A Lista Definitiva dos 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos

Na falta de tempo/vontade/ânimo/conhecimento para fazer minha própria lista, resolvi roubartilhar esta, do Ademir Luiz, que achei muito boa! Inclusive, só pra constar, alguns desses filmes estão disponíveis bem aqui

Mas vamos ao que interessa. Luzes… Câmera… AÇÃO! 😀

Diversos veículos de comunicação, nacionais e internacionais, produziram suas listas dos melhores filmes de todos os tempos. Nossa elegância impede de citar nomes, mas muitas não se sustentam. Basta lembrar que há listas com opções altamente questionáveis, como colocar “Um Sonho de Liberdade” em primeiro lugar ou incluir obras tecnicamente sofisticadas, mas com roteiros pobres como “Avatar”; ou ainda francamente descartáveis como “A Princesa Prometida”. Para corrigir essas distorções, a Revista Bula, em parceria com a ONU e os Illuminati, incumbiu-me de apresentar a lista definitiva dos 100 melhores filmes de todos os tempos. Definitiva? Sim, humildemente assumimos esse fardo e essa pretensão. Tamanha convicção se justifica em função dos altamente sofisticados e científicos critérios adotados para a seleção.

A equação envolve elementos relativos à influência, importância histórica, relevância dentro do gênero, apuro estético e artístico dos filmes, entre outros. O que, infelizmente, deixou de fora clássicos mudos como “Nosferatu”, “Intolerância” e “A Carruagem Fantasma”; clássicos sonoros, como “Chinatown”, “A Primeira Noite de um Homem”, “Quanto Mais Quente Melhor” e “Gata em Teto de Zinco Quente”; filmes divertidíssimos, como “De Volta Para o Futuro”, “Os Caça-Fantasmas” e “Curtindo a Vida Adoidado”; obras de formação de caráter, como os primeiros “Rambo” e “Rocky”, “Mad Max”, “Robocop” ou “Conan, o Bárbaro”; filmes de grande importância cultural, como “Adivinhe Quem Vem Para Jantar?”, “Os Eleitos” e “A Noviça Rebelde”; novelões, como “Assim Caminha a Humanidade” e “Jezebel”; experiências audiovisuais inusitadas, como “Valsa Russa”, “Boyhood” e “Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças”; épicos farofa, como “Gladiador” e “Coração Valente”; filmes com roteiros primorosos, mas com cinematografia discreta, como “A Malvada” e “O Declínio do Império Americano”; e mesmo esfinges intelectuais, como “Império dos Sonhos”, “Brazil, o Filme” e “Adeus à Linguagem”. Em alguns casos houve empate técnico, como entre “Réquiem Para um Sonho” e “Trainspotting” ou a refilmagem de “Scarface” e “Os Intocáveis”. Nessas ocasiões a subjetividade prevaleceu.

Cem títulos parece muito, mas é ilusório tendo em vista o número de candidatos potenciais. Por isso, tivemos o cuidado de restringir a participação de cineastas de gênio que poderiam monopolizar a lista, como Kubrick, Tarkóvski, Coppola, Bergman, Kurosawa, Orson Welles, David Lean, John Ford, Scorsese, Fellini ou Woody Allen. Esse critério retirou da lista obras-primas como “Um Corpo que Cai”, “O Homem que Matou o Facínora”, “Dr. Fantástico”, “Annie Hall”, “O Poderoso Chefão: Parte 2” e “Soberba”. Reconhecemos que — em alguns casos — fomos honestamente desonestos, considerando a “Trilogia de Apu” e a saga “O Senhor dos Anéis” como obras únicas, em função da unidade conceitual e estética. O mesmo não valeu para os filmes tão díspares, como os que compõem as trilogias “Star Wars” e “Poderoso Chefão”.

A lista é definitiva mesmo?

Sim.

Pelo menos até amanhã…

1 — Lawrence da Arábia (1962), de David Lean

“Lawrence da Arábia” é o melhor filme de todos os tempos. Por quê? Não é uma obra inovadora que revolucionou a linguagem do cinema, mas acertou em tudo a que se propôs, realizando cada um dos aspectos com excelência, elevando o nível do que foi feito até então e se tornando o padrão para tudo o que seria realizado posteriormente. Magnífico em todos os aspectos técnicos e artísticos, “Lawrence da Arábia” é, ao mesmo tempo, uma biografia romantizada, uma aventura épica, um filme histórico e um sofisticado estudo de personagem. Até os momentos cômicos funcionam. Praticamente todas as cenas são memoráveis, dignas de se tornarem quadros na parede. Podendo ser interpretado sob os mais diversos aspectos, se “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, é um livro catedral, “Lawrence da Arábia” é um filme catedral.

2 — 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick

Kubrick conseguiu a façanha de transformar um filme de arte em ícone pop. A cena do buraco de minhoca espacial é o mais próximo que um cinéfilo nerd pode chegar de uma viagem de LSD.

3 — Cidadão Kane (1941), de Orson Welles

Durante décadas, “Cidadão Kane” liderou a lista dos melhores filmes de todos os tempos, até ser superado por “Um Corpo que Cai” (que nem mesmo é o melhor filme de Hitchcock) e, em algumas seleções menos influentes, por “O Poderoso Chefão”. Certamente, é o filme mais influente e revolucionário entre os primeiros colocados em qualquer lista, embora não seja perfeito, como demonstrou a decana da crítica americana Pauline Kael, no livro “Criando Kane e Outros Ensaios”. Seja como for, “Cidadão Kane” é uma obra de mestre, surpreendentemente realizada por um jovem de vinte e cinco anos que se tornaria o mais colossal fracassado da história do cinema. Quem começa no auge só pode cair.

4 — O Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola

As respostas para todas as perguntas estão na Bíblia, em “O Poderoso Chefão” e no número 42.

5 — Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkóvski

Outro filme catedral, “Andrei Rublev” representa a quintessência da arte do mestre russo Andrei Tarkóvski. Contém a poesia visual e sonora de “O Sacrifício”, “O Espelho” e “Nostalgia”, o rigor estético de “Solaris” e “Stalker”, e ainda narra muito bem sua história, como em “O Rolo Compressor e o Violinista” e “A Infância de Ivan”. A sequência da construção do sino concentra em si alguns dos mais belos momentos da história do cinema. Para assistir ajoelhado.

6 — Os Sete Samurais (1954), de Akira Kurosawa

O cinema de Kurosawa, diferente de, digamos, Ozu ou Kinoshita, é a ponte perfeita entre a arte oriental e a ocidental. Não por acaso, alguns de seus trabalhos foram refilmados com sucesso. “Yojimbo”, por exemplo, inspirou “Por um Punhado de Dólares”, de Sergio Leone, e “O Último Matador”, estrelado por Bruce Willis. Esse “Os Sete Samurais” inspirou “Sete Homens e um Destino”. O faroeste com Yul Brynner e sua turma é bom, mas o original é obra de mestre. Jamais será igualado. Cenas como a batalha na chuva e o incêndio permanecem gravadas na imaginação de quem as assistiu.

7 — O Sétimo Selo (1956), de Ingmar Bergman

Um cavaleiro cruzado jogando xadrez com a morte. Uma ideia seminal, traduzida em uma imagem imortal.

8 — O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel

A natureza animal do ser humano, exposta com crueza.

9 — A Doce Vida (1960), de Federico Fellini

Cada parte do filme representa um dos sete pecados capitais? Tudo bem, Anita Ekberg vale uma temporada no purgatório.

10 — Blade Runner, O Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott

Mais forte, mais ágil, mais inteligente do que os filmes comuns.

11 — Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica

Um filme neorrealista italiano do pós-guerra que consegue agradar e emocionar qualquer público.

12 — Laranja Mecânica (1972), de Stanley Kubrick

Horror Show!

13 — Apocalipse Now (1979), de Francis Ford Coppola

O filme antibelicista por definição e um estudo profundo sobre a psique humana em situações extremas. É um dos casos no qual a versão do diretor piorou a obra original. A versão “redux” de “Apocalipse Now” é um elefante branco.

14 — O Leopardo (1963), de Luchino Visconti

Um dos raros casos em que o filme é tão bom quanto o livro.

15 — Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock

Comparo esse filme com um tapete persa. A tradição dos tecelões persas defende que se deve sempre deixar um fio solto em seus maravilhosos tapetes, como forma de testemunho de que apenas Alá é perfeito. Só há um plano “imperfeito” em todas as centenas de cenas de “Janela Indiscreta” e dura apenas uns dois segundos. Veja o filme com atenção e tente descobrir qual é.

16 — Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen

Tente não sorrir assistindo ao número musical na chuva.

17 — Metrópolis (1927), de Fritz Lang

Nosso futuro, se os nazistas tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial.

18 — Aurora (1927), de F. W. Murnau

Uma das mais notáveis realizações estéticas da era do cinema mudo.

19 — O Terceiro Homem (1949), de Carol Reed

O melhor final infeliz da história do cinema.

20 — A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir

Um filme para damas, cavalheiros e criadagem. A sequência da caçada entra no panteão das melhores.

21 — Amadeus (1984), de Milos Forman

Quem não assistiu a essa obra-prima pode se considerar cúmplice do assassinato de Mozart.

22 — Rastros de Ódio (1956), de John Ford

Esse é o maior faroeste de todos os tempos? Talvez “O Homem que Matou o Facínora” seja mais bem escrito. Talvez “Johnny Guitar” seja mais instigante. Talvez “Os Brutos Também Amam” seja mais empolgante. Talvez “Meu Ódio Será Sua Herança” seja mais realista. Talvez “A Face Oculta” seja mais profundo. Enquanto os mortais discutem, John Wayne cavalga magnânimo pelo Monument Valley.

23 — Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein

Eisenstein era fã do Mickey Mouse. Achei que deveria lembrá-los desse fato.

24 — Era Uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu

Lento e belo como a vida.

25 — Olympia (1938), de Leni Riefenstahl

Segundo a crítica de cinema Pauline Kael, “Leni Riefenstahl é um dos cerca de doze gênios criativos que trabalharam com a mídia cinema”. O que a coloca ao lado de figuras como Orson Welles, Hitchcock e Eisenstein. Ela era nazista? Segundo a própria Leni, não era, mas apenas uma artista fascinada pela beleza. No documentário “Olympia”, ela colocou todo o seu talento para fazer o maior de todos os registros dos jogos olímpicos, retratando as competições como balés de corpos em movimento. A política aqui é mero detalhe. Contudo, o mesmo não pode ser dito com relação a “O Triunfo da Vontade”, documentário sobre o congresso do partido nazista de 1934. Por suas escolhas artísticas e más companhias, Leni já foi sentenciada em Nuremberg, mas nunca mais deixou de ser julgada.

26 — Ben-Hur (1959), de William Wyler

Um dos melhores filmes bíblicos. A sequência da corrida de quadrigas é a maior cena de ação de todos os tempos. E é apenas uma pequena parte desse filme excepcional, digno de ser admirado por cristãos, pagãos e ateus.

27 — O Mágico de Oz (1939), de Victor Fleming

Assista ouvindo “The Wall”, de Pink Floyd.

28 — O Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder

Comparando esse clássico com a maioria da produção contemporânea, fica a sensação de que Norma Desmond tem razão: os filmes de hoje estão mesmo ficando pequenos demais.

29 — Rashomon (1950), de Akira Kurosawa

Um diz que esse filme é bom. Outro que é ótimo. Um terceiro defende que é uma obra-prima. Enquanto isso chove lá fora.

30 — Psicose (1961), de Alfred Hitchcock

Hitchcock filmou “Psicose” em preto e branco para não chocar o público. Não foi o suficiente. Até hoje.

31 — Amarcord (1973), de Federico Fellini

Um filme para ficar e sair da memória, simultaneamente.

32 — Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone

Esse filme é uma ópera.

33 — Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti

O poder avassalador da beleza.

34 — A General (1926), de Buster Keaton e Clyde Bruckman

No filme “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolluci, dois personagens discutem quem é melhor: Chaplin ou Buster Keaton? Para um — não por acaso francês —, Chaplin é insuperável, enquanto o outro — um americano — defende que Keaton era um cineasta de verdade, enquanto Chaplin só se preocupava com sua própria performance. Questão de opinião. Pessoalmente, coloco Keaton um degrau acima.

35 — Em Busca do Ouro (1925), de Charles Chaplin

O crítico Paulo Emílio Salles Gomes, no ensaio “Chaplin é cinema?”, relativizou a habilidade de cineasta do eterno Carlitos. Chaplin seria um diretor apenas mediano, mas uma grande figura cinematográfica. Nesse “Em Busca do Ouro” temos um Chaplin despido de sentimentalismos ou proselitismo político, preocupado apenas em ser engraçado. Atingiu seu auge, mostrando que poderia ter sido ainda maior do que foi.

36 — Meu Tio (1958), de Jacques Tati

Chaplin ou Keaton? Tem gente que prefere Tati. O francês tem o lirismo do primeiro, porém sem seu gosto pelo melodrama, e a habilidade técnica do segundo.

37 — Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), de Quentin Tarantino

Quentin Tarantino é o cineasta favorito de oito entre dez jovens cinéfilos descolados. Andar com camisetas tarantinescas é cool! Dono de um toque de Midas pop, grande parte de sua reputação se deve a “Pulp Fiction”. O próprio Tarantino reconhece que jamais conseguirá igualar o que realizou nesse trabalho. “Pulp Fiction” é o seu “Cidadão Kane”. O que não deixa de ser um bom negócio, afinal, Zed is dead, baby, Zed is dead.

38 — Manhattan (1979), de Woody Allen

Woody Allen reinventou a comédia romântica com “Annie Hall”. Em “Manhattan” ele foi além, mostrando que também pode ser um grande cineasta quando se dá ao trabalho. “Crimes e Pecados” pode ser mais ambicioso, “Zelig” mais inventivo e “A Rosa Púrpura do Cairo” mais sensível, mas “Manhattan” ainda é seu trabalho mais sofisticado, com enredo mais bem resolvido e tecnicamente irrepreensível. Alguns podem preferir “Match Point”, mas parece-me que outro cineasta poderia filmar o mesmo roteiro com resultados igualmente satisfatórios, ao passo que somente Woody Allen poderia dirigir e estrelar “Manhattan”. É um filme assinatura e uma bela homenagem a Nova York.

39 — Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese

Você está falando comigo? Não tem mais ninguém aqui. Você está falando comigo?

40 — Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci

Foi censurado no Brasil. Passa uma manteiguinha que liberam…

41 — Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini

Acho que entendi. Tenho certeza que gostei.

42 — Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini

Anna Magnani é a atriz mais chata de todos os tempos, mas até isso funciona no filme.

43 — O Nascimento de Uma Nação (1915), de D. W. Griffith

A certidão de nascimento do cinema enquanto linguagem. Afinal, nem tudo o que é bom e belo é necessariamente justo (KKK! WTF?).

44 — No Tempo das Diligências (1939), de John Ford

O primeiro faroeste realmente sério e ainda um dos melhores.

45 — A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles

Indico o plano sequência na abertura desse filme como forma de aprender a diferença entre realmente ver ou simplesmente olhar uma cena.

46 — A Felicidade Não se Compra (1946), de Frank Capra

Um irresistível hino ao otimismo. Nunca foi tão bom ser ingênuo.

47 — Stalker (1979), de Andrei Tarkóvski

Em “Stalker”, Tarkóvski apurou sua visão de ficção científica apresentada em “Solaris”. Minha tese sobre esse filme: corpos humanos percorrendo telas expressionistas abstratas.

48 — Trinta Anos Esta Noite (1963), de Louis Malle

Um filme existencialista.

49 — Sindicato de Ladrões (1954), de Elia Kazan

O deus Brando em sua melhor atuação.

50 — Casablanca (1942), de Michael Curtiz

Umberto Eco escreveu certa vez que a força de “Casablanca” está no feliz acúmulo de vários clichês do cinema. Um clichê sozinho incomoda. Vários clichês, com sorte, podem gerar um conjunto harmonioso. É uma explicação. Seja como for, tenho uma longa amizade com esse filme.

51 — A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean

Quem nunca tentou assobiar a marchinha “Colonel Bogey”?

52 — Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman

O personagem de Woody Allen em “Manhattan” afirmou que Bergman é o único gênio do cinema. Exagero, considerando que o próprio Allen é um gênio do cinema. Em todo caso, “Morangos Silvestres”, assim como “Gritos e Sussurros”, “Persona” e “Fanny e Alexander” são mesmo obras de gênio. Woody Allen fez sua versão de “Morangos Silvestres” em “Desconstruindo Harry”.

53 — Trilogia de Apu (1955/1956/1959), de Satyajit Ray

Esqueçam o oscarizado épico “Gandhi” ou mesmo o “Mahabharata” de Peter Brook. Se pretende conhecer algo sobre a Índia, o conjunto formado por “A Canção da Estrada”, “O Invencível” e “O Mundo de Apu” é a melhor porta de entrada. A principal lição que aprendemos com esses filmes é que os indianos não são nem os paspalhos da novela da Globo nem os seres iluminados que muitos hippies de butique imaginam. São gente como a gente.

54 — Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut

A morte precoce de Truffaut, com apenas 52 anos, foi uma das maiores perdas da história do cinema. Diretor de obras-primas como “Os Incompreendidos”, “Jules e Jim” e “A Noite Americana”, Truffaut ainda produziria muito. Assistindo a “Fahrenheit 451”, fico imaginando que magnífico “livro” desapareceu quando o perdemos.

55 — Acossado (1960), de Jean-Luc Godard

Gênio? Louco? Charlatão? Esfinge banguela? Caricatura de si mesmo? O Jean-Luc Godard de hoje tornou-se um fetiche dos cinéfilos PIMBA (Pseudointelectuais metidos a besta), mas ninguém pode lhe tirar a glória de ter sido um verdadeiro “enfant terrible” do cinema entre as décadas de 1960 e 1980. Godard verdadeiramente revolucionou o cinema. Poucos podem dizer isso. “Acossado” foi seu cartão de visitas.

56 — 12 Homens e Uma Sentença (1957), de Sidney Lumet

Tema espinhoso e polêmico. Cenário praticamente único. Ótimo time de atores, capitaneado por um astro, Henry Fonda. Roteiro muito bem escrito. Fotografia discreta e eficiente. Direção segura. Parece simples, mas fazer o simples bem feito é sempre o mais difícil.

57 — Napoleão (1927), de Abel Gance

A era do cinema sonoro ainda deve uma versão definitiva da saga de Napoleão Bonaparte. Esse foi um dos projetos abandonados por Kubrick na década de 1970. Por hora, a melhor realização cinematográfica sobre o imperador francês ainda é esse imponente longa-metragem mudo, repleto de experiências estéticas e sem medo de ser grandioso. Exatamente como seu personagem título.

58 — O Exorcista (1973), de William Friedkin

Friedkin é um dos menos reconhecidos entre os cineastas do primeiro time. Fez alguns trabalhos menores, mas tem em sua filmografia obras poderosas, como “Comboio do Medo”, “Operação França” e “Parceiros da Noite”. Merece um resgate. Em seu melhor e maior filme, “O Exorcista”, realizou não apenas a quintessência do terror, mas um drama psicológico dos mais sofisticados. Veja a versão de 1973, o relançamento com efeitos especiais digitais tirou muito da sutileza do filme original.

59 — Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders

Discutindo o sexo dos anjos, literalmente.

60 — Juventude Transviada (1955), de Nicholas Ray

Alguns cínicos afirmam que quando Marlon Brando vestiu suas calças jeans em “O Selvagem”, produziu uma revolução muito maior na juventude do que todos os livros de Marx juntos. Talvez seja um exagero. Mas se somarmos nessa equação a jaqueta vermelha que James Dean usou em “Juventude Transviada”, aí sim teremos algo.

61 — A Paixão de Joana D’Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer

O mestre Nicholas Ray costumava dizer que o cinema é a “magia dos olhares”. Essa máxima nunca foi tão verdadeira quanto em “A Paixão de Joana D´Arc”, nos magníficos closes em Renée Maria Falconetti.

62 — Era Uma Vez na América (1984), de Sergio Leone

Depois de fazer história com seus “faroestes espaguete” na Itália, Sergio Leone foi para a América fazer “filmes de gangster espaguete” no melhor estilo americano. Se não fosse a trilogia do “Chefão”, esse “Era Uma Vez na América” seria o melhor exemplar de um gênero que conta com pérolas como os dois “Scarface”, “Os Bons Companheiros” e “Inimigo Público Número 1”.

63 — O Atalante (1934), de Jean Vigo

Nada mais pesado do que a leveza do cotidiano.

64 — O Tesouro de Sierra Madre (1948), de John Huston

Esse filme vale ouro.

65 — O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski

Quem aí não acredita piamente que viu o bebê capiroto? Eu vi, eu vi, sim, eu vi…

66 — Touro Indomável (1980), de Martin Scorsese

Martin Scorsese estava convicto que esse seria seu último filme. Por isso concentrou nele todo seu talento. Felizmente, não foi seu último trabalho. Felizmente, Scorsese pensou que seria.

67 — Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966), de Michelangelo Antonioni

Só uma obra-prima pode ter o mestre Jimmy Page, do Led Zeppelin, como figurante.

68 — Tubarão (1975), de Steven Spielberg

Spielberg é um grande cineasta em obras como “A Lista de Schindler”, “A Cor Púrpura” e “O Império do Sol”, mas outros diretores poderiam fazer esses mesmos trabalhos tão bem quanto ele, e talvez até os melhorassem, diminuindo o melodrama. Seu verdadeiro gênio, sua assinatura mais destacada, se manifesta em filmes aventurescos e divertidos, mas nem por isso menos inteligentes, como “Encurralado”, “E.T.” e a série Indiana Jones. Dessa leva, o melhor é “Tubarão”, não por acaso o primeiro “blockbuster” da história.

69 — Os Imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood

“Todos vão saber que Clint Eastwood é o maior covarde do oeste” (fala de “De Volta Para o Futuro III”).

70 — Patton (1970), de Franklin J. Schaffner

O comunistinha covarde que não apreciar a grandeza patriótica desse filme vai levar uns tapas. Em tempo: se fosse um sujeito bonito, George C. Scott teria sido o maior astro de cinema de todos os tempos.

71 — Rio Vermelho (1948), de Howard Hawks e Arthur Rosson

O maior exemplo de conflito de gerações da história do cinema.

72 — Bonnie e Clyde: Uma rajada de balas (1967), de Arthur Penn

Nada menos que o filme marco da Nova Hollywood.

73 — Um Estranho no Ninho (1975), de Milos Forman

Um filme tão impactante que Jack Nicholson nunca mais conseguiu sair dele.

74 — O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme

Recomendo que leiam o profundo e complexo ensaio escrito por, acreditem, Olavo de Carvalho. Depois da leitura nunca mais verão “O Silêncio dos Inocentes”, nem o Olavo, da mesma forma.

75 — Os Excêntricos Tenenbaums (2002), de Wes Anderson

A prova de que nem todos os escritores que fazem cinema estão traindo a arte.

76 — Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha

Lembrando o bom e velho Paulo Francis: o filme é uma porcaria, mas o diretor é um gênio.

77 — O Rei Leão (1994), de Roger Allers e Rob Minkoff

(…) Desculpe, não posso escrever nada agora, estou ocupado dançando e cantando “Hakuna Matata”…

78 — Veludo Azul (1986), de David Lynch

Existe algo de podre no reino do “american way of life”.

79 — O Senhor dos Anéis (2001 / 2002 / 2003), de Peter Jackson

Um filme para dominar a todos.

80 — Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan

Por mais que, por exemplo, o “Super-Homem: O Filme”, de Richard Donner, seja icônico e nos tenha feito acreditar que “um homem poderia voar”, ainda está preso no gênero “filmes de super-heróis”. “O Cavaleiro das Trevas” transcende esses limites. É um ótimo filme de super-heróis, mas também é um policial instigante e um suspense de primeira linha. E, claro, apresentou o Coringa definitivo.

81 — Os Caçadores da Arca Perdida (1981), de Steven Spielberg

Indiana Jones não faria diferença no desenrolar da história?! Se isso for verdade, então, é como na vida real. Só torna o filme melhor.

82 — O Império Contra-Ataca (1980), de Irvin Kershner

“Guerra nas Estrelas” mudou o cinema. Não fosse a canhestra direção de atores de George Lucas, estaria na lista. Essa honra cabe à sua continuação, uma aventura de ficção científica perfeita.

83 — Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma

Engana-se quem pensa que esse filme é sobre a investigação e captura de Al Capone pelo lendário agente federal Eliot Ness e seus companheiros incorruptíveis. “Os Intocáveis” é um filme sobre cinema.

84 — Trainspotting (1996), de Danny Boyle

Foi anunciado como o “A Laranja Mecânica” da nova geração. Agora que a nova geração tornou-se veterana, sabemos que não é. Mas é um dos mais incisivos retratos sobre o mundo contemporâneo produzido pelo cinema.

85 — Beleza Americana (1999), de Sam Mendes

Quanto o produtor Steven Spielberg entregou o roteiro para o diretor Sam Mendes, recomendou enfático: “não mude uma linha”. Felizmente, foi obedecido.

86 — … E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming

Esse filme é um novelão. Mas quem disse que uma boa novela não pode ser ótima?

87 — Matrix (1999), de Lana Wachowski e Andy Wachowski

Fico imaginando se o filme “Matrix” não é um recurso da matrix para distrair-nos do fato de estarmos todos confinados na matrix, assistindo às duas péssimas continuações de “Matrix”. Se for, a ignorância é mesmo uma bênção.

88 — Ligações Perigosas (1988), de Stephen Frears

Você vai adorar a sofisticação, refinamento e inteligência desse filme. Quer apostar?

89 — Clube da Luta (1999), de David Fincher

Regra número um: Você não fala sobre o clube da luta. Regra número dois: Você NÃO fala sobre o clube da luta.

90 — Faça a Coisa Certa (1989), de Spike Lee

Spike Lee tornou-se um patrulheiro insuportável. Felizmente, nesse filme conseguiu fazer a coisa certa ao tratar da questão do racismo sem radicalismo, condescendência ou pieguice.

91 — Fale com Ela (2002), de Pedro Almodóvar

Esse Almodóvar me arrepia os cabelos do… (sim, isso é uma citação).

92 — Ondas do Destino (1996), de Lars Von Trier

O Dogma 95 em seu momento áureo. Com um final que rasga todas as regras do manifesto Dogma 95. Lars Von Trier é mesmo um cínico, no melhor dos sentidos.

93 — Cinzas no Paraíso (1978), de Terrence Malick

Antes de ficar obcecado em colocar meninas bonitas girando sem parar sobre o próprio eixo em projetos pretensiosos e mal acabados, como “Árvore da Vida”, “O Novo Mundo” e “Amor Pleno”, Terrence Malick realmente foi um projeto de gênio. Pena que voltou de seu autoexílio de duas décadas. Funcionava mais como mito recluso do que como cineasta na ativa.

94 — Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund

“Favela movie” no melhor estilo chiclete com banana.

95 — O Segredo de Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella

O pior defeito do cinema brasileiro é o descaso com o roteiro. A maior qualidade do cinema argentino é o cuidado com o roteiro.

96 — Viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki

Um filme para ser visto com humildade, ciente de que não basta fazer yoga e comer sushi para achar que entende alguma coisa sobre a riquíssima cultura oriental.

97 — Herói (2002), de Zhang Yimou

Existe uma longa tradição de filmes de Kung Fu no cinema. As coreografias são sempre um espetáculo por si só, mas o que torna “Herói” especial, para além do pano de fundo histórico, é o fato de que foi dirigido por um cineasta de verdade. Imaginem se o homem que dirigiu o sensível “Lanternas Vermelhas” tivesse tido a chance de trabalhar com o mestre Bruce Lee. “Herói” é o mais próximo que se pode chegar dessa utopia.

98 — Sangue Negro (2008), de Paul Thomas Anderson

Fé, ambição e petróleo. O mais próximo que se chegou de Kubrick após a morte do mestre.

99 — Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore

Uma ode ao cinema. Tudo o que o melodramático “Cine Majestic” tentou ser e não conseguiu. O que prova que talento é mais importante que orçamento.

100 — Um Sonho de Liberdade (1995), de Frank Darabont

Figura em algumas seleções de voto popular como o primeiro da lista. Não se justifica, embora seja um ótimo filme. Fica na digna posição de centésimo. Os últimos serão os primeiros?

Já ungiu seu celular hoje?

Vou te contar, viu…

Quando penso que o ser humano já está próximo do limite da capacidade de me impressionar, vejo uma dessas. Sob o pomposo título Igreja faz unção de celular e garante só boas notícias a quem paga em dia, encontrei este texto de autoria de Ângela Kempfer – até já antiguinho, de 2013, mas que não muda em nada minha indignação. Ainda mais pela falácia com que foi construído o “argumento” que justificaria essa unção.

Fé a gente tenta respeitar, mas nem sempre é fácil. Ontem, no caminho para o trabalho, um chamado me fez mudar a rota e parar na Igreja Universal do Reino de Deus, na avenida Mato Grosso.

Pelo rádio, o locutor convocava para a “unção dos celulares”, com a promessa de notícias boas para o resto da vida e recompensas em dinheiro a quem tem fé. “É a garantia de que o telefone só vai tocar para dar notícias maravilhosas”, diz a propaganda.

Para ganhar a “graça”, a pessoa tem de levar o aparelho, ouvir um sermão de cerca de 40 minutos e pagar o dízimo com “fidelidade”, lembra o pastor responsável pelas cinco sessões de unção realizadas ao dia. “Quem ai quer ficar rico?”, pergunta ele repetidas vezes antes de “mostrar o caminho para a fortuna”.

A lógica dos efeitos sobre o celular tem como justificativa a palavra de Deus. “A Bíblia diz: O que é ligado na terra é ligado nos céus. O celular faz o que? Ligações!”, explica o pastor Alvaro Moura, para acabar com qualquer dúvida ou dissuadir quem acha tudo aquilo um delírio.

O encontro começa com cantoria e depois vem um trecho da Bíblia que fala de prosperidade, até a distribuição de um adesivo pequeno, reforçado com “óleo ungido” por um tal bispo Marcelo Brayner.

Tudo acaba com um longo sermão sobre o poder do dízimo, sobre a importância que Deus dá aos pagadores fiéis. Falar desse tipo de pagamento já é clichê, quando o assunto é a Igreja Universal. Mas é impossível não ficar pasma diante do primeiro discurso ao vivo do pastor. “Hoje você vai deixar um dízimo que você nunca deixou. Pode ser em cheque, dinheiro… Até dia 21 de outubro o telefone vai tocar, com o retorno em dobro.”

Segundo ele, a prosperidade só não virá em alguns casos. Por exemplo, para quem tem as mãos sujas de sangue, não daquele sangue que a gente vê, mas do sangue que só Deus consegue enxergar.

No grupo de apenas 28 pessoas, com muitos jovens, uma senhora de cerca de 50 anos é uma das mais participativas. Pergunto se “dá certo mesmo?” e ela responde meio ressabiada.

“Olha, já fui na novena da Perpétuo Socorro e lá também é um tal de vender bingo… Frequentei a Batista do Centro e você só participa se pagar o dízimo. Aqui não é diferente. Se a gente for fiel e contribuir, Deus recompensa”, argumenta.

Para fechar a unção e dar largada à vida de prosperidade, graças ao celular, um a um os fiéis vão tomando o rumo do altar, para depositar em uma urna dourada envelopes com quantias que consideram justas para tamanha dádiva.

Toda segunda-feira, a propaganda das sessões começa cedinho na rádio da Igreja Universal, com depoimentos de supostos ouvintes de Campo Grande, que contam histórias mirabolantes, de transformações da noite para o dia, graças à benção do aparelho feita pelo pastor.

Os relatos envolvem elevadas quantias ou problemas aparentemente sem solução. Tem sempre alguém falando de carrões, de pequenas fortunas, como se o reino dos céus fosse aqui, regado a bens importados.

“Eu tinha um Celtinha, mas em 6 meses na Igreja consegui comprar meu carro importado, de luxo”, diz um. “Depois da unção do meu celular, quando eu sai da igreja, meu telefone tocou e era um cliente querendo fechar negócio em uma fazenda”, garante outro.

As histórias seguem com “meu nome saiu do SPC”, “consegui um emprego numa multinacional”, “venci uma causa de R$ 100 mil e reverti tudo em dízimo”, “perdi tudo quando parei de pagar o dízimo, mas depois voltei a contribuir e tudo mudou”, “vendi 3 casas que estavam encalhadas” e por aí vai.

No intervalo dos programas, são feitas perguntas do tipo: “Quando tempo você vai esperar para adotar a estratégia certa para destravar sua vida financeira?”

Mas na experiência surreal que parece ser uma sessão de unção de telefone celular, a perplexidade vem com a pregação que acaba com qualquer fé que o ser humano venha a ter no outro.

A cada 10 palavras ditas, pelo menos 50% vão contra a humanidade e a possibilidade de doação sem esperar nada em troca.

“Daquela porta para fora, não dá para contar com ninguém. Quem manda é Satanás”, repete inúmeras vezes o pastor.

Férias de julho: e agora?

Clique na imagem para ampliar!

Outro dia, na Carta Capital, li um texto bastante interessante: Quando as crianças saírem de férias (Mãe nenhuma se preocupava com a chegada das férias dos filhos), de autoria de Alberto Villas, e pensei comigo mesmo: “Comigo mesmo, taí um texto muito bom! Disse tudo!” Mas… Ato contínuo, repliquei: “Cara, será mesmo? Pelo jeito a realidade dele era um pouco diferente da nossa… Será que não dá pra dar uma corzinha mais pessoal nessa história?” Ao que emendei: “É… Pensando bem, até que é…” E fui obrigado a concordar: eu tinha razão.

É que nos dias de hoje, quando se fala nas “férias-do-meio-do-ano” (como era chamada na minha época), as mães já começam a se desestabilizar física, química e espiritualmente num nível subatômico – principalmente as que trabalham! Muitas vezes o descabelamento – tanto capilar quanto emocional – já começa muito antes, quando os pais traçam planos mirabolantes para dar conta de quatro – QUATRO! – míseras semanas com sua prole em casa. E sim, digo “pais” porque, diferente do passado, nos dias de hoje as responsabilidades são muito mais bem divididas e as decisões são tomadas em conjunto de modo a encontrar a melhor saída para a família como um todo. E como todo planejamento sempre dá com os burros n’água e como todo pai tem um quê de Pôncio Pilatos, invariavelmente sobra para a mãe resolver essa equação aparentemente insolúvel de preencher o vazio que entope o tempo dessa criançada moderna quando está de férias…

A mídia como um todo explora esse “filão” (como se não houvesse nada mais relevante pra midiar) e passa dias e mais dias apresentando entrevistas, reportagens, cadernos especiais, com tudo do bom e do melhor (segundo eles) para manter ocupado nossos pequenos petizes.

É um tal de Hopi-Hari num dia, McDonalds noutro, cinema no seguinte, casa dos avós, casa dos amigos, campeonato on line, shopping… Gente, para! Pega toda essa grana gasta com supérfluos e logística e vão todos viajar que vocês ganham muito mais!

Não me lembro jamais, durante toda minha infância, de que alguma preocupação tenha passado pela cabeça da minha mãe sobre o que ela faria comigo e meus dois irmãos no período de férias. Viajar? Ela, costureira; meu pai, mecânico, ou seja: somente quando ELE estivesse de férias (e calhasse de nós também) é que pintava uma ou outra viagem. Caso contrário as férias eram nossas, mas eles continuavam na lida como sempre.

Resumo da ópera: nossas férias eram por nossa própria conta.

A ordem cronológica em casa era a seguinte: meu irmão mais velho, seguido, cerca de um ano e meio depois, por meu irmão do meio e na sequência eu, seis anos depois… Primogênito, do meio e pentelho. Eles tinham muito mais afinidade entre si do que comigo, então o jeito era me virar.

E como me virava!

Invariavelmente, sozinho ou com outros amigos, o quintal da casa era nosso reino. Às vezes o de casa, às vezes os de outras casas. Acordar cedo, buscar pão quentinho na padaria da esquina, comer todo o miolo de ao menos um pão antes de chegar em casa, tomar café com leite e pão com manteiga, sair correndo antes que seu irmão do meio desse o habitual esporro por conta do pão sem miolo que tinha ficado pra trás, e já ir tramando qual seria a “aventura” do dia, cavando, correndo, jogando, lutando (com os chamados “hominhos”) quando as figuras do Forte Apache – tanto o General Custer quanto os índios – combatiam contra os soldadinhos verdes de plástico, invariavelmente auxiliados por cavaleiros da Idade Média, e por aí afora até onde nossa imaginação permitisse…

Os finais de semana das “férias-do-meio-do-ano” (já não expliquei o porquê do nome?) também eram mais divertidos, pois costumávamos acompanhar meu pai e outros amigos da turma da oficina para as pescarias na represa. Acordávamos com o barulho da picadeira lá no curral, no alto do morro, e já subíamos a porra do interminável morro pelo meio do mato com nossas canequinhas esmaltadas para aproveitar um leite quentinho, direto da fonte. Cobras? Aranhas? Outros bichos peçonhentos ou não que estivessem de tocaia no meio desse mato? Deus sempre protegeu as crianças, os bêbados, os loucos e eu (que sou uma mistura de todos anteriores).

Debulhar milho para alimentar as galinhas e os porcos, correr atrás dos quatrocentos gatos que zanzavam por ali vindos sabe-se lá de onde, rolar morro abaixo com os cachorros do sítio (cães de caça, segundo o dono), comer todo o queijo prato destinado a pegar piabas no anzol, correr para o meio do milharal para fugir da bronca por ter comido o queijo prato (nem tava tão gostoso assim…), brincar de esconde-esconde no milharal, voltar todo cortado por conta das porcarias de folhas cortantes do milharal, inventar vários tipos de brinquedos munidos de um toco, dois carretéis de linha, um rolo de barbante e uma lata de sardinha (dá-lhe McGyver!), bem esse era mais ou menos nosso dia-a-dia na roça…

De volta à cidade (e ao quintal) vale lembrar que estamos falando de uma época do ano que normalmente faz frio, certo? Errado. Criança não tem controle de temperatura. Ficávamos descalços praticamente as férias inteiras (os sapatos Vulcabrás eram só para comparecer nas missas de domingo), normalmente sem camisa ou de camisa aberta, encardidos a maior parte do tempo, com leves nuances de higiene somente à hora do almoço, quando minha mãe chegava na porta da cozinha e gritava: “Vem comer, que tá na mesa!”, que se constituía basicamente de feijão, arroz, angu (ANGU, não “polenta” – um dia explico), às vezes um bife, outras batata frita, coisas do gênero – ou seja, uma refeição simples, frugal e deliciosa para os esfomeados que não paravam um minuto sequer.

Aliás, domingo era dia diferente! Missa das crianças pela manhã, pipoca na praça em seguida, Domingo no Parque ao chegar em casa, macarrão e frango ensopado no almoço. Frango assado somente em dias de festa ou quando tínhamos visita. E um detalhe: o frango era comprado vivo, na feira, para ser totalmente preparado em casa. Também num outro dia eu conto os detalhes…

Os limites do quintal eram extrapolados somente para comparecer nos campinhos perto de casa (a praça do coqueiro, bem em frente, as saudosas “Três Quadras”, quase do lado e o campinho das Três Árvores, morro abaixo). As atividades extracurriculares envolviam participar de guerras de mamona, soltar pião, jogar vôlei (já não disse que futebol nunca foi minha praia?), soltar pipa (feito em casa – nada de comprar pronto), provocar as meninas, correr das meninas (CRI-AN-ÇAS… Lembram?), e – desafio dos desafios – enfrentar a descida da Rua do Cemitério numa corrida de carrinhos de rolimã. Também construído em casa. Skate, patins e outras modernidades fazem parte da década de oitenta, que viria bem depois.

“Mãe, vô sair.”

“Vai pra onde, filho?” – perguntava, absorta nas costuras.

“Lá fora.”

“Tá, não demora.”

Quando muito, voltava à noitinha…

Invariavelmente encardido e com algum joelho ralado, cotovelo esfolado, sem o tampão do dedão do pé, ou com alguma unha roxa. Água, sabão e Merthiolate. Não esses de hoje, que mais parecem uma água. Os daquela época tinham que ser ministrados à força, quando minha mãe alicatava meu braço e sob um veemente “NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,VAIARDER!!!!” ainda assim ela passava o remédio.

Mas depois tinha o soprinho…

E em dias de chuva, então? Onde uma criança se esconde? Na chuva, é lógico! E naqueles de chuva forte, o esporte radical favorito de dez entre dez moleques era nadar de barrigada na corredeira do meio-fio!

À noite nada de Internet, Netflix, TV a cabo, o escambau! Se quiséssemos assistir algo era o que tinha na TV aberta e pronto. Por isso mesmo a estratégia era nos afastarmos da sala, onde reinava a portentosa TV Telefunken de seletor e com UHF (que meu pai recuperou das machadadas de meu padrinho – mas essa é outra história), e nos embolávamos no quarto, para fazer pistas em nossas cobertas para os carrinhos Matchbox ou ler algum livro ou gibi antes de dormir. Nos finais de semana havia uma sessão de sábado cujo nome não consigo lembrar e era onde passavam bons e inéditos filmes (precursor bem antigo do tal do Tela Quente) e, lógico, no domingo a janta era obrigatoriamente na sala, assistindo o humor totalmente politicamente incorreto de Os Trapalhões. Creio que já comentei por aqui antes que, se fosse nos dias de hoje, um programa desses jamais emplacaria ante a sanha dos “defensores da moral e dos bons costumes”: um mulherengo conquistador, um efeminado engraçadinho, um negro bêbado e um malandro safado…

Enfim, outros eram os tempos e poucas eram as opções. Talvez por isso mesmo. Éramos obrigados a exercer nossa criatividade num mundo só nosso, diferente daquele em que os adultos viviam. Não tínhamos jogos on line, videogames, Internet, celulares e nem nenhuma dessas distrações que fazem nossas crianças de hoje permanecerem horas a fio diante de um computador.

E nossas mães certamente eram muito mais desencanadas.

E felizes…

Procura-se coerência

Roubartilhei lá da página virtual do jornal Oi diário… Mas entendo PERFEITAMENTE os sentimentos do juiz! O que não é mérito nenhum… :-/

Juiz ‘esculacha’ procuradores de Justiça em Mogi

15 de fevereiro de 2016

O Jornal Oi teve acesso na sexta-feira a uma decisão da Justiça de Mogi que não foi nada interessada para procuradores da prefeitura mogiana que recorreram ao Judiciário para resolver questões que deveriam ser tratadas internamente e não levadas as barras do tribunal. Leia a seguir o despacho bem ‘direto e reto’ do juiz Bruno Miano que é do fórum de Mogi.

A impetrante, APAMAT, ajuíza este mandado de segurança coletivo, pretendendo uma série de informações que não obteve na via administrativa, com base na Lei de Informações. Segundo a impetrante, seu pedido recebeu o nº 52142/15 e, devendo a resposta ser dada até 28 de dezembro de 2015, foi fornecida apenas em janeiro deste ano, sem a suficiência dos informes postulados.

É o relatório. Passo a decidir.

Primeiro e antes de tudo: o Judiciário não é o palco para tricas e futricas entre os senhores procuradores municipais. Que fique consignado – até para caso de haver recurso – que a situação na Procuradoria Jurídica de Mogi das Cruzes passou de insustentável a ridícula, por conta do comportamento infantil e intransigente de alguns de seus profissionais. Profissionais que comparecem no Gabinete deste Magistrado, trazendo “informações” contra colegas. Profissionais que aqui vêm, para lutar contra o projeto de lei que culminou por criar a própria Procuradoria como órgão autônomo. Profissionais que deram pareceres absurdos – enquanto o prédio da Prefeitura estava em reforma – porque “não conseguiam pensar com tanto barulho, pois parecia haver um helicóptero em suas cabeças”. Profissionais que se recusam a conversar com a Procuradora Chefe, mesmo em se tratando de caso de reintegração de posse de área com grande repercussão social, deixando a cargo do Magistrado telefonar ao Prefeito para resolver o impasse!! Profissionais com um pensamento burocrático, que pensam que uma estagiária é o busílis da Administração Pública, a pedra de toque de toda eficiência, a salvação da lavoura!!!

Ora!!

Este Juízo, repito, não é palco, nem servirá de teatro, para que tais profissionais venham, sob falso pretexto de “desrespeito a direitos”, fazer vendeta pessoal, perseguição aos chefes.

Isso é um absurdo! Usar o Judiciário para fustigar os demais colegas, porque não concordam com posturas de chefias, é um atentado à Cidadania, que precisa do Judiciário desafogado para agir no que de fato importa. Se as chefias não agradam, conversem! Mas se elas não infringem preceitos disciplinares, conformem-se!! Repito: se houvesse algo de fato ilegal, a macular as condutas dos chefes da Procuradoria Jurídica do Município (PJM), este Juízo seria o primeiro a invalidá-las, nos termos da lei. Mas o que se vê são picuinhas, e nada mais!!! As informações tinham que ser prestadas em 28 de dezembro (época pior, parece não haver), mas o foram em janeiro. Qual o prejuízo? NENHUM. E foram prestadas conforme a fundamentação feita pela própria impetrante: basta ler as folhas 30/32.

Destaco:

“(…) a associação buscava uma solução para o impasse de substituição da estagiária de uma das procuradoras. Segundo o subprocurador este fato era sem importância para que a associação intervisse. Contudo, antes de assumir o cargo sempre foi ferrenho defensor da estruturação da carreira. Não se entende agora o que pode ter ocorrido para mudar tão repentinamente.

(…)

Portanto, é de suma importância sim que os procuradores de Mogi das Cruzes tenham o apoio necessário para a realização de suas funções e esta associação envidará todos os esforços para que isso ocorra.”

O assunto, pois, era saber todos aqueles dados para confrontar com a falta do estagiário. Se os informes se relacionavam com esse assunto, e se o estagiário foi contratado (se exclusivo ou não, isso nem mesmo é objeto do pedido), não havia mais nada a informar. Houve perda do objeto! Não há direito líquido e certo em atrapalhar a Administração Pública com pedidos de informações, quando já se obteve o que queria. Estamos, repito, diante de mais um capítulo da eterna briga entre os grupos da Procuradoria Jurídica. Com o uso indevido e incorreto do Poder Judiciário. Por isso, ausente qualquer direito líquido e certo, INDEFIRO ESTA INICIAL E JULGO EXTINTO ESTE PROCESSO, com base no art. 267, I, do CPC.

Com a palavra os procuradores responsáveis pela ação extinta pelo juiz mogiano.

Envelhescência

Mario Prata

Se você tem entre 45 e 65 anos, preste bastante atenção ao que se segue. Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá. E, se já passou, confira.

Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro partes: infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto. Esqueceram de nos dizer que, entre a maturidade e a velhice (entre os 45 e os 65), existe a ENVELHESCÊNCIA.

A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim como a adolescência é uma preparação para a maturidade. Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência.

E, se você está em plena envelhescência, já notou como ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso:

– Já notou que andam nascendo algumas espinhas em você? Notadamente na bunda? [Nota: em mim, não!]

– Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de meninas de vinte anos.

– Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhescentes, também. Mudamos o nosso ritmo de falar, o nosso timbre. Os adolescentes querem falar mais rápido; os envelhescentes querem falar mais lentamente.

– Os adolescentes vivem a sonhar com o futuro; os envelhescentes vivem a falar do passado. Bons tempos…

– Os adolescentes não têm ideia do que vai acontecer com eles daqui a vinte anos. Os envelhescentes até evitam pensar nisso.

– Ninguém entende os adolescentes… Ninguém entende os envelhescentes… Ambos são irritadiços, se enervam com pouco. Acham que já sabem de tudo e não querem palpites nas suas vidas.

– Às vezes, um adolescente tem um filho: é uma coisa precoce. Às vezes, um envelhescente tem um filho: é uma coisa pós-coce.

– Os adolescentes não entendem os adultos e acham que ninguém os entende. Nós, envelhescentes, também não entendemos eles. “Ninguém me entende” é uma frase típica de envelhescente.

– Quase todos os adolescentes acabam sentados na poltrona do dentista e no divã do analista. Os envelhescentes, também a contragosto, idem.

– O adolescente adora usar uns tênis e uns cabelos. O envelhescente também. Sem falar nos brincos.

– Ambos adoram deitar e acordar tarde.

– O adolescente ama assistir a um show de um artista envelhescentes (Caetano, Chico, Mick Jagger). O envelhescente ama assistir a um show de um artista adolescente (Rita Lee).

– O adolescente faz de tudo para aprender a fumar. O envelhescente pagaria qualquer preço para deixar o vício.

– Ambos bebem escondido.

– Os adolescentes fumam maconha escondido dos pais. Os envelhescentes fumam maconha escondido dos filhos.

– O adolescente esnoba que dá três por dia. O envelhescente quando dá uma a cada três dias, está mentindo.

– A adolescência vai dos 10 aos 20 anos: a envelhescência vai dos 45 aos 60. Depois sim, virá a velhice, que nada mais é que a maturidade do envelhescente.

– Daqui a alguns anos, quando insistirmos em não sair da envelhescência para entrar na velhice, vão dizer: “É um eterno envelhescente!”

Que bom.

Cicatrizes

Hoje, logo após me levantar, já tendo enxaguado o rosto com água em abundância, comecei a olhar aquele sujeito que me mirava do outro lado do espelho. Aquela vetusta barba branca (outrora preta, num longínquo passado), o cabelo mais grisalho do que se poderia esperar (cada nova preocupação na vida, um novo fio de cabelo branco), olheiras cansadas, já denotando o acúmulo de responsabilidades dos últimos anos… Enfim, estava à procura de mim mesmo quando a percebi, ali, onde sempre estivera: uma pequena cicatriz do lado de meu olho esquerdo.

Não sem um sorriso me lembrei de quando adquiri essa, que talvez tenha sido a primeira de muitas outras. Criança, uns cinco anos eu acho, correndo desembestado e olhando pra trás, provavelmente por conta de alguma brincadeira ou traquinagem (sendo a segunda opção a mais provável), quando resolvi olhar pra frente… BONC! Tá, não foi bem esse o barulho, mas vocês pegaram o espírito da coisa. Dei de cara com o muro do vizinho, daqueles com chapiscão grosso, com pedra e tudo, formando uma camada totalmente não uniforme, com pelotas de cimento sobressaindo por todos os lados. É lógico que cheguei em casa aos berros, com um olho a mais no rosto. Do pouco que me lembro, sei que meu pai decidiu que não iria me levar para nenhum lugar para dar pontos, pois ficou com receio que, de alguma forma, aquilo afetasse minha vista.

E essa foi só a primeira de muitas outras cicatrizes…

Provavelmente a seguinte deva ser uma outra que tenho também no rosto, também do lado esquerdo, na base inferior da bochecha. Hoje, quando imberbe, muitas vezes quem olha acha que alguém me deixou uma marca de batom… Mas quando a adquiri, era bem diferente! Numa festa de casamento num local cheio de escuridões chamado Piraquara Clube, à beira do Rio Paraíba, a criançada se divertia na brincadeira de pega-pega. Eu inclusive. Devia ter uns sete, talvez oito anos… E, naquela correria no meio da escuridão, não mais que de repente senti bater em alguma coisa que esticou e me jogou pra trás, tal qual a corda de um arco que se retesasse antes de disparar a flecha. E a flecha era eu. Imaginei que fosse algum tipo de varal – que, de fato, era – mas após colocar a mão no rosto e vê-la voltar totalmente ensanguentada, só sei que saí aos berros a procurar meus pais, para desespero de todos na festa que viam aquele moleque gorducho empapado em sangue passando a seu lado. Mais tarde vim a saber que se tratava realmente de um varal, só que, conforme o costume dos antigos, de arame farpado (que era pra não precisar de prendedores). Isso me custou sete pontos na parte mais profunda da contusão e pequeninas outras cicatrizes que foram desaparecendo com o tempo, que vinham desde a orelha até o queixo, bem próximo de meu lábio inferior.

Após alguns anos de relativo bom comportamento, foi na adolescência que arrebentei meu joelho direito. A tropinha da época “rachava” uma cinquentinha para uso de todos e fui atrás do rapaz que estava com ela naquele dia. Casa bonita, com grades baixas, muros e paredes de ardósia. Bati a mão na grade e pulei para o lado de dentro para tocar a campainha. Toca, toca, toca… Nada! Ninguém em casa. Paciência. Do mesmo jeito que entrei foi o mesmo jeito que resolvi sair: pulando sobre a grade baixa. Mas calculei mal a distância e quando me arremessei por sobre a gradezinha enfiei o meio do joelho bem na quina da coluna de ardósia. Foi como abrir um livro. Só que no joelho. Apenas cinco pontos desta vez e a consciência de que voltar a dobrar a perna após um longo período de imobilidade é simplesmente uma droga.

Não muito tempo depois outra cicatriz, dessa vez por queimadura, na minha mão esquerda (ô ladozinho ativo!). Basicamente em decorrência de Longa Sina de Desastres, acho que uma de minhas mais arraigadas características desde que me conheço por gente. Pra todos efeitos foi por conta de prender a mão num escapamento quente enquanto consertava uma moto. Só pra constar: outra de igual monta e quase a mesma justificativa encontra-se hoje no peito de meu pé. Desta vez o direito.

A cicatriz seguinte foi mais “bem comportada”, digamos assim… É que fui acometido de um troço chamado cisto cóccix lombar, uma espécie de espinha eterna que fica bem em cima do último ossinho da coluna, quase lá na porta do… Bem, vocês sabem onde. Uma porcaria que dói pra diabo e não termina nunca, por mais que se esprema a maldita espinha. A remoção desse coiso é cirúrgica e – pasmem! – a cicatrização tem que ser feita de dentro pra fora, com trocas diárias de curativo, sem poder dar um ponto sequer. Foi quando fiquei uma temporada comportado em casa, de quina pra lua, lendo tudo que tinha pra ler, sob os cuidados de um enfermeiro amigo meu. E foi também quando, na época, minha cunhada entrou no meu quarto para “conferir o material” e poder esfregar na cara de meu irmão: “Isso sim é que é bunda! Não é como você, que tem que andar com uma carteira em cada bolso pra poder dar enchimento!”

Passada a vergonha – e a cicatriz – daquele momento, a próxima, clássica, dar-se-ia, muitos anos e uma ou duas vidas depois, quando do acidente, matéria exaustivamente explorada nas entranhas deste blog. Basta lembrar que dormi ao volante e atropelei uma desavisada árvore que passeava no meio da rua lá pelas onze e meia da noite. Me rendeu uma senhora de uma cicatriz na perna esquerda (garanto-lhes que ver o próprio osso enquanto sua pele cicatriza não é das experiências mais agradáveis), uma outra no pulso direito, decorrente de uma cirurgia que tive que fazer para remover um cisto que se formou por conta da trombada e, por fim, uma outra, longa, esqueci quantos pontos, no próprio joelho esquerdo, para uma vã tentativa de reaujuntar os ligamentos posteriores rompidos. Religou, mas a porra dói. O. Tempo. Todo. Às vezes mais, normalmente menos. Verdadeiro House encarnado, este sou eu, hoje.

Mas existem também cicatrizes totalmente ocultas que incomodam muito mais que qualquer uma das que citei. Cicatrizes do coração são dessas: perturbam quando não mais queremos lhes dar atenção e se fazem presentes nos piores momentos possíveis. E saibam que cicatrizes de paixões mal resolvidas são piores que as de amores sepultados. Enquanto estas somente coçam de vez em quando, aquelas não fecham, ficam expostas, doem quando querem e fazem nosso peito quase explodir. São difíceis de administrar, quase impossíveis de controlar. Somente com o tempo e com boa dose de indiferença (ou de uísque) conseguimos colocá-las em seu devido lugar.

E mais uma vez olhando para aquele espelho e me achando tão imperfeito quanto poderia me achar, encontrei meus próprios olhos. E também encontrei aquele meu próprio olhar que, mesmo nitidamente cansado, ainda era o mesmo olhar de dez, vinte, trinta anos atrás! Reconheci naqueles combalidos olhos o mesmo olhar de quando acordava quando criança, mirando outros espelhos, antes de sair para minhas estripulias.

Mas, apesar daquele meu olhar ainda estar ali presente, uma singela faísca num templo que caminha para a ruína e para o esquecimento, ainda assim os olhos são espelhos da alma

E quem meus olhos hoje vê, acaba por não perceber mais aquele meu olhar (mérito apenas de quem sabe me enxergar). Percebe apenas as cicatrizes. Da alma.

Cicatrizes causadas pelos desapontamentos, pelas desilusões, pelos fracassos. Sempre por conta de outrem – e, sim, tenho consciência de minhas culpas e responsabilidades, mas o que efetivamente marca a alma são as atitudes daqueles que logram nossas expectativas.

E por acreditar – porque sempre vou tentar buscar o melhor de cada ser humano que conheço – também sempre acabo por me machucar. Reiteradamente. De novo, de novo e de novo. Queria voltar a ter a singeleza da ignorância, que me permitia passar incólume a tudo e a todos: ignorava os pré-conceitos, ignorava as arrogâncias, ignorava as atitudes vis, ignorava as mesquinharias, ignorava as mentiras, enfim, ignorava a parte mais baixa que cada ser humano – sem exceção – possui dentro de si e utiliza para satisfazer suas próprias vontades, suas próprias crenças, seus próprios interesses.

E a vida em harmonia com a sociedade me parece algo cada vez mais distante…

As instituições estão falidas? Não, meus caros, o ser humano está falido.

Simples assim.

E mais uma vez, agora exausto por tantas conclusões, volto minha face para o espelho. Sim, estou velho. Velho e cansado. Como as estrelas…

Mas…

Mesmo as estrelas, ainda que velhas e cansadas – até as que já deixaram de existir – ainda assim não cumprem sua tarefa? Não são elas que existem para brilhar e dar vida e compartilhar vida? Não quero – não posso – crer que somos meros frutos do acaso, que meramente habitamos a terceira rocha que circunda um sistema solar periférico por conta de algum capricho da natureza, que nos tenha feito brotar de um nada só para que a esse nada voltemos. Creio, sim, no sagrado, no sentido traçado, no destino planejado. Que há Alguém lá do outro lado que se ri da infantilidade de todas essas minhas incertezas.

E, derradeira, vez, olho para o espelho. E lá está ele. Aquele meu olhar. Não mais fagulha, não mais mortiço. Agora ressurge pleno, vívido, sagaz, brilhando, fechando e dissipando as cicatrizes de minha alma. Dissipando minhas dúvidas. Gritando para mim que não devo me deixar abater. Não vou. Não por conta de outrem – jamais! A vida é, sim, bela – e azar daqueles que não sabem apreciá-la, presos que estão em suas próprias torpezas!

E, assim, nesse embaçado espelho, nesta fria manhã, por trás da barba e cabelos brancos, das rugas e das olheiras, consigo finalmente (re)encontrar meu ponto de fé, em tudo e em todos. E volto a enxergar novamente minha alma que brilha: criança que sou e sempre serei.

Até o fim de meus dias.