Piloto Automático – VI

( Direto das catacumbas do Legal… )

– Senhor Presidente, peço a palavra.

– Tem a palavra, nobre deputado.

– Tenho dito, Senhor Presidente.

– Como? Mas Vossa Excelência não disse nada!

– Disse “tenho dito”.

– Tenho dito o quê?

– O que tinha a dizer.

– Eu sei. Mas o que é que Vossa Excelência tinha a dizer?

– O que disse. Muito obrigado.

– Mas Vossa Excelência limitou-se a pedir a palavra…

– Exatamente, pedi a palavra. E desde que Vossa Excelência ma concedeu, eu vi que nada mais havia a dizer, a não ser o óbvio, gastando inutilmente o tempo precioso desta ilustre Assembléia com uma exploração mais ou menos demagógica de todas as implicações e consequências do simples fato, em si tão significativo, de eu haver pedido a palavra – o que prova que a palavra existe, e pode ser solicitada, requisitada, exigida – uma vez que Vossa Excelência mesmo, ao permitir que eu fizesse uso dela, reconheceu implicitamente não ser a palavra um mito divino, mas um instrumento de comunicação acessível à capacidade humana. Obtendo-a, podemos usá-la ou não, falar ou silenciar, e eu da minha parte, confesso que prefiro silenciar, mesmo porque estou meio rouco e com um pouco de dor de garganta mas de qualquer forma, sei que a palavra me foi concedida, e, assim sendo, não estou condenado à nudez. O resto depende de mim, da minha loquacidade ou da minha parcimônia verbal, da minha audácia ou de minha prudência, da minha coragem ou da minha covardia. Assumo a responsabilidade dos meus atos. Dependendo de mim mesmo – e não dos outros. A palavra existe. E eu peço a Vossa Excelência que mande consignar esse auspicioso acontecimento nos anais. Ainda uma vez, Senhor Presidente, tenho dito. E mais não direi.

Exemplo significativo de quando se pode gastar as palavras, sem dizer absolutamente nada.

Publicado originalmente em 05/SET/2005

0 thoughts on “Piloto Automático – VI

  1. Ora, direis, ouvir estrelas. Acaso perdeste o senso? Quiçá, um dia, alhures ou por estas plagas mesmo, oxalá um Homem (sim, aquele que Diógenes buscava, lanterna à mão) que ouse abdicar da palavra, desta ferramenta que nos legitima e que nos oprime, que nos condena e nos absolve, que abarca o tudo e o nada (uma rosa é uma rosa é uma rosa?) e que — lamento dos lamentos! — permanece indecifrável e misteriosa e bela.
    Ah, pretensão demais, quimeras labirínticas do cego da biblioteca diante dos espelhos, inenarráveis duelos daquele eterno retorno do qual ninguém escapa. Como viver sentindo a opressão do tempo? O tempora, o mores…

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