Ah, e que bela primeira noite fora de casa… insone!
Não sei por que cargas d’água, o sono simplesmente não veio. Ou melhor, veio e se foi. Deu uma passadinha rápida, lá pelas dez e tantas, mas já às duas, sem mais nem menos, foi embora, sem bilhete, sem recado, sem flores e me deixou ali, estarrecido. E acordado.
Tudo bem que usualmente eu já durmo apenas de quatro a seis horas. Mais que isso me traz complicações tanto materiais (coluna fica arrebentada) quanto não (sonho demais). Mas pelo nível de cansaço, pensei que só iria acordar dali uns três dias…
Talvez um pouco disso tenha sido pelo Jean, que, logo após o apagar das luzes veio se enfiar bem no nosso meio – coisa que não fazia desde bebê. Só que ele cresceu, né? E a cama era menor que a usual. Outro tanto, também, talvez pelo Erik, que lá pelas quatro, comigo ainda acordado fitando o teto e percebo um pequenino vulto do outro lado da cama – me apoio no cotovelo e dou uma olhada por sobre todos e lá estava ele: parado, nos olhando, sorriso lambeta e, num cumprimento, faz um gesto amplo de meia lua com a mão dizendo: “acordei…”
Chamo o magrelinho pro meu lado, coloco-o debaixo das cobertas, abraço-o e percebo que não vai rolar tentar dormir nos trinta centímetros de cama que me sobraram. Ainda mais com a sinfonia de roncos (ronquinhos?) que ele e o irmão passaram a se dedicar. Fui me deitar no outro quarto e, por mais que tentasse aquietar a mente, ela estava em seu próprio comando, pensando em blogs, livros, edições, genealogia, publicações e reforma no quarto dos meninos. Bem como na organização de meus livros no novo cubículo escritório.
E, quando menos espero, já com um ligeiro raiar do sol pelas frestas, um turbilhão de passarinhos cantando veio dar um benfazejo bom dia a todos…
Mesmo com a malfadada chuvinha fina fomos até o Parque das Águas, lugar que já havíamos visitado há cerca de oito anos, com o Jean ainda lá pelo seu sexto mês dentro dentro da Dona Patroa. Não falei disso? Que a previsão do tempo tinha avisado na véspera que os próximos dias seriam de chuva? Ou será que não falei que já havia estado nesta cidade antes? Que foi um dos prenúncios da futura situação de meu joelho, quando num pedalinho, no meio do lago, contra o vento, com duas crianças e uma mulher grávida, tive que penar, pedalando à toda, para fazer o “cisne encantado” voltar para o cais. Detalhe número um: por mais que me esforçasse em me ajeitar, o espaço entre o banco, os pedais e o painel era insuficiente, de modo que a cada volta eu batia meu joelho. Sim, o esquerdo. Detalhe número dois: essa é uma das lembranças mais antigas que o Kevin, o filhote mais velho, ainda guarda na mente…
Graças aos céus a chuva fina nos impediu de novamente experimentar os pedalinhos – coisa que o meu querido, amado, idolatrado, salve, salve, primogênito (sarcasticamente, é óbvio) estava louco para andar.
E assim, no pouco tempo que ficamos em Caxambu, dada a correria dos poucos dias para “cumprir” o trajeto, divertimo-nos com o passeio (sob fina chuva), com o resgate de algumas boas lembranças do passeio anterior, com o saborear pela Dona Patroa das diversas fontes de água radioativa – o que me deu certo receio de, doravante, irritá-la e não mais que de repente ela começar a assumir tons esverdeados…
Mas, enfim, após a indispensável visita à sempre presente armadilha para turistas feirinha de artesanato, com compra de doces e outras lembrancinhas possíveis mais, toca pra pegar estrada.
Aliás, como já é de praxe, ficção é bobagem pois a vida nos dá munição. Enquanto esperava a Dona Patroa e a prole sair de uma das lojinhas, fumando um cigarro do lado de fora, eis que me passa um casal de velhinhos, obviamente turistas de outro estado:
“Olha ali, no carro!” – ela diz.
“Que é que tem?” – ele resmunga.
“Tá escrito UAI!” – é o que ela fala com um sorriso estampado no rosto.
“É. Mas escreveram errado. Escreveram com a letra ‘W’…” – diz ele, ao final, em tom professoral.
Entre uma tragada e outra olho para o carro adesivado do qual falavam e quase engasgo.
Mas tava lá.
Fiat WAY.
Bem, depois dessa, voltamos para pegar o Poseidon e já com novo rumo definido: Santa Rita de Jacutinga, terra natal de meu pai.
Cabe aqui contar um pequeno detalhe acerca da Madame GPS. Talvez eu devesse ter acessado a Internet para fazer uma atualização de seus mapas. Talvez, cá pra esses cantões de Minas, não tivesse adiantado nada. Mas o negócio é que, de quando em quando, a bichinha ficava meio perdida (como já contei antes) com a setinha a flutuar no vazio do espaço, sem estrada nenhuma em seus registros. Só que, no que diz respeito a Caxambu, a cidade sequer existe! Nem uma rua. Nada mapeado! É óbvio que, por causa disso, a Madame ouviu vários impropérios deste que vos tecla. Inclusive da Dona Patroa. Até mesmo do filhote nº 1. Bem-humorados, sim. Mas, ainda assim, impropérios.
E eu devia saber que haveria retaliação…
Daí uma proveitosa lição: nunca confie num GPS depois de ofendê-lo!
O que seria uma rota até fácil, quase que em linha reta (apesar das curvas), se transformou num grande ponto de interrogação. Perdemos a entrada – pra variar – e a danada da Madame (que agora já tinha se aprumado numa estrada) nos mandava virar à direita num abismo, ou recalculava a rota para nos jogar contra um paredão de rocha, coisas do gênero. Com isso, tendo passado a cidade de Bom Jardim de Minas, onde deveríamos pegar o trecho final para Santa Rita de Jacutinga, acabamos parando trinta quilômetros adiante para almoçar num simpático restaurante de beira de estrada (e com um maravilhoso doce de leite como sobremesa).
Conversa daqui… Conversa dali… E Santa Rita? Vocês já passaram. Mas pra São João Del Rey? Também ficou pra trás! Pra onde vai essa estrada? Juiz de Fora! – e por aí seguiu o proseio.
De qualquer ângulo que olhássemos teríamos mesmo que voltar. Na verdade fez falta um mapa de papel. Somente para consultas globais, à parte das indicações assassino-vingativas da Madame GPS. O que me levou a ter que aguentar por um bom tempo o ar de superioridade da Dona Patroa (que tinha recomendado trazê-lo). Não foi colocado em palavras, mas que ela estava comichando para soltar um “eu te disse!” (tal qual aquela lambretinha do antigo desenho “Carangos e Motocas”), ah isso ela estava!
Com tempo perdido e dúvidas no ar, refizemos nosso trajeto. Até porque em Santa Rita existe em sua grande maioria (assim o li, pelo menos) belezas naturais, cachoeiras, visitas à antigas fazendas, etc. Coisas quase que impraticáveis num dia de chuva. E, ademais, não trouxe o endereço da parentada a quem visitar (ainda que – pasmem! – eu tenha uma certa timidez para tanto). Resolvi(emos) tocar direto pra São João Del Rey e, sob recomendações, dali pra vizinha Tiradentes. Bastava voltar, virar à direita em Andrelândia e seguir em frente.
Mas antes de Andrelândia, tinha Arantina. E no meio do caminho havia uma placa. E havia uma placa no meio do caminho. E um GPS desacretitado dentro do carro. Então, seguimos a placa! E, é lógico, fomos parar numa estrada de terra.
Táquiôspa!
Trollados até pela sinalização viária!
Como “quem tem boca vai à Roma”, não demorou nada e já retomamos o caminho.
E recomeçou a chover.
Já disse que detesto dirigir com chuva?
Tava me sentido o Gomes dirigindo o cupê maldito da Família Addams…
Já sem chuva paramos em Andrelândia, cidadezinha acolhedora mas que parece desprovida de atrativos. Só mais tarde vim a saber de sua fama pelas vinículas que possui. Fomos até o “Morro do Cristo” (parece que quase toda cidade tem um), com um ótimo mirante, e através dos mapas do Iphone pudemos estabelecer uma rota com maior segurança. Aliás, depois disso, enciumada, a Madame GPS passou a dar o caminho (quase) certo… E eu posso com isso? Briguinhas internas entre traquitanas tecnológicas?
Passamos por São Vicente de Minas (famosa, por sua vez, pelos queijos frescos), Carrancas (cidade da Esther, autora de um maravilhoso livro sobre a família), Madre de Deus (onde ainda hei de voltar para pesquisas genealógicas) e rumo certo para São João Del Rey.
Nisso constatamos uma coisa interessante. Fizemos errado. Desde o início. Pelos poucos dias disponíveis deveríamos ter escolhido apenas um lugar para visitar e explorar com calma. Uma maratona como essa meio que deixa de lado seu propósito cultural original. O fato de toda hora nos perdermos pr’aqui e pr’acolá não foi efetivamente problema nenhum – aliás, foi tratado com muito bom humor por todos nós, inclusive as crianças. Mas o “perder-se” poderia ter gerado dividendos maiores, parar com calma, sem pressa, conhecer cada cidadezinha, falar com as pessoas, descobrir seus atrativos, coisas do gênero. Disso tiramos duas linhas: primeiramente que ainda voltaríamos a fazer esse circuito quando TODOS estivessem de férias; segundamente que não iríamos mais para Ouro Preto, de modo a poder conhecer com calma tanto São João Del Rey quanto Tiradentes.
Chegando à cidade fomos procurar um hotel próximo ao centro histórico para que pudéssemos fazer os trajetos a pé. Aliás, por incrível que pareça, coisa rara por aqui é hotel com estacionamento! Não demorou muito encontrei e a Dona Patroa encontrou um. Preço salgadinho, mas tudo bem, tava coberto pela economia que fizemos no anterior…
E a frase do dia, talvez melhor compreensível somente para quem já leu um livro chamado “Crianças e suas vidas passadas”, mais uma vez veio do Jean. Ao subirmos para nossos quartos no segundo andar, ele foi até a janela e contemplou a vista de casarios antigos, bem como o canal que corta a cidade, todo gramado, com suas pontes de pedra e disse:
“Que lindo! Parece que a gente está em Paris!”