consideravelmente desvantajosa. Nunca haviam se defrontado com um exército inimigo, e raramente tinham empregado, em suas guerras civis, qualquer formação militar. Os guerreiros de alta hierarquia geralmente lutavam com adversários de igual nível, em formais combates singulares. Os mongóis, por outro lado, eram táticos consumados, manobrando habilmente em formações cerradas. Suas poderosas bestas atiravam dardos de maior alcance do que as flechas japonesas, e eles haviam trazido uma espécie de artilharia: catapultas que arremessavam projéteis em chamas e projéteis explosivos. Contra essa formidável máquina militar os japoneses puderam reunir apenas o valor de suas mortíferas e queridas espadas.

A batalha terminou de maneira indecisa. Ao cair da noite, os japoneses retiraram-se para trás de suas fortificações, e os marujos coreanos, que não estavam gostando do aspecto do tempo, persuadiram os mongóis a voltarem para bordo dos navios. Naquela noite desabou uma tempestade que afundou muitos dos navios e impeliu os remanescentes da esquadra de volta à Coréia.

Pouco depois dessa invasão malograda, Kublai Khan enviou outra embaixada, dessa vez ordenando ao “Rei do Japão” que se dirigisse a Pequim, a capital mongol, para lhe render vassalagem. Era um ultimato. A Corte Imperial, de Kyoto, ficou aterrorizada, mas o resoluto Bakufu, de Kamakura, rejeitou qualquer idéia de rendição e marcou sua decisão da maneira mais vigorosa que pôde conceber: cortou as cabeças dos embaixadores mongóis. Isso constitui o maior dos insultos, atirado ao rosto de um povo inimigo cujas conquistas então se estendiam do mar da China, através do continente asiático, até a Arábia, e cujos cavaleiros haviam assolado o Ocidente, chegando até à Hungria.

Os japoneses sabiam muito bem que viria outro ataque mongol, mais violento. Começaram a se preparar para ele, demonstrando uma unidade que o país jamais tivera. Para sustar as acometidas dos grupos de mongóis que desembarcassem, os senhores de terras de Kyushu receberam ordens de erguer uma muralha em torno da baía de Hakosaki, em cujas praias abrigadas era de se esperar que o inimigo novamente acometesse. Pequenos barcos de guerra, fáceis de manobrar, foram construídos para atacar os desajeitados navios-transportes dos mongóis, e foram enviadas tripulações que os manobrassem. Fez-se o recenseamento de todos os homens de Kyushu capazes de pegar em armas, para que pudessem ser convocados imediatamente a fim de repelir os invasores. Os belicosos barões de todo o Japão foram advertidos para que mantivessem suas tropas prontas para a luta, a qualquer momento. Empilharam-se armas, e a Corte de Kyoto abandonou seu luxo para poupar recursos destinados à defesa. Até mesmo os piratas que espalhavam o terror pelo mar Interior – alguns deles eram samurai cujas terras chegavam até as praias desse mar – juntaram-se entusiasticamente às forças do governo nas manobras navais.

A trégua durou cinco anos, enquanto os conquistadores mongóis estiveram ocupados em eliminar os resíduos de resistência que persistiam na China Meridional. Ao cabo desse período os espiões japoneses trouxeram a informação de que estavam sendo ultimados preparativos em larga escala. Novamente os coreanos tinham sido ordenados a construir navios, dessa vez um milhar deles. E um exército mongol de 50.000 homens marchava em direção ao litoral do estreito da Coréia. Simultaneamente, segundo se informava, uma esquadra ainda maior estava sendo reunida no sul da China, para embarcar um exército de 100.000 homens. Embora os espiões pudessem ter exagerado nos números, parece haver poucas dúvidas que aquela força invasora marítima seria a maior da história, até os tempos modernos.

No começo do verão de 1281 a esquadra mongol partiu da Coréia, dirigindo-se para Kyushu, como o fizera antes. As primeiras tropas desembarcaram no dia 23 de junho, em muitos pontos da costa setentrional, incluindo as praias muradas da baía de Hakosaki. A esquadra proveniente da China chegou a Kyushu pouco depois, e desembarcou a maior parte de seus soldados mais a oeste. Com típico desprezo pela morte, os japoneses atacaram imediatamente. Seus pequenos barcos realizaram grandes estragos, e as tripulações armadas abordaram os transportes inimigos, incendiando-os. A mais poderosa arma dos mongóis, o terror paralisante que haviam inspirado em grande parte do mundo no século XIII, não produziu o menor efeito sobre os japoneses.

Grandes exércitos afluíam ao campo de batalha, e os chefes samurai corriam cada qual mais que o outro, para ser o primeiro a chegar. Sacerdotes e monges dos mosteiros de todo o Japão ergueram suas preces pela vitória. O imperador dirigiu os serviços religiosos, dia e noite, em todos os santuários e templos shintoístas e budistas. Ele e o imperador afastado escreveram cartas do próprio punho, enviando-as aos túmulos de seus ancestrais e suplicando a ajuda do mundo dos espíritos. O Japão inteiro, que não estivesse empenhado na luta ou se preparando para isso, entregava-se à oração ou entoava cânticos mágicos para assegurar a vitória.

A luta durou mais de cinquenta dias. As descrições da mesma, que chegaram até nós, são de tal modo confusas que não se poderá dizer que lado levou a melhor. Depois de os japoneses terem resistido ao choque inicial, provavelmente obtiveram uma vantagem a longo prazo. Seus exércitos recebiam constantes reforços, e os invasores mongóis jamais penetraram em território distante da costa de Kyushu.

O fato de os mongóis terem ou não sido capazes de um triunfo definitivo constitui debate que jamais poderá ser resolvido, porque a natureza, ou os deuses, desempenharam decisivo papel na batalha. Em fins de agosto, como frequentemente acontece no Japão nessa época do ano, negras nuvens se acumularam bem alto no céu, ao sul, e um grande tufão rugiu sobre Kyushu. Durante dois dias o vento soprou com a violência de um furacão. Quando, finalmente, o céu clareou, as duas esquadras inimigas estavam destroçadas ou dispersadas, havendo se afogado a maior parte de seus tripulantes. Os invasores, desmoralizados, que erravam pelas praias, abandonados, foram rapidamente massacrados pelos japoneses.

O tufão foi o Kamikaze, o “vento divino”, cuja oportuna intervenção convenceu os japoneses, por muitos séculos, que sua terra era especialmente protegida pelos deuses. Quando outra invasão ameaçou o país, no século XX, os pilotos japoneses, que conduziam aviões carregados de explosivos e se lançaram sobre os canhões dos vasos de guerra norte-americanos, numa tentativa para salvar sua pátria, foram apropriadamente denominados Kamikaze, por causa do vento de longa fama.

Os bandeirantes e os entrantes no Belo Sertão

José Chiachiri Filho
Diretor do Arquivo Historico de Franca

A História da Franca começa, precisamente, nos finais de 1805 quando, por autorização de D. Mateus de Abreu Pereira (Bispo de São Paulo) dada em agosto, o Pe. Joaquim Martins Rodrigues, primeiro Vigário da nova Freguesia, benzeu o local onde seria erguida uma “decente Casa de Orações” e o seu respectivo cemitério. O local situava-se onde hoje se encontra a praça Nossa Senhora da Conceição (área da Fonte Luminosa). O terreno para a formação do patrimônio da Igreja foi doado pelos irmãos Antunes de Almeida, desmembrados de sua fazenda denominada Santa Bárbara.

Na realidade, o ato de D. Mateus de Abreu Pereira não resultava na criação de uma nova Freguesia. Ele, simplesmente, autorizava a transferência da sede da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bonsucesso do Descoberto do Rio Pardo para o arraial da Franca que estava sendo formado pelos entrantes das Minas Gerais. Antonio José da Franca e Horta, então Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo, teve um papel decisivo nessa transferência. Por isso mesmo, reconhecendo os seus esforços, o novo arraial e Freguesia já nascem com o seu nome.

Portanto, Franca surge com o século XIX e com ele desenvolve-se. Antes, eram o sertão, o “Bello Sertan do Caminho dos Goyazes”, os caiapós, os bandeirantes, os pousos. Depois vieram os “intrantes das Geraes”, os arraiais, as freguesias, a Vila Franca do Imperador. Tais serão os assuntos que iremos tratar neste artigo elaborado, exclusivamente, para o Diário da Franca.

1. O Caminho dos Goiases e os Pousos do Sertão.

O sertão era do indígena caiapó. Porém, antes do término do século XVII, Pires de Campos (o Pai Pira) e outros bandeirantes haviam passado pela região no afã de conhecê-la e, mais do que isto, descobrir as suas riquezas e apresar os seus habitantes.

Os esforços de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, não foram em vão. Ainda no primeiro quartel do século XVIII, as minas de ouro da Serra dos Martírios já estavam descobertas por seu filho o Anhanguera II, e entre São Paulo e a recém fundada Vila Boa de Goiás estabeleceu-se um intenso fluxo de homens com seus animais, negociantes com suas mercadorias, mineradores com sua fome de ouro, aventureiros com seus sonhos, facínoras com seus crimes.

Para dar apoio, sustento e descanso a esses “viandantes”, formaram-se, ao correr do Caminho, os pousos, minúsculos núcleos populacionais que abriam tímidas clareiras no grande sertão. Os pousos desenvolveram-se ou estagnavam-se a medida em que aumentava ou diminuía o fluxo de gente e de coisas pela Estrada dos Goiases. Por conseguinte, o escasseamento do ouro de Vila Boa trouxe como conseqüência a decadência definitiva dos pousos. Não obstante, a decadência não resultou em seu completo desaparecimento.

Mais tarde, no século XIX, eles iriam ainda servir de pousada para o boiadeiro, para os carros de bois, para os comerciantes de então, para os abastecedores dos centros urbanos que surgiam na época tais como São Paulo e Rio de Janeiro.

Num dos primeiros e mais completos documentos sobre os pousos do “Sertão do Rio Pardo thé o Rio Grande”, existente no Arquivo Público do Estado de São Paulo, dá-nos uma excelente visão sobre a época e a região estudadas. Trata-se da lista dos moradores estabelecidos ao longo do “Caminho” que ia para Vila Boa, distribuídos em seus respectivos pousos.

Assim‚ que no pouso do Rio Pardo moravam Domingos da Silva, de 69 anos, casado e mais 6 pessoas incluindo-se nestas os seus filhos, escravos e agregados. No Cubatão, Joana Pires, viúva de 30 anos e mais 17 pessoas. Em Lages, José Barbosa de Magalhães, 39 anos, casado com Maria Pires, vivia com seus 24 filhos, escravos e agregados. Em Araraquara morava Salvador Pedroso, casado, de 70 anos com mais 5 pessoas. No pouso dos Batatais só viviam 4 indivíduos: Luís de Sá, 33a. com sua mulher Teresa Maria de 27a. e mais 2 agregados. Na Paciência, Pedro Gil, 67a. com sua mulher e mais 3 agregados. No Pouso Alegre achava-se Raimundo de Morais, 60a., viúvo e mais o seu filho, 1 agregada e 2 escravos. Manuel de Almeida (53a.) ocupava o pouso do Sapucaí com sua mulher Ana Antunes, 41a., os seus filhos José (12a.), Vicente (10a.), Antônio (7a.) e mais 7 agregados. No famoso pouso dos Bagres só aparecem 3 habitantes: Fernando Antônio, 43a., com sua mulher Maria, 37a., e sua filha Ana. Bernardo Machado (50a.) e sua mulher moravam na Posse com mais 14 agregados No pouso da Ressaca encontravam-se 5 moradores. No Monjolinho, além de Salvador Barbosa (40a.), sua mulher Isabel e seu filho José, moravam 6 agregados. Dos mais numerosos era o pouso do Calção de Couro, chefiado por José da Silva, 54 a., e sua mulher Maria de Paiva e que se completava com mais 21 habitantes. Antonio Pires, 40a., e sua mulher Catarina eram moradores do Rio das Pedras com mais 10 pessoas. Miguel e Maria Buena encabeçavam o pouso da Rocinha que contava ainda com mais 15 habitantes. Finalmente, nas barrancas do grande rio, localizava-se o pouso do Rio Grande chefiado por José de Almeida, casado, 43a., possuidor de um escravo e que ali vivia em companhia de João Pereira Carvalho, o “mestre da barca” usada na travessia dos viajantes. Quando a Freguesia de Franca repartiu-se cima de Batatais (1814) nestas se incluíam os pousos que ficavam entre o rio Pardo e o Sapucaí.

Decorridos vinte anos, algumas alterações se verificaram nos pousos e na população do sertão. Uma delas foi a tendência de crescimento demográfico. Se, em 1779 a população do “Caminho dos Goyazes” não ia além de uma centena e meia de habitantes, em 1799 ela chegava a casa dos 660 habitantes. Apesar da unificação das listas populacionais a partir de 1793 (os moradores do sertão do rio Pardo passaram a ser computados em conjunto com os da região de Caconde) era evidente o aumento da população do Belo Sertão ao passo que diminuía a quantidade de moradores situados a margem dos ribeirões do Bom Sucesso, São Mateus e cabeceiras do rio Pardo. Tal crescimento vai acentuar-se com a entrada do século XIX e a chegada dos entrantes das Gerais.

Todavia, passadas duas décadas, ainda estavam no Sertão do Rio Pardo até o Rio Grande, os Pires, os Bueno, os Antunes de Almeida e tantas outras famílias que, apesar de “mulatas”, traziam em seus sobrenomes a sua origem bandeirante. É bem provável que Domingos da Silva relacionado na Lista Populacional de 1799 como cabeça do fogo 62 seja o mesmo do pouso do Rio Pardo de 1779.

Josefa Pires (pouso do Cubatão) reaparece casada com José de Almeida. José Barbosa de Magalhães já havia falecido, mas, no pouso de Lages ainda permanecia sua viúva Maria Pires (fogo 8) com seus 6 filhos. Com a morte de Pedro Gil, assume a chefia do fogo 28 (pouso da Paciência) a sua mulher Francisca Gil. Não resta a menor dúvida que o Bernardo Machado do fogo 18 da Lista de 1799 é o mesmo do pouso da Paciência, tendo, naquele ano, com seus 15 agregados, vendido para os comerciantes de Minas 50 alqueires de milho. Assim como Manuel de Almeida, primeiro Capitão de Ordenanças do Caminho dos Goiases, podiam ser encontrados nas duas listas populacionais: no fogo 32, por exemplo, estavam Antônio Pires e sua mulher Catarina (pouso do Rio das Pedras) vendendo para as tropas de Minas 100 alqueires de milho, 10 de feijão 16 de farinha e 6 arrobas de toucinho. Miguel e Maria Buena, do pouso da Rocinha, são encontrados no fogo 23 plantando para o gasto e vendendo para os negociantes 30 alqueires de milho.

Nas últimas décadas do século XVII, os pousos continuariam com suas antigas funções de local de parada, descanso e abastecimento, funções estas que seriam incrementadas pelas tropas de negociantes das Minas Gerais que percorriam o sertão comprando os produtos da terra para revendê-los aos centros consumidores, especialmente, o Rio de Janeiro, São Paulo e quadrilátero do açúcar.

Com isso, os pousos ganham novo vigor econômico com o fornecimento de milho, feijão, arroz, queijo, sola, toucinho, algodão, principalmente a carne de seus rebanhos de vacuns. Contudo, nenhum desses pousos se transforma em arraial. O arraial é fruto de uma outra realidade, de outro cenário, de outros fatores que se processarão no século XIX.

No primeiro quartel do século XIX, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, homem culto e perspicaz, registra a sobrevivência dos pousos, a permanência de suas finalidades e a diferença entre eles e os arraiais. Ao atravessar o Rio Grande, escreve o naturalista: “…comecei no dia 24 de setembro de 1819 a percorrer essa imensa Provincia. Para alcançar sua capital viajei 86 léguas seguindo a estrada que as caravanas percorrem em demanda de Goiás e Mato Grosso. Gastei 36 dias nessa viagem muito castigada pelas chuvas e pelas más pousadas…”… “No próprio dia de minha chegada ao rio Grande, atravessei-o e dormi num vasto rancho coberto de folhas e aberto de todos os lados. A noite estava muito fria. Pela manhã, antes do despontar do sol, uma neblina espessa impedia-me de ver os objetos circunvizinhos, mas logo desapareceu e pude me deliciar com a beleza da paisagem.” Sobre os moradores estabelecidos nos pousos ao longo da estrada, assim se manifestou Saint-Hilaire: “Enquanto descrevia e examinava as plantas, aproximou-se um homem do rancho permanecendo várias horas a olhar-me sem proferir qualquer palavra. Desde Vila Boa até o Rio das Pedras tinha eu tido, quiçá, cem exemplos dessa estúpida indolência. Esses homens embrutecidos pela ignorância, pela preguiça, pela falta de convivência com seus semelhantes e, talvez, por excessos venéreos prematuros, não pensam, vegetam como árvores, como as ervas dos campos”.

Mais adiante, sua opinião sobre os Batatais foi bem diferente: “A duas léguas de Paciência, detive-me na fazenda de Batatais, abrigando-me num rancho cercado por grossos moirões que o defendiam dos animais. Depois da cidade de Goiás, nenhum rancho vi construído com tamanho cuidado. Batatais é dependência de uma pequena Vila do mesmo nome situada a pouca distância da estrada do lado de leste e que não cheguei a ver.”

Os pousos ficaram como herança do povoamento bandeirante-caiapó do Belo Sertão da Estrada dos Goiases e, até hoje, muitos locais da região são identificados por aquelas antigas denominações.

2. O Capitão Manuel de Almeida.

Nas proximidades do Pouso Alegre e Bagres, localizava-se o pouso do Sapucaí encabeçado pelo português Manuel de Almeida. Desde 1779 ele vivia na referida localidade juntamente com sua mulher, Ana Antunes (de 41 anos), e seus filhos José (12 anos), Vicente (10 anos) e Antônio (7 anos). Além de sua família, viviam sob a proteção de Manuel de Almeida (que, por essa época contava com 53 anos) os seguintes agregados: Pedro, casado, com 40 anos e Inácia, sua mulher, de 39 anos; João, 25 anos; Paulo, de 52 anos; Francisca com 30 anos; Miguel, 30a.; Maria, 20 a.. Por conseguinte, o pouso do Sapucaí contava com 12 habitantes em 1779.

Após 20 anos, isto é, em 1799, Manuel de Almeida e sua família ainda permaneciam no pouso do Sapucaí. A Lista Populacional de referido ano apresenta o seguinte cabeçalho:

“MAPA GERAL DOS HABITANTES EXISTENTES NA PAROCHIA DO ARRAYAL DE NA SNRA DA CONCEYÇÃO DO BOM SUCESSO DAS CABECEIRAS DO RIO PARDO DE QUE HÉ CAPM MANOEL DE ALMEIDA NO ANNO DE 1799 SUAS OCUPAÇOENS, EMPREGOS E GENEROS QUE CULTIVO.”

Portanto, Manuel de Almeida já havia recebido a patente de Capitão de Ordenanças do Belo Sertão da Estrada dos Goiases, fato que indicava a importância da região no novo contexto econômico que se desenhava.

Na Lista, os moradores não vinham discriminados em seus pousos, mas sim em seus fogos, aos quais pertenciam. Manuel de Almeida, agora com 73 anos, encabeçava o fogo número 1 com sua mulher Ana de Sousa Antunes (61 a.) e mais os filhos: Alferes José Pio Antunes de Almeida (34 a.), Vicente Antunes (23) e Antônio Antunes (32), à família acrescentou-se a nora Maria Francisca, casada com Vicente. Completava o fogo 6 escravos e 5 escravas. Contrariamente ao “mapa” anterior, não se registrava nenhum agregado. O Capitão Manuel de Almeida vivia: “de rendas da passagem do rio Sapucahy”. Mas não era só dessas rendas que provinha o seu sustento. Também plantava para o gasto e o excedente, vendia para as “tropas” de Minas sendo que no ano de 1799 havia negociado: 30 alqueires de milho, 15 de feijão, 10 de arroz, 20 arrobas de toucinho e 12 arrobas de fumo. O Capitão Manuel de Almeida e sua mulher ainda aparecem nas Listas de 1801 e 1803. Porém, os seus filhos Vicente e José Pio já não fazem parte do seu fogo, isto é, já não eram mais dependentes do seu fogão. Junto aos pais somente permanece o filho Antônio. Em 1803, o velho Capitão de Ordenanças assim anotava as suas atividades: “Administrador de passage da Real Fazenda – Planta para o gasto – Colheu de milho 300 alqs. e vendeo 50 – Colheu 20 de feijão e vendeo 6 – Colheu 10 de arroz – Marcou 3 gados vacum”.

3. Os Irmãos Antunes.

Dos filhos de Manuel de Almeida, Vicente e Antônio permanecem no Sertão do Rio Pardo. O Alferes José Pio toma outro rumo. Vicente sai do fogo do pai para incorporar-se ao encabeçado por sua Sogra Maria Pires Cordeiro (fogo 8), próspera agricultora e criadora. Na Lista de 1805, Vicente Ferreira Antunes de Almeida encabeça o fogo 99 com sua mulher Maria Francisca e os seus 5 filhos. O fogo 99 situava-se na região de Santa Bárbara. Antônio Antunes de Almeida passou a chefiar o fogo 111. Aos 35 anos ainda se achava solteiro. Com seus 11 escravos, plantava e criava e, em 1804, havia vendido para os comerciantes da estrada 30 alqueires de milho (dos 200 colhidos). Havia colhido, também, 20 alqueires de feijão e marcado 20 vacuns.

Para se atravessar os rios do Sertão, os viajantes deveriam pagar os “direitos de passagens” devidos, inicialmente, a Bartolomeu Bueno da Silva e seus descendentes. Mais tarde, a Coroa incorporou esses direitos a sua receita. Manuel de Almeida, português de Lisboa, seria o encarregado de administrar a passagem do Sapucaí e de recolher as rendas para a Real Fazenda. O fato de ele ter sido o administrador da “passage”‚ muito importante porque nos possibilita a localização exata do seu pouso ou fogo. O velho Capitão e sua família moravam à beira do rio Sapucaí em terras de há muito aposseadas e identificadas com o nome de Santa Bárbara.

Em 1805, ao fazerem doação de terras para a formação do patrimônio da nova Freguesia da Franca, os irmãos Antunes, isto é, Vicente Ferreira Antunes e Antônio Antunes de Almeida, fizeram-na com base no desmembramento de parte de sua fazenda Santa Bárbara.

Durante o Brasil-Colonia, prevaleceu o sistema de concessão de terras conhecido como sesmaria. Contudo a maior parte do Belo Sertão era constituída por terras devolutas.

Mais do que o título, a posse efetiva com o plantio e o cultivo, garantia a propriedade. D. Maria I já se havia pronunciado enfaticamente neste sentido (cf. Os Sem Terra do Século XIX, artigo de nossa autoria publicado no Diário da Franca). Desde 1779 (ou mesmo antes), Manuel de Almeida e sua gente havia-se estabelecidos às margens do Sapucay-mirim. Todavia, somente em 1808 os seus filhos, Antônio e Vicente, receberão o título legal de posse, isto é, a Carta de Sesmaria. Evidentemente, a referida concessão decorria da necessidade de se legalizar a posse dos Antunes de Almeida em virtude de sua doação para a “fabrica” da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição da Franca.

D. Mateus de Abreu Pereira, bispo de São Paulo, ocupando interinamente o Governo da Capitania, resolve legalizar a posse do primeiro Capitão de Ordenanças do Belo Sertão da Estrada dos Goiases, concedendo aos seus filhos e herdeiros a Carta de Sesmaria da fazenda Santa Bárbara a qual é a seguinte: “Carta de Sesmaria a Vicente Ferreira Antunes a Antonio Antunes de Almeida de 3 Legoas de terra no Disto da V.a de Mogi-Mirim. Dom Matheus de Abreu Pera, do Conso. de S.A.R. Bispo de S. Paulo, o Dezor. Miguel Antonio de Azevedo Veiga Ouvor. Geral e Corregor desta Comca, e Joaqm Manuel do Couto Chefe de Divizão da Armada Real, e Intendente da Marinha de Santos, todos Govres Interos desta Capitania Geral de S. Paulo etc. Fazemos saber aos q’ esta Nossa Carta de Sesmaria virem q’ attendendo a Nos reprezentarem Vicente Ferreira Antunes, e Antonio Antunes de Almeida da Villa de Mogi-Mirim, q’ elles possuem desde o tempo do falescido seo Pai, o Capm Manoel de Almda tres legoas de terra no Certão da Estrado de Goyazes entre o Rio Sapucahy, e o Rio Grande na paragem chamada o Ribeirão dos Bagres termo da dita Villa, onde os Suplicantes já tem bastantes criaçoens de Gados; e pr isso pedião nos lhes concedessemos pr Carta de Sesmaria as mmas tres legoas de terra no do Ribeirão dos Bagres fazendo peão onde mais conveniente for, e sendo visto o Seo requerimto em q’ foi ouvida a Camara da Villa Mogi-Mirim, e o Doutor Procurador da Coroa, e Fazenda aqm se deu vista, e com ql parecer Nos Conformamos: Havemos pr bem dar de Sesmaria em Nome de S.A.R. o Principe Regte N.S./ em observancia da Real Ordem de 15 de Junho de 1711, e das mais sobre esta Materia / aos ditos Vicente Ferra Antunes, e Antonio Antunes de Almda duas legoas de terra em qdra na paragem Mencionada com as confrontaçoens acima indicadas sem prejuizo de terceiro, ou do direito, q’ algumas pessoas tenhão a ellas o ql lhes deixamos salvos pa o alegarem, ou no acto da Medição, ou pa outro qualqr q’ lhes convier: Com declaração, q’ as cultuvarão, e mandarão confirmar esta Carta de Sesmaria pr S.A.R. dentro em dois annos, e não o fazendo se lhes denegar mais tempo, e antes de tomarem posse dellas as farão Medir, e demarcar judicialmentesendo pa este effeito noteficadas as pessoas comqm confrontar, e serão obrigados a fazer os Caminhos de suas Testadas com pontes e estivas onde necessario for, e descobrindo-se nellas Rio caudalozo, q’ necessite de Barca pa atravessar ficar rezervada de huma das Margens delles meia legoa de terra em quadra pa Commodidade Publica, e nesta data não poder succeder em tempo algum pessoa Eccleziastica, ou Religião, e Succedendo ser com o encargo de pagar Dizimos, ou outro qual quer, q’ S.A.R. lhe quizerem impor de novo, e não o fazendo se poder dar aqm o denunciar, como tambem sendo o dito Senhor servido Mandar fundar no Districto della algumaVilla o poder fazer ficando livre, e sem encargo algum pa os Sesmeiros, e não Compreender essa datta veeiros, ou Minas de qualquer genero de Metal q’ nella se descobrir, rezervando tambem os Paos Reaes; e faltando aql qr das ditas Clauzulas pr seren Conformes as Ordens de S.A.R., e o q’ dispoem a Lei, e Foral da Sesmarias ficarão privadas desta: Sendo outro sim o obrigdos os Sesmeiros a levar com Arado cada anno nas terras q’ legitimamte lhes pertencer hum pedaço de terreno proporcionado ao q’ se acha estabelecido de seis braças de frente, e seis de fundo pa cada Legoa quadrada concervando Lavradias as q’ huma ves forão tratadas com Arado na forma determinada pelo avizo da Secretra de Estado dos Negocios da Marinha e Dominios Ultramarinos de 18 de Maio de 1801: com a Cominação de q’ não cumprindo assim pagar Cem reis pa cada braça, q’ deixar de lavrar q’ serão aplicados pa as obras, e mais despezas do Hospital Militar desta Cidade, cujo encargo passar com as mesmas terras a todos os possuidores, q’ forem dellas pa o fucturo, e no Cazo q’ ellas se subdevidão ser obrigado a lavrar a parte q’ lhe tocar proporcional a parte q’ ql qr outro possuir de suas refferidas terras. Pello q’ mandamos ao Ministro, e mais pessoas a quem o Conhecimento desta pertencer dem posse aos ditos Vicente Ferra Antunes, e Antonio Antunes de Almeida das refferidas terras na forma q’ dito hé. E por firmeza de tudo lhe mandamos passar a prezte por Nos assignada, e Sellada com o Sello das Armas Reaes, q’ se cumprir inteiramente, como nella se contem, se registrar nos Livros da Secretra deste Govo, e mais partes a q’ tocar, e se passou pr duas vias Dada nesta Cidade de São Paulo aos 28 de Julho de 1808. Assinam a Carta de Sesmaria o escrivão José Matias Ferreira de Abreu, o Secretario de Governo Manuel da Cunha de Azevedo Coutinho Sousa Chichorro, e os Governadores interinos D. Mateus de Abreu Pereira, Miguel Antonio de Azevedo Veiga e Joaquim Manuel do Couto”.

O ribeirão dos Bagres de que nos fala a Carta, localizava-se próximo ao Sapucaí, onde desaguava. O atual córrego dos Bagres vai desembocar no referido ribeirão. Porém, esse mesmo córrego recebia, em 1818 (por ocasião da visita de Alincourt) a designação de Itambé e, mesmo, Catocos (visita de Taunay).

O processo de demarcação da fazenda Santa Bárbara encontra-se conservado no Arquivo Histórico Municipal e é datado de 1822. Contudo, ela já era de propriedade de Francisco Antonio Dinis Junqueira e não mais dos irmãos Antunes.

4. Os Entrantes das Gerais: As Primeiras Famílias.

Em 28 de novembro de 1824, o “Districto do Rio Pardo thé o Rio Grande” é elevado a categoria de Vila. Cria-se, por conseguinte a Vila Franca do Imperador, que, destarte, emancipa-se da Vila de São José de Moji-mirim. Os vereadores são eleitos e os juizes também, Os empregados da Câmara são nomeados e a Municipalidade passa a gerir, por si própria, os seus destinos.

Na realidade, a fundação de Franca data de 1805 quando o Pe. Joaquim Martins Rodrigues, primeiro vigário encomendado da nova Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Franca, benze o terreno, doado pelos irmãos Antunes, onde seriam construídos o cemitério e a Matriz. O arraial da Franca e todos os outros do antigo Belo Sertão nascem em virtude da afluência e da vontade dos entrantes das Minas Gerais que apossam-se da região nos primeiros anos do século XIX.

Graças às Listas Populacionais pode se precisar o ano em que se inicia esse fluxo demográfico e quais foram as primeiras famílias que se fixaram no antigo sertão.

Um dos primeiros a chegar foi José Gomes Meireles que aparece na Lista de 1803 com sua mulher Rosana (fogo 40) e mais 5 filhos e 5 escravos. De acordo com o registro eles vieram do: “arrayal de Pitanguy, Destricto das Gerais e estão arranxados de poco”. Das Minas Gerais também era Manuel Pereira Pinto que morava no fogo 42 com sua mulher Ana Maria e seus dois filhos. Ele vivia de seu oficio de alfaiate, mas também plantava para o seu gasto.

Todavia, é em 1805 que esse fluxo migratório começa a se evidenciar. Nesse ano, a Lista já foi da responsabilidade de Hipólito Antonio Pinheiro, nomeado Capitão de Ordenanças em substituição a Manuel de Almeida que falecera recentemente, Hipólito Antonio Pinheiro encabeçava o fogo número 1. Natural de Congonhas do Campo, Hipólito vem para o sertão aos 51 anos de idade acompanhado de sua mulher Rita Angélica do Sacramento e dos filhos: João, Quintiliano, Ambrósio, Luciana, Ana, Hipólita, Rita, e mais as netas: Rita, Maria, Hipólita e Porcina. Além de 8 escravos, vieram com ele os agregados: José Gonçalves Campos e Maria de São José que, por sua vez, possuíam 4 escravos. Em conjunto eles plantaram milho, feijão e marcaram vários vacuns e cavalares.

No fogo 2 encontra-se Heitor Ferreira de Barcelos, natural da Vila de São José. Ele era irmão de Hipólito por parte de mãe cujo nome era Ana Faria. O Alferes Heitor (42 anos) vinha acompanhado de sua mulher Ana Angélica (34 a.) e os filhos: Claudio, Anselmo (11 a.), Heitor, José, Joaquim, Ana, Maria, Silvéria, Cândida. Possuía 10 escravos e os seus agregados eram: João do Rego e Ana Maria que, por seu turno, tinham 8 filhos e 1 escravo.

O Reverendo Joaquim Martins Rodrigues, natural de Congonhas do Campo, aparece no fogo número 3 e, curiosamente é chamado de Vigário da Freguesia antes mesmo dela se concretizar. O Reverendo tinha 7 escravos e 5 agregados.

Antônio Alves Guimarães era oriundo do Reino, tendo nascido em Guimarães. Certamente, ele primeiro se estabelece em Minas para depois vir para o Sertão do Rio Pardo.

De São Bento do Tamanduá, veio João Rodrigues de Sousa, Antonio Vieira (era natural da Vila de São José), José Gonçalves de Melo, de São João del Rei. Também de São João del Rei era Francisco Machado do Espírito Santo. De vários arraiais e Freguesias, de inúmeros distritos e Vilas vieram os entrantes das Gerais para arrancharem e formarem suas fazendas no Belo Sertão, E quanto mais avançarmos pelo século XIX, mais acentuado ser este fluxo migratório que ira transformar o sertão urbanizando-o com seus arraiais e humanizando-o com a sua gente.

Fontes:

– Listas Populacionais de 1779, 1799, 1801, 1803, 1805 – existentes no Arquivo Público do Estado de São Paulo

– Viagem à Província de São Paulo de Auguste de Saint-Hilaire

– Livro de Sesmarias

Colaboração: equipe do Arquivo Histórico Municipal de Franca

Inácio Franco – Um ramo inédito das Três Ilhoas

Marta Amato
Foi quem pesquisou a ascendência açoriana das irmãs.
Já a descendência foi pesquisada pelo falecido genealogista
Dr. José Guimarães por 50 anos e ampliada
por vários outros pesquisadores.)

Por ser Barbacena uma das regiões mineiras onde existem poucos descendentes das Três Ilhoas, foi surpresa encontrar uma filha de Inácio Franco e Maria Teresa de Jesus radicada nessa vila, descoberta fantástica de Douglas Fazolatto, genealogista mineiro. Através de pesquisas de ambos e com complementos de amigos pesquisadores, foi possível trazer à luz este trabalho, complementando as pesquisas do Dr. José Guimarães, responsável pela identificação das três irmãs açorianas que se tornaram figuras lendárias pela grande descendência. Teresa de Jesus, a filha desconhecida de Inácio Franco e Maria Teresa de Jesus, casou-se com um faialense, como sua mãe, Manuel José de Bem. Temos em 250 páginas a descendência do casal, entre eles os irmãos Nana, Dori e Danilo Caymmi; Dr. Paulo Egídio Martins, ex-Governador de São Paulo e os descendentes de Carlos Lacerda.

Outro ponto a ser identificado era a exata naturalidade de Inácio Franco, uma incógnita até então, pois na obra “As Três Ilhoas” consta como sendo “freguesia de Balga, Termo da vila da Feira”, lugar não identificado nos mapas e dicionários corográficos de Portugal. Ao ter acesso, através de amigos pesquisadores, aos dados constantes no processo de genere et moribus (que se encontra na Cúria de Mariana) de um neto de Inácio Franco – Padre Francisco Antonio Junqueira, onde diz que o avô era natural da freguesia de Santa Maria de Celga, também inexistente, procurei na região um nome parecido com CELGA e BALGA cujo orago fosse Santa Maria. Encontrei “VÁLEGA”, orago “Santa Maria”. Solicitei os microfilmes desta localidade em um CHF e finalmente depois de mais de oito anos de buscas localizei o tão procurado batismo.

Valga ou Válega – A terra de Inácio Franco

A Região Centro, à qual pertence a vila de Válega, é composta pelas províncias beirãs (Beira Litoral, Beira Alta e Beira Baixa); corresponde a uma superfície de 23.667 Km2. É a segunda região maior de Portugal e nela estão incluídos os distritos de Viseu, Aveiro, 10 concelhos do distrito de Leiria, o concelho de Mação (distrito de Santarém), distrito de Castelo Branco, Coimbra e Guarda – com excepção de Vila Nova de Foz Côa.

Próximo da ria de Aveiro localiza-se a povoação de Válega que em 1522, contava 328 habitantes; em 1623 o número subiu para 638; em 1687 ultrapassava os 2000 e hoje conta com cerca de 6500 habitantes.

A ria de Aveiro implantou-se num local onde antes (no século X) existia uma grande baía, desde o cabo Mondego até Espinho. Hoje é composta por um sistema lagunar, formando um delta por ação dos rios Vouga e Antuã, local de mistura das águas doce e salgada ainda hoje uma fase dinâmica da sua evolução que tem a ver com os processos de transporte e deposição de sedimentos (…)”.

Para obtermos uma idéia mais pormenorizada acerca da formação da ria de Aveiro, passamos a citar Antônio Pena e José Cabral : “O processo evolutivo deste sistema lagunar foi longo e complexo, tendo influenciado grandemente a população de toda a zona envolvente a ponto de, nos séculos XVI e XVIII, quando a laguna ficou isolada do mar por ação de grandes tempestades, terem sido gravemente afetadas várias das atividades tradicionais desta região como a navegação e a agricultura (devido à inundação e salinização dos terrenos). (…) a ria de Aveiro atravessa a de Entre-Águas e situa-se na província da Beira Litoral, pertencendo ao distrito de Aveiro, concelho de Ovar, freguesia de Válega. Este local tomou o nome de Entre-Águas por se situar muito próximo do local onde se reunem dois rios: o Rio Negro e o Rio Gonde. Os dois formam uma única linha de água que depois de contornar uma zona pantanosa deságua numa pequena enseada da ria de Aveiro, denominada Canto da Senhora.

Citando Pe. Miguel de Oliveira : “É tradição constante nesta freguesia que o lugar de Entráguas foi outrora muito povoado e nele, em tempos que a memória dos homens não atinge, teve assento uma cidade.

Não sabemos ao certo, nem a tradição o diz, o nome dessa cidade; querem uns que se chamasse Matérteles, afirmam outros que se chamou Braziela, corrupção de Varziela, nome dado hoje a uns campos próximos, muito fecundos e produtivos…

Destruída por um cataclismo, nunca mais se levantou dos escombros, foi-se apagando a sua memória, restando-nos apenas esta obliterada notícia na tradição oral ….”

É uma região florestal, de grande diversidade paisagística: contém a Serra da Estrela, maior maciço montanhoso do continente e engloba a ria de Aveiro – extensa zona úmida, distando 5 km de Ovar, mais parecendo uma continuação dessa cidade.

A Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, diz sobre a vizinha vila de Avanca: “Basta a toponímia para garantir, ao território desta freguesia, antiguidade pré-nacional de povoamento, o que pode ascender a épocas mais remotas, visto que se conserva até hoje o topônimo Avanca, pois parece ser de origem pré-Romana. Pode supor-se deste topônimo – Avanca, uma origem Semito-Fenícia, assim como Ovar, Válega, Vagos, etc…, povoações situadas na borda da Ria de Aveiro, tendo como origem a raíz Fenícia va ou Ba que significaria “águas”. É curioso que se atribui aos Fenícios – à cerca de 2500 anos – a colonização da região do que é hoje a Ria de Aveiro.

Ovar e Ílhavo, teriam sido fundação Fenícia. Reito Fraião regista haver, talvez, cerca de 26 fontes e 30 casas de moínhos, sendo que a vila próxima Avanca seria habitada mesmo antes dos Romanos dominarem a Península, pois registamos populações pré-Romanas na região, com referências a Avanca, como “Castro de Recarei” (S. Martinho da Gândara). Assim: – “et subtus mons castro recaredi discurrente vivolo Avanca” (ano de 1097).

Sobreviveram os domínios Suevo e Visigótico (séc. V e VI) e, mais tarde, os Árabes, invadindo a Lusitânia (séc. VIII). Depois “um vai-vem” de conquistas e reconquistas na região de Entre Douro e Vouga (Terras de Santa Maria) por Árabes e Cristãos.

Por gentileza do Dr. Romeu Caiafa, transcrevo o que diz sobre Válega, “A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, no volume 33, páginas 856 a 859, da Editorial Enciclopédia Ltda., Lisboa-Rio de Janeiro:

“Válega. Freguesia do Concelho e Comarca de Ovar, Distrito de Aveiro, Diocese e Relação do Porto. Orago: Santa Maria (Nossa Senhora do Amparo). População: 5.343 habitantes em 1.283 fogos. Tem est., telef.-post., escola primária e é servida por um apeadeiro na linha férrea do Norte. É atravessada de N. a S. pela estrada nacional n.o 109; de E. a O. por um regato que vai tomando diversos nomes, como os de Rio da Igreja e Rio Negro, e deságua num dos esteiros da Ria de Aveiro. O centro da freguesia dista a 4 km. da sede do concelho. Confina a N. com Ovar, S. com Avanca e Pardilhó, E. com S. Vicente Pereira e S. Martinho da Gandra, O. com Ovar e Ria de Aveiro. O nome de Vallega aparece pela primeira vez em documento do ano de 1102, aplicado ao rio; o étimo está no latim vulgar vallica, equivalente a vallicula, “o pequeno vale”. Há na Galiza, na margem esquerda do rio Ulla, a paróquia e o município de Valga, com a mesma origem etimológica. O território constituiu-se pelo agrupamento de propriedades rústicas, as mais importantes das quais eram na Idade Média a villa Dagaredi e a vila Peraria, a primeira ao S. e a segunda ao N. do rio; ainda no séc. XIX, uns lugares se diziam da “parte de Degarei” e outros da “parte de Pereira”. A primeira já é mencionada no ano de 929, no contrato de umas salinas, as mais antigas de que há documento em território português. Ainda nas Inquirições de 1220, a freguesia é chamada Degarei, talvez porque aí estivesse a igreja paroquial. A villa Peraria, mencionada em documento do ano de 1002, veio a constituir um concelho com sede no lugar chamado Pereira Jusã (ou de Baixo), para se distingüir da freguesia de S. Vicente de Pereira, designada em alguns documentos por Pereira Susã. O padroado da igreja foi doado cerca de 1182 ao mosteiro de S. Pedro de Ferreira por D. Doroteia, D. Elvira e D. Usquo ou Unisco, que deviam ser descendentes dos fundadores; em 1288, passou para os bispos e para a Sé do Porto; os frutos e os dízimos foram anexados à Mesa Capitular em 1583. É tradição que a primitiva igreja paroquial esteve no lugar do Seixo Branco, num terreno hoje chamado Chão de João Caetano. Antes do séc. XVI, já era no local agora conhecido pelo nome de Adro Velho, onde ainda se conservam duas lápides sepulcrais e se descobriram em 1941 algumas imagens e resto do templo. Como este ameaçava ruína, em 1746 o visitador mandou construir outro no prazo de três anos. Adquirido o terreno um pouco a N., foi lançada a primeira pedra pelo abade Vicente José de Freitas, em 20 de novembro de 1746. Já as obras estavam quase concluídas, quando foi tudo devorado por um incêndio em 25 de abril de 1788. A reconstrução, muito demorada, foi subsidiada pelo imposto de um real no vinho e na carne, na freguesia e em todo o concelho de Pereira Jusã. No templo atual, há algumas boas imagens: um Cristo cruxificado do séc. XVII, a da Padroeira e a de S. José do séc. XVIII, a de Nossa Senhora do Rosário e a do Coração de Jesus, esta do escultor Fernandes Caldas; dos objetos do culto, salienta-se a custódia processional, de prata dourada, do séc. XVII. O cemitério, em frente da igreja, foi concluído em 1871, por conta da Câmara de Ovar, e depois ampliado em 1889 e 1909. O primeiro pároco de que há notícia foi Soeiro Anes, que em 1182 dizia ter recebido esta igreja de D. João Pais, abade de S. Pedro de Ferreira. Desde o fim do séc. XVI, a paróquia tinha o título de abadia. De 1591 a 1622, foi abade Sebastião de Morais Ferreira, que instituiu o vínculo da Quinta da Boa Vista; de 1624 a 1637, D. Diogo Lobo, que depois foi prior-mor de Palmela e bispo eleito da Guarda; de 1813 a 1830, o Dr. Antônio de Sousa Dias de Castro, egresso beneditino, que deixou fama de santo; de 1857 a 1899, o Dr. Manuel Marques Pires, natural de Beduíno, que chegou a ser deputado pelo círculo de Ovar e foi distinto jurisconsulto. D. Diogo Lobo está sepultado na capela de Nossa Senhora de Entráguas. A pedra tumular ostenta o seu brasão e a seguinte legenda: AQVI IAS DOM DIOGO LOBO PRIOR MOR QVE FOI DA ORDEM DE SAM TIAGO DO CONSELHO DE SVA MAGESTADE E BISPO ELEITO DA GOARDA E FVNDADOR E PADROEIRO DESTA IGREIJA DE NOSSA SNRA DENTRE AGOAS FALLECEO AOS VINTE E SETE DE OVTVBRO DE 1654 PELLA SVA ALMA PADRE-NOSSO. Houve uma ermida anterior, com a mesma invocação. A imagem da titular Nossa Senhora da Purificação, é de calcáreo, de inspiração gótica, fins do séc. XV, e está ainda regularmente conservada. Por ficar afastada do povoado, a capela tinha ermitão. Desempenhou devotadamente este cargo, no séc. XVIII, um segundo sobrinho do fundador, José de Sá Pereira Coutinho, caso lembrado num soneto pelo poeta Eugênio de Castro. O povo conta várias lendas a respeito do aparecimento da imagem e da Virgem. A norte da capela, junto ao regato do Portinho, ergue-se o chamado Cruzeiro da Virgem, em cuja base se lê a seguinte inscrição: 1673 N. SNR.a DE ENTRE AGOAS AQUI DEU FALLA A HUA MOÇA. Além desta capela, centro de grande romaria em 2 de fevereiro, há as seguintes capelas públicas: S. Gonçalo, do séc. XVI, que serve de paroquial no impedimento da matriz; S. Bento, no lugar de Paçô, talvez da mesma época; S. João Batista, fundada em 1594, por Afonso da Silva, o velho, de Degarei; S. Miguel, sucessora, quanto à invocação, de uma ermida que em 1102 foi objeto de doação à sé de Coimbra e ao bispo D. Mauricio Burdino. As capelas de propriedade particular, mas abertas ao público, são as seguintes: Senhora do Bom sucesso, fundada em 1721 pelo licenciado João Vaz Correia que nela está sepultado; Senhora da Conceição e Sagrada Família, fundada em 1763 por Francisco Rodrigues da Silva Praça; Senhora das Dores, fundada em 1812 pelo padre João José de Oliveira Amaral; Senhora das Febres, fundada em 1711 pelo padre Bartolomeu Leite do Amaral; Senhora de Lurdes, fundada em 1909 pelo padre Francisco Alves de Resende; Senhora da Maternidade, fundada em 1889 por Manuel Lopes da Silva. Capelas extintas: Senhora da Mâmoa ou da Ermida, antiguíssima, demolida em meados do séc. XIX; Capela dos Presos, em frente dos antigos Paços do Concelho de Pereira Jusã, fechada ao culto desde que este se extingüiu e demolida em 1914; Senhor da Boa Ventura, fundada em 1776, no sítio do Pinheirinho, ao sul de Entráguas, e demolida, segundo se conta, porque num forno de telha, que lhe ficava próximo, uns criminosos queimaram uma mulher. A população da freguesia dispersa-se, ao longo das numerosas estradas e caminhos vicinais, por 46 lugares, situados uns a norte e outros a sul do Rio da Igreja. As testemunhas ouvidas nas Inquirições de D. Dinis, em 1288, declararam que toda a freguesia, à exceção do lugar de Paçô, andava “honrada” por vários fidalgos. Em tempos de D. Afonso III, Fernão Fernandes Cogominho comprara os três lugares de Pereira, Rial e Vilarinho e estabelecera neles uma quintã de que fez honra. Sua viúva, D. Joana Dias, que foi senhora de Atouguia, anexou a essa honra o lugar de Bustelo e mais uma quintã em S. Vicente de Pereira Susã e outra em Guilhovai, no termo de Ovar.

No princípio do séc. XVI, o senhorio destas terras pertencia a D. Joana de Castro, da casa dos condes de Monsanto, a quem secederam D. Pedro de Castro e D. Luís de Castro. Em 1563, passou para a casa dos condes da Feira, em que se conservou até o falecimento do último conde em 1700. A seguir, pertenceu à Casa do Infantado, extinta em 1834. Com essas terras se constituiu, em meados do séc. XIV, o concelho e julgado de Pereira Jusã, que ficou assim a abranger a parte norte da freguesia de Válega, e alguns lugares da de S. Vicente de Pereira e Ovar. D. Manuel deu-lhe foral em Lisboa, a 2-VI-1514. A terra tinha então 20 vizinhos ou famílias, e andava-lhe anexo o Couto de Cortegaça. Pelas reformas de 1836, ficaram a pertencer ao concelho e julgado de Ovar todos os lugares da respectiva freguesia, e ao concelho de Pereira Jusã as duas freguesias de Válega e S. Vicente na sua totalidade. Por decreto de 28-XII-1853, foi esse concelho extinto e incorporado as freguesias no de Ovar. O antigo edifício dos Paços do Concelho, que depois serviu de escola e cadeia, foi vendido em 1914, e é hoje propriedade particular. Na mesma ocasião, foi demolido o pelourinho. A vila, reduzida a simples lugar, perdeu na linhagem do povo o apelativo de Jusã, erroneamente transferido em publicações oficiais para a freg. de S. Vicente de Pereira. Segundo as referidas Inquirições de 1288, na aldeia de Degarei (parte sul de Válega) havia seis casais de cavaleiros em que moravam uns 30 homens e vinte e quatro casais de mosteiros e igrejas. Só o ligar de Paçô (antiga villa Palatiolo) era todo reguengo. No séc. XVI, essas terras estavam no senhorio dos condes da Feira e foram abrangidas no foral concedido à Vila da Feira e Terra de Santa Maria, em 10-II-1514. Esta parte da freguesia pertenceu ao conc. da Feira, até que transitou em 1799 para o de Oliveira de Azeméis, em 1836 para o de Pereira Jusã e em 1852 para o de Ovar. Tinham aqui propriedades o bispo do Porto, o cabido, o mosteiro de Pedroso, o de Grijó, o de Arouca, a Congregação da Oliveira e a Colegiada de Guimarães. Dos fidalgos dos séc. XIII e XIV quase só restam memórias de questões com os bispos do Porto por causa do padroado da igreja. Desde o séc. XVI, fala-se nuns Silvas Antigos que se diziam descendentes de D. Guterre Alderete da Silva e por aqui se uniram a umas velhas famílias de Pires e Anes, somando-se à gente rural, e nuns Valentes que também se atribuíam certa prosápia em Válega e Avanca. Um destes, Valério Valente, casou com Clara de Morais Ferreira, irmã do abade Sebastião de Morais Ferreira, instituidor do vínculo ou morgado da Quinta da Boa Vista. Desse matrimônio nasceu Mariana de Morais, que casou com Garcia de Azevedo Coutinho, cavaleiro da Ordem de Santiago e capitão da Marinha de Guerra em tempo de D. João IV. O vínculo foi abolido em 1846 e o último morgado, Sebastião de Morais Ferreira, (m. em 19-X-1898), deixou os seus bens à Junta da Freguesia, para assistência médica a doentes pobres, por morte dos atuais usufrutuários. Era natural desta freguesia Fr. Antônio Pereira, que foi reitor do Colégio das Ordens Militares em Coimbra e escreveu um livro sobre a Ordem de Santiago, à qual pertencia. Alguns nobiliários locais dão como natural de Válega D. Fr. Vitoriano da Costa, bispo de Cabo Verde. É certo, porém que nasceu no Porto, embora aqui vivesse com seus pais, o licenciado Manuel da Costa Neves e Maria Barbosa, a quem o abade Alexandre Ribeiro (1628-1658) deixou a Quinta de Cima, depois chamada do Cruzeiro e dos Pamplonas. Confinava essa com os passais, e os seus proprietários no séc. XVIII tiveram longas questões com os párocos por causa das águas de rega.” …. ” A maior parte da população dedica-se à agricultura, mas, como a terra está muito parcelada, é grande o contigente migratório, sobretudo para os países da América Central e do Sul [ano de 1945]. Referindo-se ao lugar de Regedoura, escreveu Pinho Leal: “É celebre pela ótima telha que aqui se fabrica, a melhor do reino”. O barro era extraído nas proximidades da capela de Entráguas. Ainda em 1884 funcionavam seis fábrica, mas, devido à concorrência do tipo marselhês, apagaram-se os últimos fornos de “telha da Regedoura”, à roda de 1930. Como curiosidade, registre-se o capítulo “Mefistófeles e Maria Antonia”, do livro Cavar em Ruínas, de Camilo Castelo Branco, baseado no processo inquisitorial de uma mulher ainda lembrada na tradição local pelo nome de “Bruxa do Seixo”…. ” Fazem parte desta freguesia os seguintes lugares situados ao N. do Rio da Igreja: Azenha, Bustelo, Cabo da Lavoura, Cadaval, Carvalheira de Baixo, Carvalheira de Cima, Carvalho de Baixo, Carvalho de Cima, Corga do Norte, Corga do Sul, Espinha, Estrada de Baixo, Estrada de Cima, Molarelo, Pereira, Pintim, Porto Laboso, Quinta e Rego, Regedoura, Rial de Baixo, Rial de Cima, Roçadas da Espinha, Roçadas de Vilarinho, Roçadinhas, S. Gonçalo, Tomadias, Valdágua, Vilarinho. Os do S. são: Bertufe, Candosa, Entráguas, Ervideira, Espartidouras, Fontainhas, Giesteira, Monte da Candosa, Outeiro da Marinha, Paçô, Poças de Gonde, Rua Nova, Seixo Branco, Seixo de Baixo, Seixo de Cima, S. João, Torre e Vilar.

As Três Ilhoas

Marta Amato
Foi quem pesquisou a ascendência açoriana das irmãs.
Já a descendência foi pesquisada pelo falecido genealogista
Dr. José Guimarães por 50 anos e ampliada
por vários outros pesquisadores.)

Desde o início de 1720, a imigração açoriana se fez notar no Brasil meridional, principalmente nas Províncias de Minas Gerais e São Paulo. A densidade populacional e os constantes tremores de terra, erupções vulcânicas e as crises alimentares com a super-população das ilhas que formam o Arquipélago dos Açores, impulsionou os habitantes a solicitar à Coroa portuguesa autorização para a vinda para o Brasil.

Diante da possibilidade de povoar a nova colônia (onde a maioria dos habitantes era de aventureiros e homens solteiros que vieram em busca das minas de ouro e diamantes), com casais que iam fixar-se na terra, o Governo português autorizou a emigração.

As famílias foram chegando e estabeleceram-se principalmente na Província de São Paulo, que compreendia a Ilha de Santa Catarina (depois Capitania de Santa Catarina, hoje Estado de Santa Catarina), o Rio Grande de São Pedro (hoje, Estado do Rio Grande do Sul), e no sul da Província de Minas Gerais.

Vieram das ilhas do Pico, Santa Maria, Terceira, Faial, Flores, Graciosa, São Miguel, e muitos da Ilha da Madeira.

Dificilmente algum habitante dessa parte do Brasil deixa de ter antepassados com os nomes Goularte, Duarte, Garcia, Faria, Fagundes, Leal, Silveira, Rezende e assim por diante.

Aqui foram desbravadores, povoadores e fundadores de cidades.

A grande maioria dedicou-se à cultura de subsistência (milho, feijão, algodão, cana de açúcar) e criação de gado e tropa cavalar, numa época em que a fome era uma constante nas minas de ouro.

Deixaram suas marcas e seus costumes por onde passaram. Ainda hoje, acontecem festas populares e religiosas com o sabor dos Açores. As mulheres ainda tecem as rendas e bordam, como suas antepassadas. A hospitalidade açoriana é notada, principalmente em Minas Gerais, com a farta mesa de pães, biscoitos, queijos e doces para os que chegam.

Ainda em Minas Gerais, encontramos três irmãs que se tornaram figuras lendárias: Antonia da Graça, Júlia Maria da Caridade e Helena Maria de Jesus, que aqui ficaram conhecidas como “AS TRÊS ILHOAS”. Eram filhas de Manuel Gonçalves Correa e de Maria Nunes, vieram da Freguesia de Nossa Senhora das Angústias, na Ilha do Faial – Açores, e chegaram no ano de 1723. Antonia veio casada com Manuel Gonçalves da Fonseca e já com duas filhas: Maria Teresa e Catarina; Júlia e Helena casaram-se aqui, com açorianos. A primeira, com seu conterrâneo Diogo Garcia, e a segunda, com João de Rezende Costa natural da Ilha de Santa Maria. Tiveram muitos filhos e seus descendentes espalharam-se pelos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, enfim por quase todo o centro-oeste brasileiro.

Falar sobre “AS TRÊS ILHOAS”, equivale a descrever uma grande genealogia.

Ascendência Açoriana das Lendárias “Três Ilhoas”

No dia 27 de junho de 1666, na Freguesia de Nossa Senhora das Angústias, na Ilha do Faial (Açores), casam-se JOÃO LOURENÇO ou NUNES, filho de MANOEL LOURENÇO e de AGUEDA NUNES, com MADALENA GEORGE, filha de GASPAR GEORGE e de CATARINA GEORGE, sendo os pais dos noivos já falecidos. (Livro 1º de casamentos – 15/1/1666 a 25/3/1694, pag. 1, 2º assento). Não achei o óbito de João Nunes (provavelmente falecido em outra freguesia), mas foi entre 1675 e 1677, pois no dia 1º de novembro de 1677, Madalena George, viúva, contraiu matrimônio com MANOEL RODRIGUES FURTADO, falecido aos 17 de novembro de 1719 com mais ou menos 68 anos, filho de Manoel Rodrigues e de Catarina Duarte. Madalena George faleceu no dia 1º de junho de 1722, com 80 anos, com testamento, onde declara que foi testamenteira de seu 1º marido.

JOÃO NUNES e MADALENA GEORGE tiveram 4 filhos:

1.1

MARIA NUNES, batizada aos 24 de abril de 1667 na Freguesia de Nossa Senhora das Angústias e faleceu no Brasil, aos 5 de janeiro de 1742 na vila de Prados, Minas Gerais. Casou-se na mesma localidade onde nasceu, aos 22 de julho de 1685, com MANOEL GONÇALVES CORRÊA apelidado “o Burgão”, natural da Freguesia do Espírito Santo da Feiteira (Faial), filho de JOÃO GONÇALVES e de IGNES CORRÊA. Tiveram 5 filhos, dos quais 4 deixaram descendência. Foram 1 homem e 3 mulheres, estas vieram para o Brasil, onde ficaram conhecidas como “AS TRÊS ILHOAS”. Acredito que tenham vindo com destino certo, pois aqui encontraram Diogo Garcia, conterrâneo e aparentado com a família pelo casamento de sua sobrinha Anna Maria, filha de Maria da Ressurreição com Antonio Nunes, irmão das Três Ilhoas. Filhos:

2.1

ANTONIA DA GRAÇA ou DE AGUIAR (como aparece no assento de seu casamento e batismo de sua 1ª filha), foi batizada aos 21 de fevereiro de 1687 (padrinhos o Capitão Antonio Machado e Maria Rodrigues) e crismada em dezembro de 1696 (tendo como madrinha Luzia Rodrigues, mulher de Matheus Gonçalves). Casou-se aos 7 de fevereiro de 1706 com MANOEL GONÇALVES DA FONSECA, natural da Freguesia de Nossa Senhora das Angústias, filho de FRANCISCO RODRIGUES DA FONSECA e de BARBARA GARCIA (não achei o batismo dele, mas encontrei o casamento de seus pais aos 5 de fevereiro de 1673, sendo o noivo viúvo de Francisca Alvernas, e a noiva filha de Mathias Gonçalves e de Barbara Garcia). Tiveram 3 filhos nascidos no Faial e 1 no Brasil:

3.1

MARIA TERESA DE JESUS, nascida aos 8 de julho de 1714 e batizada aos 14 do mesmo mês e ano. Casou-se 1a vez em fevereiro de 1728, em São João del Rei – MG – Brasil, com o português INÁCIO FRANCO, e 2a vez, na mesma localidade, aos 4 de fevereiro de 1746 com BENTO RABELO DE CARVALHO, nascido aos 29 de janeiro de 1717 e batizado aos 7 de fevereiro do mesmo ano, na Freguesia de São Nicolau, Cabeceiras de Basto, filho de João de Oliveira e de Maria Gonçalves, ela, do lugar de Gondarem (casado s aos 3 de setembro de 1714 na mesma freguesia); n.p. Antonio de Oliveira e Catarina Dias, n.m. João de Carvalho e Maria Gonçalves. Maria Teresa deixou grande geração dos dois casamentos.

3.2

MANOEL GONÇALVES DA FONSECA, nascido aos 10 de fevereiro de 1719, batizado aos 16 e falecido aos 17 do mesmo mês e ano.

3.3

CATARINA DE SÃO JOSÉ, nascida aos 25 de agosto de 1721, batizada aos 29 do mesmo mês e ano e falecida aos 30 de julho de 1787 em São João del Rei-MG. Casou-se aos 15 de janeiro de 1737, em Prados-MG, com CAETANO DE CARVALHO DUARTE, filho de João de Carvalho e de Domingas Duarte. Catarina veio para o Brasil com 2 anos de idade, sendo assim confirmada a data aproximada de 1723 como a da vinda das Três Ilhoas.

3.4

JOSÉ GONÇALVES DA FONSECA, nascido em São João del Rei, Minas Gerais-Brasil, casou-se com Teresa Gomes da Rocha, natural de Barbacena-MG, filha de Manoel Gomes Batista e de Maria Gonçalves da Rocha.

2.2

JOSÉ NUNES, filho de Manoel Gonçalves e Maria Nunes, batizado aos 14 de setembro de 1689 e falecido aos 8 de agosto de 1711.

2.3

ANTONIO NUNES – “PILOTO”, batizado aos 12 de julho de 1692 e falecido aos 22 de julho de 1747, na Freguesia de Nossa Senhora das Angústias, onde casou-se aos 10 de outubro de 1717 com ANNA MARIA DA SILVEIRA, falecida aos 5 de dezembro de 1753, filha de PASCOAL SILVEIRA e de MARIA DA RESSURREIÇÃO, esta batizada aos 5 de abril de 1676, filha de MATHEUS LUÍS e de ANNA GARCIA, e irmã de DIOGO GARCIA, que casou-se com JÚLIA MARIA DA CARIDADE. Pascoal Silveira mandou sepultar seu sogro, MATHEUS LUÍS. Antonio e Anna Maria tiveram:

3.1

CATARINA MARIA EUSÉBIA, batizada aos 7 de maio de 1717, falecida aos 30 de janeiro de 1750, casou-se aos 9 de outubro de 1741 com o Piloto MANOEL CORRÊA DE FRAGA, filho de João de Fraga e de Felícia da Luz.

3.2

ANNA, batizada aos 20 de novembro de 1720 e falecida aos 25 de julho de 1724.

3.3

ANTONIO, batizado aos 11 de setembro de 1723.

3.4

ANTONIO, batizado aos 25 de agosto de 1725.

3.5

ANNA, nascida cerca de 1729 e falecida solteira, aos 10 de agosto de 1750.

3.6

ROSA ELISA, batizada aos 24 de março de 1730, casou-se aos 5 de janeiro de 1753 com Antonio Francisco de Castro, filho de Manoel Francisco de Castro e de Maria de Faria.

2.4

JÚLIA MARIA DA CARIDADE, nascida aos 8 de fevereiro de 1707 e batizada aos 12 do mesmo mês e ano. Casou-se aos 29 de junho de 1724 em São João del Rei – MG, com DIOGO GARCIA, batizado aos 13 de março de 1690, na Freguesia de Nossa das Angústias, filho de MATHEUS LUÍS e de ANNA GARCIA.

2.5

HELENA MARIA DE JESUS, nascida aos 15 de janeiro de 1710 e batizada aos 19 do mesmo mês e ano. Casou-se aos 3 de outubro de 1726 em Prados – MG, com JOÃO DE REZENDE COSTA, natural da Freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Vila do Porto, Ilha de Santa Maria (Açores), filho de de Rezende e de Ana da Costa.

1.2

CATARINA, filha de João Nunes e Madalena George, batizada aos 15 de janeiro de 1670, sem mais notícias.

1.3

MANOEL LOURENÇO- PILOTO, batizado no dia 1 de e 1672, casou-se aos 29 de agosto de 1697 com BARBARA DUARTE, falecida aos 2 de junho de 1704 com 30 anos e já viúva, filha de João Garcia – mareante e de Catarina Duarte. Teve que descobri:

2.1

LOURENÇO, nascido aos 6 e batizado aos 12 de agosto de 1699, tendo por padrinhos Manoel Rodrigues Duarte, filho de Diogo Rodrigues e de Barbara Duarte e Luzia de São Pedro, filha de Manoel Rodrigues e de Madalena George ( a avó paterna e seu 2º marido).

1.4

ANTONIO, último filho de João Nunes, foi batizado aos 4 de fevereiro de 1675, sem mais notícias.

Do 2º casamento com Manoel Rodrigues Furtado, teve Madalena George as 3 filhas seguintes:

1 – FRANCISCA, batizada aos 9 de março de 1679.

2 – LUZIA DE SÃO PEDRO, batizada aos 30 de junho de 1681, falecida aos 20 de outubro de 1703. Casou-se aos 23 de janeiro de 1701 com MANOEL FERNANDES LUÍS, filho de Luís Fernandes e de Aldonça Martins. Filha que descobri:

Antonia, nascida aos 18 e batizada aos 23 de outubro de 1701.

3 – FRANCISCA, batizada aos 26 de dezembro de 1683.

Incidência de apelidos de família no Rio de Janeiro e em Porto Alegre

Pércio Pinto
do INGERS (Instituto Genealógico do Rio Grande do Sul), e
CBG (Colégio Brasileiro de Genealogia)

Antroponímia é o estudo do nome das pessoas. O vocábulo foi cunhado em 1887 pelo filólogo português Leite de Vasconcelos, que dedicou um capítulo de suas ‘Lições de Filosofia Portuguesa’ ao: ‘Onomástico Antigo e Moderno’. Ambos os vocábulos foram criados a partir do grego: onomatos, ‘nome’, e anthropos, ‘homem’, mais onoma. Diz o mestre: “O ‘estudo dos nomes próprios em geral’ chama-se onomatologia. O dos nomes geográficos tem em particular o nome de toponímia. Podíamos dizer paralelamente, com relação aos nomes de pessoas e seres personificados, antroponímia.”

O nome, genericamente falando e dentro do conceito de antroponímia, refere todos os vocábulos que compõem a denominação pela qual nos identificamos como pessoas, como estabelece o prof. Franz August Gernot Lippert em: ‘O Nome das Pessoas Físicas no Direito Brasileiro’. Coloquialmente chamamos nome aquele ou aqueles vocábulos que identificam o indivíduo: João ou João Antonio. Da mesma forma coloquial, chamamos sobrenome os apelidos das famílias: Silva, Santos, Oliveira, Souza, Pereira.

Os estudiosos da legislação brasileira mencionam, contudo, que esta não é uníssona nem rigorosa na conceituação dos vocábulos que compõem o nome. A expressão sobrenome, tão comum no Brasil, sequer existe na legislação; existe de fato.

Os franceses distinguem prenomes e nomes, utilizando os primeiros na identificação do indivíduo, e os segundos na identificação das famílias a que ele pertence, como ensina Albert Dauzat.

Estudiosos portugueses e brasileiros admitem apenas as designações clássicas: nomes, para os indivíduos, e apelidos, para as famílias. De um e de outro difere a alcunha, codinome que alguns indivíduos conquistam, ou sofrem.

Os apelidos de família, ou de clã, remontam a mais de cinco mil anos, como se pode ver na Bíblia, Números, 1, 20 a 50, quando o Senhor ordenou a Moisés, no Sinai, que fizesse o recenseamento dos filhos de Israel após a saída do Egito. Foram contados 603.550 homens de mais de vinte anos e toda esta gente, mais a família de cada um, foi dividida em doze tribos, mais a tribo de Levi que ficou encarregada do sacerdócio. Do nome de cada um dos patriarcas originou-se o nome da tribo ou, modernamente, seu apelido. Da tribo de Judá, a Bíblia dá minuciosa genealogia até Jesus.

Como os nomes individuais se sucediam, os judeus adotaram o apelido patronímico: Jacó filho de Abraão, que se distinguia de outros Jacós.

O patronímico foi o primeiro apelido de família; mais tarde foi usado o toponímico, que se refere ao lugar de nascimento ou vivência; e finalmente adotou-se, em certos casos, a alcunha.

O patronímico se caracteriza pelo uso da preposição, prefixos ou sufixos. Por exemplo: judaica, Bar Abas, filho de Abas; gaélica, Ab; árabe: Ibn; são preposições. MacNamara, escocês; O’Henry, irlandês; FitzGerald, inglês; são prefixos. São sufixos: o son, em Johnson, inglês; sen em Andersen, escandinavo; Álvarez, espanhol; Álvares, português. Todos significam: filho de.

São toponímicos portugueses: de Souza, da terra de Souza; de Maia, da terra de Maia; Chaves, da cidade de Chaves; Porto, da cidade do Porto, etc. Os toponímicos formam-se em geral com a preposição de, que não implica origem nobre como muitos entendem.

Finalmente os apelidos de família decorrem de alcunha: Calvo, Velho, Alegria, Negrão.

Essas introdução permitirá que o leitor possa identificar seu apelido de família com a provável origem.

O acadêmico R. Magalhães Jr. publicou em 1974 o livro ‘Como você se chama?’, dando origem a outros estudos de diferentes autores. Como curiosidade publicamos os 28 apelidos mais populares no Rio de Janeiro, por ele levantados a partir do guia telefônico, e 106 apelidos mais comuns em Porto Alegre, da mesma fonte, da lista deste ano (1979). Referem-se naturalmente às classes média e alta apenas, mas tem seguramente boa representatividade.

Em ambas as listas o leitor encontrará apelidos formados das três maneiras que indicamos (a preposição fica implícita em certos apelidos como: da Silva, de Souza, de Oliveira, da Costa, de Barros, e outros).

O exame das duas listas permite certas conclusões, como, por exemplo:

1. No Rio, como em Porto Alegre, os apelidos portugueses predominantes são precisamente os mais antigos registrados nos estudos genealógicos. A coincidência dos cinco primeiros é impressionante.

2. Alguns apelidos tradicionais portugueses comuns no Rio, como Araújo, Barbosa, Castro, Azevedo, Barros e Cardoso, tem menor incidência na lista de Porto Alegre. São famílias reinóis que, de preferência, se radicaram entre Salvador e Rio de Janeiro.

3. Alguns apelidos mais frequentes em Porto Alegre sequer constam da lista do Rio. É que para cá vieram de preferência os açorianos: Silveira, Machado, Rosa, Morais, Soares, Lopes, Gonçalves e Nunes.

4. Na lista de Porto Alegre, quatro grandes famílias alemãs chegadas em 1824 figuram com certa expressão. Nenhum apelido não português consta da lista do Rio. Os alemães são Schmidt (ferreiro), Müller (moleiro), Becker (padeiro) e Schneider (alfaiate). As famílias Bittencourt, Brum e Goulart, de origem francesa ou holandesa, chegaram a Porto Alegre via Açores. Note-se a ausência de grandes grupos familiares italianos. Os alemães chegaram em 1824, a seis ou sete gerações e os italianos a partir de 1875, a três ou quatro gerações.

5. Contrariamente à crença nacional, os espanhóis tiveram pequena influência na composição demográfica de Porto Alegre. Talvez um que outro ramo dos Garcia e dos Ávila.

6. Apesar da preeminência econômica e cultural da comunidade israelita, nenhum grupo familiar se salienta. Os israelitas gaúchos procedem de ambos os grupos mais importantes, asquenásis da Europa Central, na grande maioria, e alguns poucos sefarditas, entre os quais se arrola uma tradicional família Rodrigues. Alguns autores supõem ter havido uma grande colônia israelita nos fins do século XVII e início do XVIII. Se houve, foi absorvida sem deixar traços culturais.

Rio de Janeiro-1974

Silva
Santos 
Oliveira 
Souza 
Pereira 
Costa
Carvalho
Almeida 
Ferreira 
Ribeiro 
Rodrigues 
Gomes 
Lima 
Martins 
Rocha 
Alves 
Araújo 
Pinto 
Barbosa 
Castro 
Fernandes 
Melo 
Azevedo 
Barros 
Cardoso 
Correia 
Cunha 
Dias 
11.520
  7.200
  6.480
  6.480
  5.280
  5.040
  4.600
 4.080
  4.080
  3.360
  2.800
  2.800
  2.800
  2.800
 2.400
  2.400 
  2.400
  2.400
  2.400
  2.400
  2.400
 2.160
  1.920
  1.920
  1.920
  1.920
  1.920
 1.920
Porto Alegre-1979

Silva 
Santos 
Oliveira 
Souza 
Pereira 
Silveira 
Costa 
Machado 
Rodrigues 
Ferreira 
Lima 
Martins 
Rosa 
Ribeiro 
Carvalho 
Gomes 
Morais 
Rocha 
Soares 
Lopes 
Almeida 
Cunha 
Dias 
Gonçalves
Nunes 
Pinto 
Alves 
Correia 
Fernandes 
Melo 
Marques 
Azevedo 
Freitas 
Schmidt 
Teixeira 
Vieira 
Araújo 
Barbosa 
Castro 
Moreira 
Cardoso 
Borges 
Duarte 
Pires 
Garcia 
Ramos 
Andrade 
Fonseca 
Vargas 
Barcelos 
Coelho 
Dorneles 
Flores 
Leite 
Campos 
Medeiros 
Müller
Amaral 
Becker 
Bittencourt
Schneider 
Dutra 
Guimarães 
Porto 
Viana 
Abreu 
Aguiar 
Albuquerque 
Antunes 
Ávila 
Azambuja
Barros 
Braga 
Bueno 
Camargo 
Cruz 
Faria 
Fagundes 
Fiqueiredo 
Fontoura 
Fraga 
Leal 
Lemos 
Matos 
Mendes 
Nascimento 
Neves 
Pacheco 
Pinheiro 
Xavier 
Borba 
Brasil 
Brito 
Brum 
Chaves 
Goulart 
Jardim 
Luz 
Meneses 
Miranda 
Monteiro 
Neto 
Peres 
Santana 
Tavares 
Trindade 
5.250
2.835
2.625
1.785
1.365
1.312
1.260
1.207
1.207
   945
   945
   945
   945
   945
   735
   735
   735
   735
   735
   682
   668
   630
   630
   630
   630
   630
   577
   577
   577
   577
   550
   525
   525
   525
   525
   525
   472
   472 
   472
   430
   427
   420
   420
   420
   420
   420
   367
   367 
   320
   315
   315
   315
   315
   315
   300
   300
   270
   262
   262
   262
   240
   260
   230 
   220
   220
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   210
   200
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   200

Manual de Paleografia Portuguesa

Instituto Genealógico do Rio Grande do Sul

Paleografia Portuguesa

A Paleografia pode ser definida tanto como escritos antigos, ou o estudo de escritos antigos. Qualquer pessoa empenhada em pesquisas genealógicas de registros portugueses antigos, necessitará de saber ler, entender e transcrever tais registros.

A capacidade de ler e escrever paleografia exige duas habilidades importantes: (1) saber transpor os caracteres do documento original para caracteres com os quais estamos mais familiarizados, e (2) saber identificar as abreviações usadas no texto do registro.

Além dessas duas habilidades mais importantes devemos também ser capazes de interpretar os sinais de pontuação usados, separar ou unir palavras que não foram separadas ou unidas no texto original, ler e transcrever números, identificar erros no texto original e, finalmente, obter, através de tudo isso, o significado do texto.

É claro que cada pessoa tem um estilo ou método de escrever, o qual é único. No entanto, tem sido possível, no correr da história, reunir em grupos ou estilos definidos, muitos desses métodos individuais de escrita. Tais estilos podem variar de época a época, de país a país, e até mesmo entre tipos diferentes de documentos. Entretanto, uma vez que se tenha aprendido as características especiais de qualquer estilo, deveríamos ser capazes de ler qualquer documento escrito naquele estilo, usando para isso, de um esforço apenas ligeiramente maior do requerido para ler os atuais estilos de caligrafia. Naturalmente, teríamos que lidar com variações daquele estilo, má caligrafia, tinta desbotada etc. Mas o segredo de poder ler qualquer estilo determinado de caligrafia é simplesmente ser capaz de reconhecer as características daquele estilo.

Os estilos típicos da Ibéria e Ibero-América se originaram do alfabeto romano, usado desde pouco tempo antes época de Cristo. No início, tal alfabeto consistia de 21 letras: A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V e X. As letras Y e Z foram adicionadas aproximadamente em 50 A.C. Desde aquele tempo tem havido muitos estilos diferentes, ou modificações de estilos que foram adotados, rejeitados, modificados e remodificados. Esses estilos foram agrupados e classificados e incluem, entre outros, a caligrafia Carolínea, resultante de uma reforma introduzida durante o reinado de Carlos Magno, a caligrafia Gótica, a caligrafia Cortesa, a caligrafia Secretária e a caligrafia Secretária Encadeada.

Devemos chamar a atenção para o fato de que como em muitas outras disciplinas, a categorização pode ser perigosa. é conveniente que sejamos capazes de classificar esses vários estilos em grupos e dar-lhes nomes e títulos. Entretanto, logo que se cria uma categoria ou um grupo, automaticamente surgem dúvidas quanto a se um estilo pertence a este ou àquele grupo, ou se está em algum lugar no meio. Como Eduardo Nunes explica: “A classificação das letras é um rito sagrado, mas ao qual, atualmente todos os paleógrafos desejariam poder furtar-se … ; porque, tanto a terminologia (base da classificação), como a própria metodologia (postulado da terminologia) se encontram em plena crise de refundição. ” (Nunes, Eduardo, álbum de Paleografia Portuguesa, Vol. 1, Lisboa, Portugal: Instituto de Alta Cultura, Universidade de Lisboa, 1969, p. 11.) As categorias, no entanto, são convenientes e por essa razão são e continuarão a ser usadas.

Uma vez que a maioria dos registros de valor genealógico na Ibéria e Ibero-América, não foram iniciados até o princípio do século XVI, somente os estilos predominantes usados desde aquele tempo nos interessam. Nesses estão incluídas a caligrafia Secretária, a caligrafia Secretária Encadeada e a Itálica, as quais são brevemente descritas nas passagens que se seguem.

A Escrita Processual e Encadeada

“A escrita processual é eminentemente cursiva, permitindo dessa forma aos escreventes, grande liberdade no traçado. Como consequência, surgiu a degeneração da letra, sendo difícil encontrar, em toda a paleografia latina e suas aplicações nas línguas vernáculas, uma escrita com tantas formas divergentes como o é a processual. À primeira vista, os variados manuscritos examinados por pessoas que não estão a par do traçado da escrita processual, podem levar à conclusão de que se trata de vários tipos de escritas. O motivo para tal, é que os tipos de caligrafia processual oscilam entre os parecidos à cortesa, que ainda mantém algumas das formas anglicanas herdadas da gótica cursiva – da qual se originou – até os extremamente redondos da caligrafia encadeada, sendo esta a última degeneração do ciclo – cortesa – processual e encadeada. ” (Aurélio Tanodi – Interpretação Paleográfica de Nomes Indígenas, Córdoba, Argentina: Editor, 1965, p. 38.)

A Escrita Itálica ou Bastarda

“O ensino sistemático constitui uma das principais características da escrita bastarda. Os calígrafos do século XVII e anos posteriores, seguiam a escrita itálica ou bastarda, porém, com pequenas modificações. Os escreventes tiveram então exemplos calígrafos aos quais podiam recorrer e o ensino dispunha de bons manuais.

Apesar do ensino sistemático e dos exemplos caligráficos, nem todos aderiram extremamente à formação caligráfica. Havia pessoas que aprendiam a escrever sem haver tomado cursos especiais, isto é, sem passar por um aprendizado sistemático. Outras, embora o fizessem, degeneravam sua escrita pessoal, afastando-se dos preceitos caligráficos, devido a ser a caligrafia bastarda um tipo de escrita cursiva usada para uma grande variedade de manuscritos. Dessa forma, encontramos na mesma região e época, manuscritos de diversos aspectos – desde os altamente caligráficos até os extremamente descuidados. Isso dependia de muitos fatores: a perícia gráfica do aprendizado, a intenção com que se confeccionava o manuscrito, a importância do mesmo, o aspecto externo e sua composição interna etc…

Em geral, a escrita bastarda é muito mais clara e legível do que a processual ou a encadeada; não obstante, existem textos que apresentam sérias dificuldades e requerem estudo especial.” (Aurélio Tanodi, idem, p. 40.)

Introdução

Cada pessoa tem um método único de escrita. Esses vários métodos podem ser agrupados em estilos. Estilos variam de época para época, de país para país, e podem variar até mesmo de um tipo de documento para outro. Os estilos utilizados em séculos atrás podem variar tanto daqueles que usamos atualmente que se torna difícil lê-los. O estudo de estilos de escrita e a ciência da interpretação e da compreensão de documentos antigos é chamado de paleografia.

Dois grandes desafios envolvidos na leitura e na transcrição de caligrafia antiga são:

1) ser capaz de transcrever as letras e os números do documento original para um estilo com o qual você esteja mais familiarizado;

2) ser capaz de identificar as abreviaturas usadas no texto do registro.

Além desses dois desafios você deve ser capaz de (l) interpretar os sinais de pontuação usados; (2) separar ou unir palavras que não estejam separadas ou unidas no texto original; (3) ler e transcrever números; (4) identificar palavras que são escritas de maneira diferente da que seriam em português moderno; (5) identificar erros no texto original, e (6) determinar o significado de termos não familiares ou arcaicos.

Cada um desses desafios será abordado nesta apostila.

A intenção desta apostila é a de servir como introdução à paleografia portuguesa. Estude o material por completo e ele o capacitará a começar a pesquisa genealógica; de outra forma, será difícil ler os registros. Se você tiver interesse ou necessidade de tornar-se mais experiente na sua habilidade em ler registros antigos, há uma bibliografia anotada no final desta apostila. Você deve usá-la para continuar seus estudos. Há, entretanto, apenas uma maneira de tornar-se perito em ler e transcrever documentos portugueses antigos, e é através da prática. Estão incluídos nesta apostila textos para praticar. Use-os, e quando você os tiver dominado, pratique usando outros textos originais. Se você persistir, logo será capaz de ler qualquer documento português antigo.

Notas Históricas

A Língua Portuguesa é uma Língua Latina

Os estilos de escrita encontrados em Portugal e no Brasil têm sua origem no alfabeto romano. Os romanos ocuparam a península ibérica (Espanha e Portugal) aproximadamente do século III A.C. até a queda do Império Romano o século V DC. É claro que outros grupos, além dos romanos, contribuíram para a formação da língua portuguesa. Originalmente a península ibérica foi habitada por um grupo de pessoas conhecidas como Celta-Ibéricos. Esse povo foi conquistado pelos romanos. Depois dos romanos vieram as tribos germânicas e depois os mouros, os quais deixaram evidência de seus costumes, não apenas na linguagem, mas também na cultura dos Ibéricos. Todavia, a despeito dessa influência, a língua portuguesa permaneceu sendo uma língua latina, e é principalmente aos romanos que ela deve sua origem.

Existem Poucos Registros de Valor Genealógico Datados de Antes de 1500

Lá pelo século XII os portugueses declararam seu país reino e lá pelo século XIII eles expulsaram os mouros e estenderam suas fronteiras até sua atual localização.

Registros têm sido conservados desde a formação do reino de Portugal. Entretanto, umas poucas evidências restaram daquele remoto período. Foi a partir do século XVI que os padres paroquiais da igreja católica foram solicitados a começar a registrar batismos, casamentos e falecimentos. Esses decididamente são os registros genealógicos mais valiosos em Portugal e no Brasil. Durante o século XVI outros tipos de registros de valor genealógico também começaram a proliferar. Por essa razão esa apostila não só tratará dos estilos de escrita usados antes de 1500, como também dos estilos pós-1500 encontrados em registros de valor genealógico. Para uma descrição completa deles consulte “Registros de Valor Genealógico em Portugal” e “Registros de Valor Genealógico no Brasil” ambos publicados pelo Departamento Genealógico.

Tradicionalmente, a Escrita Foi Classificada em Estilos

Desde que a paleografia é considerada uma ciência, métodos individuais de escrita têm sido agrupados em estilos. Algumas vezes é conveniente fazer isso e dar nomes a esses estilos. Eles incluem, entre outros, a caligrafia carolínea, a gótica, a cortesa, a secretária, a secretária encadeada e a itálica. Se você está para se tornar um perito na leitura de registros de todos os períodos, será necessário um conhecimento de cada um desses estilos. Todavia, assim como com muitas disciplinas, a categorização pode ser perigosa. Automaticamente surgem perguntas do tipo “se certos estilos pertencem a um grupo ou a outro ou a algum entre eles”.

Como Eduardo Nunes explica: “A classificação das letras é um rito sagrado, mas do qual, atualmente, todos os paleógrafos desejariam poder furtar-se; … porque, tanto a terminologia (base da classificação) como a própria metodologia (postulado da terminologia) se encontram em plena crise da refundição.” (Nunes, Eduardo – álbum de Paleografia Portuguesa, Vol. 1, Lisboa, Portugal: Instituto de Alta Cultura, Universidade de Lisboa, 1969, p. 11.)

Por ser esse o caso, e como a maioria dos registros de valor genealógico no Brasil e em Portugal surgem apenas a partir de 1550 (quando um ou dois estilos predominaram sobre os outros), esta apostila não procurará identificar o estilo usado em cada documento. Ao invés disso, você estudará as técnicas e os métodos usados necessários para se tornar familiarizado com qualquer estilo. Depois, utilizando-se dessas técnicas, poderá adquirir as habilidades básicas necessárias para ler e transcrever a maioria dos registros usados na pesquisa genealógica portuguesa.

O Alfabeto

O Alfabeto Permaneceu Virtualmente Inalterado

Originalmente o alfabeto romano era constituído de 21 letras: A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V e X. Aproximadamente em 50 AC foram adicionadas as letras Y e Z. Desde aquela época tem havido muitas mudanças nas línguas latinas e na maneira de escrevê-las, mas o alfabeto, com poucas exceções, permaneceu inalterado. Por essa razão, uma vez que você tenha aprendido as características únicas de qualquer estilo de escrita e supondo que você esteja familiarizado com o vocabulário e com a gramática usados na época da escrita, você deverá ser capaz de ler qualquer documento escrito naquele estilo, com um esforço levemente maior do que levaria para ler os estilos de escrita de hoje.

É claro que você ainda assim terá que lidar com má grafia, tinta borrada e falta de informação. A chave, porém, é ser capaz de reconhecer as características do estilo usadas pela pessoa que escreveu o documento.

Quase todos os exemplos seguintes de letras foram tirados diretamente dos exemplos de textos usados nesta apostila. Houve, é claro, muitos outros estilos pessoais usados por milhares de escribas através do curso de quatro ou cinco séculos. Aprender todos levaria uma vida inteira. Esses exemplos devem ajudar a dar uma idéia de algumas das muitas variações. Estude-os cuidadosamente e recorra a esta seção frequentemente enquanto você pratica o restante da apostila. À medida que você continuar seu estudo de paleografia ou quando você começar sua pesquisa em registros originais, será bom adicionar a essa lista amostras de letras que provaram ser especialmente difíceis para você. Dessa maneira você estará compilando seu estoque particular de letras, ao qual desejará recorrer.

Você também poderá vir a desejar praticar a escrita de algumas das letras que são difíceis para você transcrever. Isso pode ser feito numa folha de papel separada. Essa também é uma boa idéia quando se encontra uma combinação de letras que lhe seja nova ou estranha. Escrevendo as letras você entenderá melhor o estilo do escriba e se recordará dele por mais tempo.

A – H
Clique na imagem para ampliar!

H – O
Clique na imagem para ampliar!

O – Z
Clique na imagem para ampliar!

Heráldica

Texto publicado em 17/02/2001 por
Sandra Wienke Tavares e equipe da Heráldica Pelotense.

Introdução
O seu nome e a Heráldica

Na Europa da Idade Média, no calor das batalhas, viver ou morrer dependia de saber distinguir o amigo do inimigo. Essa era uma tarefa difícil, com os cavaleiros cobertos por armaduras.

Assim, cada combatente costumava decorar seu escudo e sua túnica com um distintivo único, que o diferenciava dos demais. Surge então a heráldica, nome proveniente do inglês “heralds”, que eram os homens encarregados pelos reis para desenhar os brasões.

Arte que nasceu para atender a nobres e cavaleiros, expandiu-se com o surgimento dos reinos e cidades, onde cidadãos importantes recebiam a sua cota de armas.

Praticamente todas as famílias de origem européia tem o seu brasão registrado nos antigos livros de armas.

Este trabalho de pesquisa é oferecido pela Heráldica Pelotense, trazendo ao portador do brasão um sentimento de identidade e contexto na história.

Capítulo I
A concessão das Armas

Brasão e armas são termos heráldicos de igual valor e significam o conjunto de insígnias hereditárias, compostas de figuras e atributos determinados, concedidos por príncipes e reis em recompensa por serviços relevantes. Podem ainda indicar marca ou distintivo de linhagem premiada.

A idéia de usar símbolos é muito primitiva e na sua origem foi hieróglifa. Os primeiros que se tem conhecimento eram religiosos e indicativos de profissão, geralmente gravados no túmulo.

A origem do uso de símbolos heráldicos remonta à Idade Média, quando das Cruzadas. Para distinguirem-se dos outros exércitos e até mesmo para facilitar a contagem dos mortos em batalha, os escudos eram pintados de certa cor ou com determinado símbolo. Ao retornarem dos confrontos ou de outro país, muitas vezes estes escudos eram enriquecidos com novos símbolos e cores.

Os símbolos como sinais de honra e nobreza, que passavam de pais para filhos, começaram a ser empregados nas armarias no final do século X, tendo sido regularizado o seu uso e aperfeiçoadas suas regras nos três séculos seguintes. Mas as regras precisas da confecção dos brasões e os termos próprios da heráldica somente foram estabelecidas ao final do século XV. Seu apogeu na Idade Média deve-se ao apogeu da cavalaria, do romantismo na arte e da exaltação da família e da nobreza.

Posteriormente os símbolos e cores foram usados em torneios da cavalaria, evoluindo para o conjunto de símbolos e cores concedidos por autoridades reais como recompensa por serviços prestados ou por feitos heróicos. Os símbolos podiam ser transmitidos aos filhos e herdeiros, estabelecendo-se assim as linhagens. Com isto, nesta etapa da história da heráldica formou-se um corpo de nobreza com escudo de armas ou brasões, que raras vezes representavam feitos de guerras ou conquistas, mas sim o procedimento de antepassados mais ou menos diretos e algumas vezes indiretíssimos.

Quase ao mesmo tempo foram criadas as armas de ordens militares, religiosas, da classe política e judicial. Ao final das concessões, os brasões eram quase que exclusivamente outorgados a ocupantes de cargos políticos, pertencentes ao pequeno círculo da corte.

No Brasil a heráldica nasceu durante o Império Brasileiro e o uso dos títulos extinguia-se com a morte do titular. Os brasões eram concedidos a grandes fazendeiros, políticos e outros que, de uma forma ou de outra, prestavam apoio ou préstimos à Coroa.

Capítulo II
Os Metais e os Esmaltes

Na representação dos brasões de armas são utilizados apenas dois tipos de metais, o ouro e a prata, e cinco tipos de esmaltes, a saber: vermelho, azul, verde, púrpura e negro, conforme mostrado na figura abaixo. Os desenhos que representam o corpo humano ou suas partes podem ser usados na sua cor natural, também conhecida como “carnação”. O termo esmalte tem origem nas palavras “hasmal” (hebraico) e “esmaltium” (latim) que referem-se ao preparo de um verniz vítreo com grande aderência, que era usado para proteger os metais da oxidação.

Metais e esmaltes heráldicos
Metais e esmlates utilizados na heráldica.

O ouro pode receber outros nomes, em determinadas circustâncias: nos escudos dos reis passa a ser chamado de sol; nos brasões da nobreza em geral é chamado de topázio. Aqueles que tem este metal no seu escudo estavam obrigados, na idade média, a fazer bem aos pobres e a defender seus senhores, lutando por eles até o final das suas forças.

O metal prata, quando presente nas armas dos soberanos, recebe o nome de lua. A prata está associada com a inocência e pureza, e aqueles que a tinham em seu brasão estavam obrigados a defender as donzelas e a amparar os órfãos.

O vermelho é conhecido também como goles ou gules, recebendo este nome nas armarias da nobreza geral. Quando presente nos escudos dos príncipes, passa a ser chamado de marte, enquanto nos brasões dos nobres titulados é chamado de rubi. Este esmalte é associado com o valor e a intrepidez, e obrigava os seus portadores a socorrer os injustiçados e oprimidos.

O azul chama-se júpiter quando aplicado às armas reais, safira nas armas dos nobres titulados ou simplesmente azul nos escudos da nobreza em geral. Este esmalte significa nobreza, majestade, serenidade, e os seus portadores estavam obrigados a fomentar a agricultura e também a socorrer os servidores despedidos injustamente ou que se encontrassem sem remuneração.

O esmalte verde é conhecido na heráldica como sinople, quando aplicado às armas da nobreza em geral. Para os príncipes e reis passa a ser chamado de vênus, enquanto para a nobreza titulada é referenciado como esmeralda. Um brasão que continha este esmalte obrigava o seu portador a socorrer os lavradores em geral, assim como aos órfãos e pobres oprimidos.

A púrpura significa dignidade, poder e soberania, e aqueles que a usavam em sua cota de armas deveriam proteger os eclesiásticos e religiosos.

Finalmente, o esmalte preto é também chamado de sable nas armarias em geral, mudando o seu nome para saturno nas armas reais e para diamante nas armas da nobreza titulada. O sable está associado a ciência, a modéstia e a aflição, e aqueles que apresentavam este esmalte em seus brasões estavam obrigados a socorrer as viúvas, os órfãos e todas as pessoas dedicadas às letras.

Capítulo III
Os Heraldos e os Reis de Armas

O termo heráldica deriva dos originais heraldo ou arauto. A palavra heraldo vem, segundo alguns autores, do alemão antigo her, heer ou hold, que quer dizer devotado, e segundo outros vem da raiz har da palavra alemã haren, que significa gritar ou chamar.

Os heraldos tinham a missão de anunciar publicamente os nomes dos concorrentes em torneios, levar declarações de guerra ou propostas de paz, contar e anunciar o número de mortos em batalhas.

Na idade média os heraldos eram oficiais de guerra e cerimônias, conservando-se esta atividade até o tempo de Carlos Magno. Pela sua importância social e política, o termo heraldo foi substituído pela designação Rei de Armas, e estes eram sempre escolhidos entre os heraldos mais antigos.

As incumbências dos Reis de Armas eram de zelar por brasões e títulos de nobreza, enfrentando usurpadores de títulos e armarias, publicar datas de celebração das festas e torneios entre as Ordens de Cavalaria, proclamar casamentos, dirigir solenidades e determinar colocação de insígnias e legendas nos túmulos dos príncipes.

O Rei Carlos VIII foi quem criou o ofício de Mestre de Armas, figura que tinha função oficial de regulamentar, no seu reino, o uso de brasões. Nas pompas fúnebres os Mestres de Armas trajavam-se com grande luxo, levando sempre em suas mãos um bastão de nogueira que simbolizava a importância do seu cargo.

Capítulo IV
Principais Figuras Heráldicas

Parte A – O Elmo

Na heráldica, o elmo ou casco do brasão pode apresentar-se em diversas posições e formatos. De acordo com a sua posição pode-se inferir algum informação sobre o seu portador. Por exemplo, um elmo perfilado para o lado esquerdo significa bastardia.

O elmo dos imperadores e reis apresenta-se de frente, com a viseira aberta, sem grades ou então com onze grades no sentido vertical (figura abaixo). Este formato é muito comum na heráldica francesa. Nesta classe de elmos, os mesmo devem ser representados no metal (cor) ouro. Os príncipes herdeiros, descendentes de imperadores ou reis, apresentam seus elmos semi-abertos e no metal prata. Os altos dignatários, como os duques, usam o elmo também em prata e com nove grades. Os elmos dos marqueses são muito semelhantes aos dos duques, exceto pelo número de grades, totalizando sete. Os condes e viscondes tem o elmo representado em prata bronzeada, sendo que na França os elmos desta categoria são de aço, perfilados, e apresentam apenas três grades.

Elmo Real
Representação de um elmo de rei ou imperador.

Na heráldica portuguesa o elmo é geralmente de prata, guarnecido de ouro e com o estofo da mesma cor do campo. Se este for de ouro ou de prata o estofo deve ser amarelo ou branco, respectivamente.

Quanto à situação do elmo sobre o escudo é interessante observar que, se o indivíduo for fidalgo há pelo menos quatro gerações, o elmo deve ser representado olhando para a direita e com a viseira levantada (aberta). Para os nobres até três gerações o elmo também deve ser representado olhando para a direita, mas a viseira deve ser representada fechada.

Parte B – O Leão

O leão é uma das figuras mais empregadas na heráldica, sendo encontrado nos brasões de inúmeras famílias e nas armas de diversos países.

Em medalhística podem ser encontradas ordens tendo o leão como tema e motivação: Ordem do Leão de Zaehring, de 1812; Ordem do Leão de Ouro, organizada em 1079 por Frederico II; Ordem do Leão e do Sol, da Pérsia, fundada em 1808; Ordem do Leão Neerlandês, de 1815, organizada por Guilherme I, entre outras.

As diversas posições com que se apresenta o leão são mostradas na figura seguinte.


Algumas posições usuais na representação heráldica do leão.

No campo do brasão podem aparecer um ou mais leões, sendo que o número total não pode ser superior a dezesseis.

Nos brasões infamados, assim classificados pela prática condenável do seu dono, caso exista a figura de um leão, este é representado desprovido de cauda e dentes.

Às vezes o leão aparece composto com outros animais, como a águia. Neste caso, passa a chamar-se Grifo. Esta peça, com a parte superior de águia e corpo de leão, é encontrada nos brasões de muitas famílias, como por exemplo dos Bachasson, Dauyat e Doriac.


Brasão de armas destacando-se a figura do grifo.

A presença do leão no brasão de armas insinua força, grandeza, coragem, nobreza de condição. Também caracteriza domínio e proteção, condições que deve ter um superior sobre aqueles que domina.

Nos brasões portugueses e espanhóis o leão representa, em muitos casos, aliança com a casa real de Leão (Espanha) ou concessão por ela outorgada.

Parte C – Outros Animais Quadrúpedes

O leopardo apresenta-se nos brasões da maneira chamada “passante”, com a pata dianteira erguida. A pantera também é representada passante, o tigre correndo, o urso pode ser rompante (em posição de combate), passante ou levantado. O lobo é representado andante, com a pata dianteira levantada. É muito frequente na armaria vasco-navarra, já que é insígnia da batalha de Arnigorriaga.

O cavalo é representado marchando, o touro e a vaca parados ou andantes, e o javali andante e de perfil. O coelho e a lebre podem aparecer passantes, correndo, deitados ou como presa.


Alguns animais quadrúpedes utilizados na heráldica.

Parte D – O Castelo

Os castelos tiveram uma importância muito grande nos tempos medievais, pois eram poderosos baluartes de defesa e residência de imperadores e reis. No seu interior reuniam-se os exércitos, camponeses e vassalos, além dos rebanhos e toda produção da terra, que ficava a salvo da cobiça dos inimigos. Esses castelos tinham meios próprios de subsistência, visto que muitas vezes eram assediados e cercados por longo tempo.

A figura do castelo, por tais condições e por seu simbolismo, é muito empregada na heráldica, obedecendo a determinados critérios para seu desenho. Uma regra geral, nem sempre observada na prática, estabelece a composição entre metais e esmaltes: se o castelo for desenhado com um esmalte (cor), as suas portas devem ser de metal; quando o castelo é desenhado em ouro, as aberturas (portas e janelas) deverão ser representadas em vermelho; se o castelo for de prata, as aberturas devem ser representadas em preto.

O castelo não deve ser confundido com a torre. O seu desenho deve apresentar-se rigorosamente em um só bloco, com uma porta e duas janelas, o todo sobreposto por três torres, geralmente com a do meio maior que as das laterais.

A presença do castelo em um brasão de armas significa que o seu portador participou com destaque em tomadas de assalto, ou despojos conquistados. Quando representado de portas abertas indica sucesso na defesa ou tomada.


Alguns exemplos de castelo em brasões de armas.

Tanto nos brasões portugueses quanto nos espanhóis o castelo representa, muitas vezes, aliança com a casa real de Castela. Nos brasões portugueses concedidos na segunda dinastia, os castelos são alusivos a feitos de armas praticados no ataque ou defesa de praças de guerra do norte da África e outras conquistas. Os castelos sobre ondas representam feitos ligados a praças marítimas.

Finalmente, se o castelo for representado em prata sobre um campo de azul, pode-se afirmar que o seu possuidor era pessoa de grande virtude.

Parte E – A Torre

A torre tem seu desenho próprio, não devendo ser confundida com um castelo. A palavra provém do latim “turre”, é uma peça que se apresenta isolada e, conforme o seu desenho, tem sua significação. A torre é parte de destaque do castelo e geralmente é representada com uma porta e duas janelas. A torre mais alta ou de maior proeminência do castelo é chamada de torre de homenagem; quando aparece com três torres sobrepostas se diz donjonada; quando podem ser notadas as janelas, esclarecida; quando aparece o teto, coberta; quando tem a porta com grade e pontas na parte inferior, é gradeada; quando a torre vem com chamas nas janelas e sobre as ameias ou seteiras se diz ardente. A torre apresenta o seu corpo na forma arredondada. Já o torreão constitui uma derivação da torre original, pois a forma do seu corpo é quadrada ou retangular, com uma porta e quatro ameias.


A torre, o torreão e o torreão ardente.

Parte F – A Flor-de-lis

Na heráldica a figura da flor-de-lis tem muita importância, não só porque simboliza e fixa características ligadas à família, pessoas, locais, como por ser uma peça constantemente encontrada nos brasões franceses, isto por ter sido este o símbolo da sua monarquia.

A flor-de-lis é símbolo de poder e soberania, assim como de pureza de corpo e alma, candura e felicidade.

A origem do símbolo é muito controvertida e o que se sabe é que seu surgimento não data de pouco tempo. Sabe-se que foi usada nas armas da França em 496, na vitória de Tolbiacum (Zulpich), onde os francos de Clodoveu, derrotaram os alemães e coroaram-se de lírios. Seu desenho era colocado no manto de reis já na época pré-cruzada, na indumentária de luxo dos reis de armas, nos pavilhões, nas bandeiras e, ainda hoje, em vários brasões de municípios franceses.

Garcia IV, rei de Navarra, que viveu pelo ano de 1048, passou a adotar o desenho como símbolo de seu reinado, após ter visto uma imagem de Nossa Senhora desenhada no fundo de um lírio e logo após ter se curado de uma grave enfermidade.

No ano de 1125, a bandeira da França apresentava o seu campo semeado de flores-de-lis, o mesmo acontecendo com o seu brasão de armas até o reinado de Carlos V (1364), quando estas passaram a ser apenas em número de três. Este rei adotou oficialmente o símbolo como emblema, para honrar a Santíssima Trindade.

Outros historiadores relatam que antes disso o símbolo começou a ser utilizado no reinado de Luiz VII, o Jovem (1147), e como emblema da cidade de Florença. Além disto, aparece em numerosos brasões desde o século XII. Quanto a esse rei, foi ele o primeiro dos reis da França a servir-se desse desenho para selar suas cartas patentes, principalmente devido à alusão ao seu nome Luiz, que então se escrevia “Loys”. Os reis Felipe Augusto e S. Luiz, conservaram o lis como atributo real, o que seus descendentes perpetuaram.

Alguns heraldistas afirmam que a flor-de-lis teve sua origem na flor-de-lótus do Egito, outros que sua origem provem da alabarda ou lírio, um ferro de três pontas que se colocava, fincados, nos fossos ou covas para espetar quem neles caísse e também da flor do lírio ou da íris cuja semelhança é encontrada quando as analisamos de perfil. Ainda outra possível origem é aventada, a que seja uma cópia do desenho estampado em antigas moedas assírias e muçulmanas.

A flor-de-lis deve ser representada por desenhos padronizados, jamais feitos livremente. São brasonados ao natural, mas podem ter cor de um esmalte ou de um metal.


A flor-de-lis em várias representações.

Quando acontece de um brasão ser carregado de flores-de-lis, o que é comum em brasões franceses, se diz flordelizado e se a mesma aparecer cortada ou sem pé, então deve ser dita de “pé morto”; quando a representação vier acompanhada de dois botões ladeando uma pétala de maior tamanho, é denominada flor-de-lis florentina. Como timbre não é comum. Todavia aparece nos brasões de armas dos Macieira, Macoula e Maciel.

As flores-de-lis são muito frequentes nos brasões portugueses. Representam, em geral, uma concessão dos reis da França, principalmente quando assentam sobre campo azul, e só em casos raros, como o dos Nápoles e dos Lacerda, representam parentesco ou aliança com a Casa Real francesa.


Brasão dos Nápoles, contendo flores-de-lis por ligação com a Casa Real francesa.

Parte G – A Cruz

Na heráldica, a aplicação da cruz é muito ampla. Isto decorre principalmente da enorme quantidade de formatos que a ela são dados na confecção dos brasões. Além disto, há um vasto uso na heráldica religiosa, tumular e na confecção de condecorações, bandeiras e insígnias. A correta definição de cruz é a de uma figura formada por uma pala e uma faixa cruzadas, mas sem continuidade entre elas.

Um dos formatos mais primitivos da cruz foi usado pelos gregos e pelos egípcios há 5 mil anos e tinha a forma de um “T” encimado por um anel, símbolo de divindade, e que se chamava Cruz de Ankl.

A primeira vez que a cruz foi oficializada como símbolo, neste caso de fé, aconteceu no reinado de Constantino. Isto ocorreu devido ao imperador ter sido, surpreendentemente, vencedor da batalha contra Mexêncio. Daí por diante, na vanguarda do exército constantino, sempre era conduzido um estandarte composto por uma cruz com a legenda “IN HOC SIGNO VINCES” (com este sinal vencerás). O uso da cruz como elemento de brasão de armas nasceu com as cruzadas. As grandes ordens de Cavalaria como São João, dos Templários, de Calatrava, de Malta e outras escolheram a cruz como seu símbolo. Os duques de Saboya trazem em seu escudo uma cruz branca como lembrança de terem socorrido a Rhodes contra os turcos. Muitas famílias da nobreza européia trazem a cruz em seus escudos, como lembrança de terem tomado parte nas cruzadas. Os contingentes das cruzadas de diferentes países distinguiam-se no uso da cruz: os escoceses usavam a Cruz de Santo André; os ingleses, uma cruz de ouro; os alemães, de negro; os italianos, de azul; e os espanhóis de vermelho. Eduardo III da Inglaterra, reinvindicando a Coroa da França, adotou a cruz vermelha para seu exército em 1335 e a França, para evitar confusão, ficou com o branco. Enfim, ainda hoje a Cruz Vermelha de São Jorge caracteriza a Inglaterra, assim como, depois de outra mudança, a cruz branca caracteriza a Itália. Portugal ficou caracterizado pela cruz azul que o conde de São Henrique trouxe para a Terra Santa.

Na heráldica portuguesa, desde 1459, encontra-se a cruz em muitos brasões. Quanto a heráldica brasileira, muitas famílias apresentam a cruz sob várias formas. Entre os barões, encontra-se, por exemplo, a cruz nos sobrenomes Abadia, Alegrete, Catumbi, Guarulhos e Saquarema, entre outros.


Exemplos de brasões de armas contendo cruzes.

Parte H – As Figuras Quiméricas

As chamadas figuras quiméricas surgiram da imaginação dos poetas e cantadores da idade média, provavelmente inspirados pela mitologia fantástica da antiguidade. O uso dessas figuras na heráldica é muito antigo e frequente, aparecendo nos brasões de família pelo simbolismo que podem representar. Existem muitas figuras quiméricas, sendo relacionadas abaixo algumas das principais, na descrição de Silveira (1972).

Grifo – figura com cabeça e garra de leão, asas de águia, orelha de cavalo, com barbatanas ao invés de crinas.

Licórnio ou Unicórnio – animal quimérico que tem forma de cavalo, cauda em ponta e, no centro da testa, um chifre agudo, vindo daí seu nome. Esta figura é muito utilizada na heráldica, fazendo parte de cimeiras, ladeantes, nos escudos de armas e empregada como suportes do brasão.


Unicórnio (Licórnio) em brasão de armas.

Dragão – nome que vem do latim “dracone” e do grego “dracon”. Animal fantástico com garras, cauda de serpente terminada em arpão e cabeça de crocodilo. Este ser quimérico está ligado à figura de São Jorge, padroeiro da Inglaterra, sendo também consagrado à Minerva, deusa da caça e da sabedoria, e ao nome da Ordem Chinesa do Dragão.

Esfinge – é um animal com cabeça e busto de mulher, corpo de leão, asas de águia, que entre os egipcios representava o Sol. Essa figura foi difundida pela lenda de Édipo.

Hidra – figura quimérica, representada por uma serpente monstruosa com corpo de dragão alado, com sete cabeças. De acordo com a lenda, habitava os campos de Lerna, na Argólia. É evocada na lenda dos trabalhos de Hércules, que conseguiu matá-la abatendo as suas sete cabeças de uma só vez.

Centauro – monstro fabuloso, que tinha a parte superior do seu corpo de homem e o restante de cavalo. Sua lenda é registrada nos frisos do Partenon, na ilha grega de Creta, e conta o combate dos centauros nas bodas de Piritoo, rei dos Lápidos. Este, auxiliado por Teseu e Hércules, teria eliminado aqueles seres.

Hárpia – figura de um monstro com rosto e pescoço de mulher e o resto do corpo de um abutre, com unhas em forma de garras. Na heráldica é sempre apresentada de frente e com asas distendidas.

Sereia – outro ser fantástico, que tem a parte superior do corpo de mulher e o restante de um peixe. Conforme a lenda, ela costumava cantar para seduzir os pescadores e levá-los para o fundo do mar. É representada geralmente com um espelho na mão direita e um pente na esquerda.

Fênix – figura mitológica que habitava os confins do deserto da Arábia. Tinha possibilidade de viver muitas dezenas de anos e, quando se sentia morrer, fazia seu ninho com ervas e essências perfumadas, ficando ali aninhada, deixando o sol incendiar tudo. Porém, acontecia que sempre ressurgia das suas próprias cinzas.

Pégaso – é o cavalo alado, surgido, segundo a lenda, do sangue de Medusa, no momento em que Perseu lhe cortou a cabeça. Pégaso simboliza a inspiração e o gênio da poesia.

Quimera – monstro com o corpo de um leão, cabeça de cabra e cauda de dragão, soltando fogo pela boca.

Hipógrifo – cavalo alado, com meio corpo de grifo, tendo as patas dianteiras em garras.

Medusa – uma das Górgonas, que tinha lindos cabelos, mas como tivesse ofendido Minerva, a deusa da Sabedoria, teve os seus cabelos transformados em serpentes, sendo depois a sua cabeça decepada por Perseu.


Dragão e grifo batalhantes, no brasão de Pêro Cardoso (Portugal, 1580).

Capítulo V
A Nobreza

Utiliza-se este substantivo para denominar um conjunto de indivíduos que goza, em virtude de transmissão legal hereditária, de privilégios políticos e direitos superiores aos da maioria da população. O princípio de tudo está nas sociedades primitivas, quando os homens mais fortes e hábeis tornavam-se chefes de tribos ou clãs. Frequentemente havia um corpo de indivíduos que o apoiava e que adquiria prestígio em virtude do poder do chefe. Mais tarde essa casta especial transmitia aos seus descendentes os privilégios de que gozava. Em fase mais avançada da história, a riqueza ou a influência política muitas vezes permitia aos seus possessores ganhar o estado de nobreza. Nas nações da moderna Europa a nobreza teve origem na aristocracia feudal. A partir do século XI os nobres tomaram os nomes de seus domínios territoriais, de seus castelos ou de povoações sob seu domínio. Daí a partícula “de”, para os franceses e “von” para os povos germânicos. Em Portugal a monarquia liberal criou novos titulares e alargou muito as honras da nobreza, distinguindo-se não só militares e políticos como também escritores, artistas, diplomatas, comerciantes e banqueiros. Depois da proclamação da república, um decreto de 18 de outubro de 1910 aboliu os títulos nobiliárquicos, distinções e direitos de nobreza.

A aristocracia ou segunda nobreza é definida como a subinfeudação da grande nobreza. Nos séculos VIII a XI dividia-se em ricos-homens, infanções, cavaleiros e escudeiros.

Ricos-homens: os senhores mais poderosos, pois reuniam a fidalguia de nascimento, a autoridade e prestígio de cargos públicos mais elevados.

Infanções: nobres de raça, mas não revestidos de magistratura civil ou militar. A partir de meados do século XIV a palavra foi substituída pelo termo fidalgo.

Cavaleiro: todos que eram admitidos à confraria militar medieval da cavalaria e também homens livres que podiam custear por si cavalos e armas e ir à guerra, recebendo, por isso, certos privilégios.

Escudeiros: eram nobres ou não, que tinham por dever seguir, cada um, o seu cavaleiro, ajudando-o a vestir as armas e combatendo na retaguarda dele. A idade que se passava a escudeiro era a de 14 anos. Antes disso os mancebos nobres costumavam servir como pajens ou “donzéis” nos paços dos grandes senhores.

Capítulo VI
Títulos de Nobreza

A ordenação moderna dos títulos de nobreza é a seguinte:

Príncipe – do latim “princeps”, “principis” (primeiro). Filho primogênito do rei, chefe de um principado, filho ou membro de família real. É o título de nobreza mais elevado.

Duque – do latim “dux”, “ducis” (aquele que conduz).

Marquês – título intermediário entre o de Duque e o de Conde.

Conde – do latim “comes”, “comitis” (companheiro).

Visconde – do latim “vicecomes” (viceconde). Dado principalmente aos filhos caçulas dos condes e sua descendência.

Barão – homem, varão, pessoa poderosa pela posição ou riqueza.

Cavaleiro – do latim “caballarius” (escudeiro). Membro de Ordem de cavalaria.

Entre os títulos de nobreza figuram também as Grandezas de Espanha, títulos espanhóis concedidos a estrangeiros ilustres.

Título de Príncipe

O título de príncipe, em praticamente todos os países que tiveram ou têm monarquia, não é concedido, mas sim herdado dos pais Reais desde o nascimento. Na Espanha, por exemplo, o herdeiro da Coroa ostenta o título de Príncipe das Astúrias. Isto acontece desde o reinado de Don Juán I, que o concedeu a seu filho, o Infante Don Enrique (mais tarde Enrique III, 1379-1406). Os raros casos de concessão do título para um descendente não real espanhol foram suspensos e substituídos por títulos de duque e/ou conde. Na Espanha, o decreto de 4 de junho de 1948 restabeleceu a validade de títulos nobiliários.

Título de Duque

Um dos primeiros a se intitular Duque foi o Conde de Castilla, Fernán Gonzáles, em 1029, que se auto-apelidava Duque dos Castellanos. Mas os primeiros ducados considerados como títulos nobiliários e com caráter hereditário só se homologaram no reinado de Don Enrique II, que titulou Beltrán Duguesclin como Duque de Sória e de Molina, em 1370, e Don Fadrique de Castilla, seu filho, como Duque de Benavente. O primeiro ducado reverteu à Coroa por compra e o segundo por morte, na prisão do Infante Don Fadrique, por se ter colocado contra seu irmão, o rei Don Juan I de Castilla. Daquele tempo até o reinado de Felipe II houveram vinte fidalgos que ostentaram o título de Duque. Na Espanha este título era designado para o principal e mais importante fidalgo general do rei. Em Portugal era usado tão somente para os filhos do rei ou parentes mais próximos e, como no restante da Europa, teve maior uso no século XIV. Naquele país o titular gozava da mais alta autoridade e de mais extensa jurisdição. Suas funções incluíam o comando geral dos exércitos do país. Na Itália confiava-se aos Duques a administração militar e civil de cidades e províncias.

Título de Marquês

O Marquês é definido pelos escritos históricos como “senhor de alguma terra que está em comarca do reino”. Na Catalunha foram intitulados Marqueses os governadores da marca hispânica, costume seguido pelos Condes de Barcelona. O marquesado mais antigo remonta a Henrique II de Castela que, em 1336, concedeu o título a Don Alonso de Aragón, tio do rei Don Pedro de Aragón. Em Portugal, também o marquês era o governador das marcas fronteiriças.

Capítulo VII
Os Brasões da Sala de Sintra

O rei Dom Manoel I, o Venturoso (1495 a 1521), foi quem fez reunir pelo reino de Portugal todos os brasões, insígnias e letreiros, para acabar com o livre arbítrio no uso das armas e concessão de brasões. Com este material, transcrito e falado, planejou fazer um livro onde fossem pintados os brasões. Consta que existiram três livros de brasões, dos quais restaram apenas dois. O Livro Antigo dos Reis d’Armas, escrito por António Godinho, escrivão da Câmara Real, teria desaparecido quando um terremoto destruiu o Cartório da Nobreza. Restaram o Livro do Armeiro-Mor, datado de 15 de agosto de 1509, escrito por João Rodrigues, Rei de Armas de Portugal e o Livro da Torre do Tombo, escrito pelo Bacharel Antonio Rodrigues, também Rei de Armas de Portugal.

Após a conclusão da obra o rei mandou pintar o teto de um palacete, localizado no Paço de Sintra, com os brasões das 72 principais famílias lusas da época, ilustres em honra, história e bens. A execução ocorreu entre os anos de 1515 e 1540 e todos os brasões estão assentes no ventre de veados, sobre cujas cabeças repousa o timbre de cada família. No centro do teto da sala, que mede 14 por 13 metros, encontram-se as armas do rei, circundadas por seis brasões portugueses representando sua descendência masculina (os príncipes) e dois brasões em lisonja representando sua descendência feminina (as princesas).


Diagrama esquemático do teto da Sala de sintra, em Portugal. Ao centro, o brasão do rei, cercado pelos brasões de sua descendência masculina e feminina. No entorno, os brasões das 72 famílias ilustres à época (1515 a 1540).

Relação dos sobrenomes representados na Sala de Sintra
A – Armas do rei Dom Manuel
B – Infante Dom Yoam
C – Infante Dom Luis
D – Infante Dom Fernando
E – Infante Dom Afonso
F – Infante Dom Enrique
G – Infante Dom Duarte
H – Infante Dona Isabel
I – Infante Dona Beatris
1 – Noronha
2 – Coutinho
3 – Castro
4 – Ataíde
5 – Eça
6 – Menezes
7 – Castro (outros)
8 – Cunha
9 – Sousa
10 – Pereira
11 – Vasconcellos
12 – Melo
13 – Silva
14 – Albuquerque
15 – Andrada
16 – Almeida
17 – Manoel
18 – Febos Monis
19 – Lima
20 – Távora
21 – Henriques
22 – Mendonça Furtado
23 – Albergaria
24 – Almada
25 – Azevedo
26 – Castelo-Branco
27 – Abreu
28 – Brito
29 – Moura
30 – Lobo
31 – Sá
32 – Corte-Real
33 – Lemos
34 – Ribeiro
35 – Cabral
36 – Miranda
37 – Tavares
38 – Mascarenhas
39 – Sampaio
40 – Malafaia
41 – Meira
42 – Aboim
43 – Carvalho
44 – Mota
45 – Costa
46 – Pessanha
47 – Pacheco
48 – Souto-Maior
49 – Lobato
50 – Teixeira
51 – Valente
52 – Serpa
53 – Gama
54 – Nogueira
55 – Betancour
56 – Goes
57 – Pestana
58 – Barreto
59 – Coelho
60 – Queirós
61 – Ferreira
62 – Siqueira
63 – Cerveira
64 – Pimentel
65 – Goio
66 – Arcas
67 – Pinto
68 – Gouvea
69 – Faria
70 – Vieira
71 – Aguiar
72 – Borges