Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – VI

Os descaminhos da liberdade

Um estudo sobre a escravidão na Era Hiboriana.

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.” Esta é uma das frases que tornou notório o grande escritor Eric Arthur Blair (George Orwell), autor, entre outras obras fantásticas do magistral e polêmico romance 1984. Não deixa de ser uma frase irônica, apesar do contexto em que se situa no romance A Revolução dos Bichos, cuja trama trata justamente do processo de dominação de alguns animais sobre outros após a conquista de uma fazenda por todos.

Aliás, conquista, dominação e o “ser mais igual do que os outros” sempre foram uma constante na história do animal homem, e na Era Hiboriana de Conan, não foi diferente.

Ninguém sabe ao certo como o escravismo teve início nesse período muito anterior ao império romano mas, se ele acompanhou a história da escravidão do mundo que conhecemos, suas raízes se encontram entre os povos primitivos que mais tarde se tornariam atlantes e valusianos, milênios antes do tempo do bárbaro de bronze.

A princípio, falando de épocas mais remotas ainda, os prisioneiros do sexo masculino das frequentes guerras e saques eram provavelmente torturados e oferecidos em sacrifício aos deuses dos vencedores, enquanto as mulheres e crianças seriam agregadas às tribos triunfantes, já que as culturas nômades dispensavam o uso de escravos.

Com o aprimoramento da organização sócio-econômica dos povos, associado ao constante fator beligerante da época, a necessidade da força de trabalho passou a fazer parte da vida das pessoas. Surge então o escravo, na figura do prisioneiro – a princípio um capricho reservado para reis e capitães, e depois, indistintamente.

Com o advento da era escravista pré-hiboriana houve a importante descoberta do comércio escravo, uma fonte de renda rápida e altamente lucrativa. Assim, quando o Rei Kull governava a Valúsia, a escravidão já era uma realidade instituída e, mesmo após o cataclismo que tragou a Atlântida e parte do continente turaniano e concorreu para que muitos dos sobreviventes regredissem à selvageria, a atividade abominável persistiu, tanto que, oito mil anos mais tarde, já na Era Hiboriana, apenas alguns reinos mais civilizados como os da Aquilônia, Argos e Nemédia possuíam leis de proteção aos escravos, ainda que suscetíveis às conveniências de certos reis inescrupulosos que não as cumpriam.

Traçamos, a partir de agora, um perfil da escravidão na era de Conan.

O Leste

Turan – Operou extenso comércio escravo que abrangia pontos que iam de leste a sul das nações hiborianas, atravessando Zamora, sua vizinha mais próxima ao oeste. O próprio Conan teve sua segunda experiência com a escravidão como prisioneiro, marchando com uma caravana turaniana para Shadizar, capital de Zamora, quando foi salvo por um conhecido. Os escravos da caravana eram chamados “bens de comércio humano”.

Alguns donos de escravos não eram maus para seus “bens”, mesmo em Turan. Atalis, o astuto sábio de Yabalet, é um exemplo deles, muito embora tivesse enviado sua escrava, Hildico, a brituniana, a um campo de batalha em busca de Conan, onde a jovem foi duramente castigada. Quando Conan deixou Yabalet, após uma transação com o mágico de Munthassem Kahn, levou Hildico consigo como recompensa.

Severos ou não, o fato é que os turanianos escravizavam até mesmo membros de famílias nobres do oeste, como foi o caso de Octávia, filha de um lorde nemédio. Capturada por saqueadores de Jehungir Agha, ela tinha esperança de que Conan, então com os kozakis nas estepes hirkanianas, a visse e a comprasse. De fato, o bárbaro adquiriu a posse da garota em Xapur, uma ilha do Mar Vilayet, mas isto se deu graças à vontade e entusiástica interferência de Olivia.

Os turanianos também usavam seus escravos como espiões, como um estígio sem nome, sobrevivente da horda de Natok, o oculto, derrotado por Conan.

Vendhia – Em sua capital, Ayodhya, a morte de Ghunda Chand foi presenciada não só por sábios, sacerdotes, oficiais da corte e sua irmã Yasmina, como por várias escravas. Mais tarde, Yasmina, a divina de Vendhia, foi capturada pelo mestre de Yimsha, sacerdote-mor do Círculo Negro, que pretendia mantê-la como escrava.

Zamora – Shadizar e talvez Arenjun serviam como entreposto comercial para caravanas turanianas de escravos vindas do leste e do sul, provavelmente mesmo depois que o império turaniano passou sobre a fronteira leste de Zamora.

Khorajá – O filósofo Astreas, em uma carta a seu colega e amigo Alcemides, da Nemédia, relatou que a Rainha Taramis (em verdade, sua irmã gêmea, a bruxa Salomé), havia permitido que a capital fosse tomada por mercenários shemitas e que os khauranianos estavam sendo sistematicamente massacrados, sacrificados ou vendidos como escravos para os turanianos.

Iranistão – Os Filhos de Yezm, na cidade Yanaidar, oculta entre os Montes Ilbar, constituíam uma sociedade totalmente machista, em que todos os homens eram livres enquanto as mulheres, escravas, eram encarregadas de fazer com que yezmitas drogados recém-chegados acreditassem estar no paraíso prometido aos que servissem a Magus.

Zamboula – Ao visitar a cidade sob controle de Turan, no Deserto Kharamun, uma sangrenta e arriscada aventura possibilitou a Conan descobrir que seus escravos eram canibais e à noite rondavam a cidade para conseguir seu execrável alimento. E ao perguntar à jovem que acabara de salvar dos negros antropófagos por que os cidadãos de Zamboula não se livravam daquela ameaça, Zabibi, como ela se dizia chamar, ou Nafertari, amante de Jehungir Kahn, respondeu que além dos selvagens serem escravos valiosos, eram também numerosos e seriam capazes de se revoltar caso a carne humana lhes fosse negada. Aliás, em vista de tal situação, a melhor solução encontrada por alguns cidadãos da cidade foi abastecer os canibais com a carne dos numerosos estrangeiros que visitavam Darfar.

Kush e os Reinos Negros

Há indicações de que muitas tribos do litoral de Kush e das nações costeiras do sul atacavam tribos negras do interior para conseguir “bens de comércio humano” e vendê-los para os navios que ancoravam em sua costa vindos de Argos, Zíngara e Shem.

Algumas tribos interioranas também praticavam essa atividade atacando o sul da Stygia em busca de escravos brancos. Lívia, a ophiriana que Conan salvou dos bakalans no sul de Kush, fôra capturada por escravistas negros em Khesatta, cidade estígia de magos, para servir aos caprichos particulares do rei tribal Bajujh.

A escravidão branca foi igualmente utilizada em Meroc, capital de Kush. A jovem nemédia Diana, que fôra aprisionada por caçadores de escravos shemitas em um navio argoseano e depois vendida aos kushitas, acabou sendo presenteada à rainha Tananda e por fim salva por Conan.

Um negro que atacava os Reinos Negros em busca de escravos, antes de se tornar um dos governantes de Tombalku, era Sakumbe, cujos maiores interesses, segundo Conan, eram marfim, ouro em pó e escravos.

O próprio bárbaro do norte e Chabela, futura Rainha de Zíngara, foram escravizados após serem capturados pelos ghamatas – nômades dos desertos da fronteira meridional da Stygia, para os quais a caça de escravos era muito difundida – e vendidos para Nzinga, a rainha.

Porém, se Chabela se viu sobrecarregada com as mais extenuantes e vis tarefas, o cimério teve que atender às exigências pessoais da rainha, o que, conhecendo o aventureiro como já conhecemos, certamente não foi missão desagradável – aliás, surgiram até boatos de que ele foi o pai de uma futura rainha amazona. A escravidão desempenhou importante papel na ascenção e queda de Xuchotl, a estranha cidade de um só edifício, ao sul de Darfar e Keshan.

Os tlazitlanos que deixaram Kosala, no leste, passaram a vagar pelas estepes do sudoeste onde escravizaram tribos negras para a construção de uma cidade de jade, marfim, mármore e metais preciosos. Quando a obra estava terminada, os escravos foram mortos e, segundo disseram a Conan, de seus ossos foram criados os dragões que guardavam a cidade.

Mais de meio século antes do cimério e Valéria visitarem Xuchotl, um outro escravo, Tolkemec, de uma tribo de genealogia estígia, traiu seus senhores a uma tribo próxima à de seus ancestrais e vingou-se dos tlazitlanos nas próprias câmaras de tortura da cidade.

Os novos donos de Xuchotl também utilizaram o trabalho escravo. Um de seus governantes valeu-se dele para construir uma passagem secreta da sala do trono até o portão oeste e assassinou os trabalhadores ao final da obra para que ela permanecesse em segredo.

Em Yanyoga, a cidade-caverna situada a sudeste de Zimbabo, a Rainha Lilit contou a Conan que sua raça descendia de aventureiros vendhianos que haviam escravizado uma raça de aborígenes de pele amarela. Contudo, o relato era falso. Lilit e sua raça eram, na verdade, descendentes do povo serpente, já enfrentados pelo Rei Kull da Valúsia.

O Sul

Stygia – Existia umintenso comércio de escravos entre Kush e a Stygia, embora nenhuma das nações pagasse pelo “artigo” mas, na verdade, se saqueassem por ele. Um típico destacamento estígio de saque-escravo era constituído de quarenta cavaleiros, todos matadores experientes. Seu procedimento usual consistia em cercar uma aldeia negra durante a noite e atacar ao amanhecer. Os cativos saudáveis eram acorrentados e levados para os leilões do norte, enquanto os muito jovens, velhos ou fracos demais para sobreviver à viagem, eram imediatamente executados.

Em termos de crueldade, os estígios aparentemente eram os piores do mundo hiboriano. Exemplo disso foi o frio pirata baracho de Kush Meridional, membro da tripulação de Conan na viagem à Antillia, no Mar do Oeste. Quando jovem, ele fôra capturado por caçadores de escravos estígios, que, por uma razão inexplicada, cortaram sua língua.

Shem – Os senhores de escravos shemitas empreendiam expedições marítimas para saquear as matas de Kush. Juma foi uma das vítimas de tais empresas, levado quando criança de sua tribo e vendido no leilão de Shem, onde trabalharia no campo. Porém, quando seus donos notaram sua predisposição para um porte físico gigantesco, venderam-no para Argos, para se tornar gladiador.

Para a maioria das mulheres hiborianas, a escravidão em Shem era terrível. Natala, uma jovem brituniana, foi escrava em uma cidade shemita desconhecida, assolada pelos sobreviventes de um exército mercenário que lutara pelo príncipe Almuric de Koth. Conan a levou consigo quando o bando fugia da cidade após saqueá-la e juntos atravessaram a Stygia e enfrentaram as adversidades do deserto meridional de Kush que, apesar de terríveis, eram preferíveis à escravidão num harém shemita.

Vale acrescentar que entre os próprios shemitas houve vários escravos. Cerca de nove séculos antes de Conan, eles faziam parte do corpo de escravos dos gazali do sul de Koth, um povo expulso de sua terra devido à perseguição religiosa. Quando os escravos fugiram, se juntaram às tribos selvagens dos desertos. Lissa, uma gazali, contou a Amalric, um jovem soldado mercenário aquiloniano, que os escravos não haviam sido maltratados, mas que provavelmente sofreram alguma ameaça e por isso fugiram.

Outra hiboriana vendida nos leilões de Shem foi Muriela, uma dançarina corinthia. Quem a comprou foi um ladrão shemita de nome Zargheba, que a levou para Akbitana, onde Conan a viu pela primeira vez, e depois para Keshan, onde, em Alkmeenon, forçou-a a passar-se pela princesa Yeleya.

O forte sotaque corinthio de Muriela e uma marca congênita que carregava, revelaram sua identidade a Conan, que se apossou dela e a levou consigo, não como escrava, mas como amante e companheira, o que ela aceitou sem hesitar. Juntos encontraram inesperado destino em Punt.

As Nações Bárbaras

Os Sertões Pictos – Não há evidências de que a escravidão tenha existido nesta região como traço típico. Os pictos praticavam a pesca e a caça para sobreviver e não possuíam qualquer tarefa que considerassem desprezível e que não pudesse ser desempenhada por suas mulheres. Eventuais prisioneiros não eram escravizados, mas torturados até a morte.

Na costa oeste, contudo, existiu uma prática especial de escravidão, o servilismo. Os servos eram camponeses que possuíam seu próprio meio de subsistência, mas não a liberdade pessoal, devendo sempre um excedente de sua força de trabalho ao senhor da terra. A grande diferença entre servos e escravos é que os primeiros não podiam ser vendidos nem afastados de sua porção de terra, embora, ao fugir da vingança de Thoth Amon, o conde Valenso de Korzetta tenha levado vários servos para o exílio.

Tina, a jovem acompanhante ophiriana da sobrinha de Valenso, Lady Belesa, fôra escrava de um perverso oficial da marinha. Por meios desconhecidos Belesa afastou a garota do seu senhor.

Ciméria, Vanaheim e Aesgaard – Nunca houve escravos nessas regiões simplesmente porque seus povos eram independentes demais. Conan, o cimério, porém, foi escravo no mínimo quatro vezes em sua turbulenta existência, possuindo assim um motivo a mais para abominar a escravidão. Certa vez, ele indagou a um nobre aquiloniano seu amigo:, “Não é melhor morrer honradamente a viver como um verme? Será que a morte é pior do que a opressão, a escravidão e humilhação total?”

Contraditoriamente, porém, o cimério aconselhou Lady Belesa nos Sertões Pictos a comprar escravos. Quando ela, Tina e os sobreviventes do grupo de Valenso se preparavam para deixar a costa picta a bordo do navio de um nobre aquiloniano que procurava Conan, o bárbaro deu à zíngara um saco de rubis e disse a ela que voltasse a sua terra, vendesse as gemas para comprar uma casa grande, escravos e boas roupas… e procurasse um marido.

Antillia – Pouco se sabe sobre a escravidão nesta ilha a oeste do mundo hiboriano, embora ela tenha existido lá. Sabe-se que os escravos enviavam mensagens para seus donos e os carregavam em palanquins pelas ruas de Ptahuacan.

Por meio de Metemphoc, que assumiu o poder da cidade depois que Conan derrubou seus governantes sacerdotes, o cimério ficou sabendo que alguns daqueles escravos tinham vindo de um misterioso continente de nome Mayapan, a oeste, cujas costas foram saqueadas por piratas antillianos que buscavam ouro, esmeraldas, cobre, escravos de pele vermelha, estranhos pássaros coloridos e peles de jaguar, um felino dourado manchado de negro.


Jim Neal

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