Pois bem.
Foram apenas alguns dias de sumiço, mas uma semana inteira de reflexão. Procurei afastar-me de tudo e de todos para buscar uma certa “clareza nas idéias” – aquela coisa de quemcossô, oncotô, proncovô…
Foi uma coisa meio que interessante, um negócio meio que de monge que se tranca na clausura (ainda que tenha sido apenas uma clausura d’alma). Aproveitei a deixa de alguns trabalhos que precisava colocar em dia para buscar uma certa extenuação física em prol do pleno descanso mental. Ou seja, esgotar o corpo para liberar a mente.
E mesmo assim – garanto – deparei-me com uma situação bastante difícil, pois a pretendida inspiração para tirar conclusões teimava em não aparecer.
Até o domingo último.
No decorrer de uma tarefa totalmente trivial.
Estava lá eu a recolher uma certa matéria excrementícia do gramado no quintal (tá, tá, era mesmo o cocô das cachorrinhas) e deparei-me com uma árvore que outrora estava contida num vaso, mas agora havia irrompido à terra. Achei curioso. A maneira pela qual a força da natureza simplesmente impeliu as raízes a estourarem – lenta e inexoravelmente – a matéria estéril do plástico, buscando a terra como sua fonte de vida.
Então dei uma olhada ao redor, no quintal como um todo, e percebi que na realidade, apesar da riqueza da flora, não havia lá muita ordem em tudo aquilo. Pela orla do gramado a amoreira e a figueira dividem espaço com flores ornamentais diversas, algumas em vasos, outras na terra. Uma pequena árvore com flores de cerejeira cresce teimosamente sob a sombra do muro. Uma palmeira projeta sua sombra sobre boa parte do gramado. Isolados, cada qual em seu canto, dois pés de acerola trocam olhares suspirantes entre si. Do alto do muro de arrimo acenam para o horizonte outra figueira, um pé de carambola, um de café, outro de pitanga e mais um pé de mexerica. Isso tudo e muito mais.
Tudo ali, plantado, espalhado, de modo desordenado, mas ainda assim naturalmente dispostos, formando um agradável conjunto de paz e harmonia.
E então veio o insight.
Eu simplesmente não consigo imaginar aquele quintal totalmente ordenado, com cada planta delimitada, demarcada, ornamentada e disposta na mais perfeita geometria. Seria até algo bonito de se ver (bem no estilo “Casa Cláudia”), mas não de se conviver. Um certo caos se faz necessário, pois é o que acaba dando a verdadeira beleza daquele nosso cantinho.
De igual forma, eu jamais conseguiria ser feliz num mundo, numa vida, totalmente ordenados. Um certo caos também se faz necessário. Foi do caos que surgiu a vida, e também é dele que continua a surgir constantemente a verdadeira beleza do existir.
Mas, ainda que a contrasenso, uma certa ordem também deve se fazer presente. E é justamente nesse misto de ordem/caos que vamos levando a vida. Há que se mesclar. Há que se exigir. Há que se ceder. As nossas zonas de esforço devem coexistir com nossas zonas de conforto. A linha sempre será sinuosa, com altos e baixos – nunca nada vai estar totalmente perfeito.
Mas essa é a vida.
Sei que tudo isso parece meio que neo-budista, numa explícita sugestão de “seguir o caminho do meio”. Mas particularmente prefiro que se entenda mais como uma interpretação ao estilo de Monty Python, em The meaning of life. Ou talvez algo a la Garfield.
Enfim, onde chegamos? A lugar nenhum e a todos os lugares simultaneamente. Sei que alguém já disse que “a vida é algo que nos acontece enquanto fazemos outros planos”, mas, para mim, isso seria mais uma definição de mera existência. A vida deve ser vivida, provada, saboreada a todo momento.
E quando, em algum momento de nossa existência, resolvemos que essa vida deve ser compartilhada com outrem, isso significa que deixou de existir o EU, mas criou-se a figura do NÓS. E a ordem dantes buscada na existência isolada obrigatoriamente acaba por dar lugar a um caos ordenado que advém da existência conjunta. Ou uma ordem caótica, se assim o preferirem…
E é uma via de mão dupla.
De exigências.
De concessões.
De partilhas.
De diálogos.
De carinhos.
Deixar de considerar o conjunto e buscar o ponto de vista isolado significaria migrar do NÓS para o EU. E o EU sozinho não faz um relacionamento com quem quer que seja. É esse o “preço” a se pagar, para quem estiver disposto a pagar.
Não necessariamente seria a perda da individualidade, mas a conquista de algo muito maior – não só em termos de compreensão de si mesmo, mas, talvez, da própria vida. A junção e o aperfeiçoamento do yin-yang, do côncavo e do convexo, do branco e do preto, da tampa e da panela, do feijão com arroz. Fiquem à vontade para escolher seu par predileto.
Por mais “universais” que pareçam estas linhas, são, na realidade, bastante pessoais. Isso é fato. De minha parte meu EU já teve – e continuAVA tendo – bastante oportunidade de se expressar. Mas, há muitos anos, o preço já foi acertado.
E, sinceramente, continuo plenamente disposto a pagá-lo.