Recordâncias…

Até onde posso me lembrar, eu estava trabalhando.

Preocupado, vendo a papelada de sempre, com os telefonemas de sempre, pensando nas reuniões de sempre.

Quando menos esperava estava na hora do almoço.

Saí.

O ambiente, ainda que familiar, me parecia estranho…

Sei que, de cara, pouco antes da rua, numa mesa com outros dois rapazes (seria um deles seu marido?) eu a vi.

Evanilda.

Deixei de chamá-la de “falecida” há pouco tempo, por respeitosíssimas relevantes recomendações…

Olhei novamente, disfarçadamente, enquanto passava. Era ela mesma.

Cabelo bem mais curto, quase chanel. Um pouco mais morena, mas ainda assim com a pele quase alva de sempre…

Sim, era ela.

Saí encafifado.

Mas, afinal de contas, o que raios ela estava fazendo por ali?

E, pensando nisso, atravessei a rua olhando para o Colégio Olavo Bilac, onde estudei pouco antes de conhecê-la. Até mesmo vi alguns rostos familiares. Continuei meu caminho, desviando das barracas dos camelôs de sempre em frente às Lojas Americanas – movimentada como de costume. Novamente atravessei a rua, indo em direção ao Banco Nacional. Olhei para as grandes portas envidraçadas de correr, por experiência própria difíceis de serem puxadas. E olhei para minha imagem nelas refletida.

E percebi que estava sem barba.

E achei curioso.

Já tem quase um ano que ostento esta minha esbranquiçada barba. Eu deveria me lembrar claramente de quando a tirei. E busquei pela memória. Nada. Parei. Olhei novamente para aquelas grandes portas. E o movimento dentro da agência. E daí comecei a perceber o que na realidade estava acontecendo…

Eu estava sonhando!

Voltei-me e novamente encarei as Lojas Americanas: até o balcãozinho lá no fundo, onde eu costumava almoçar sentado nos tamboretes ainda estava lá! E visível!

Também olhei para o lado e a boa e velha pastelaria do chinês, com seu magnífico frango xadrez, também estava aberta!

Mas nada disso existe mais!

Então me apercebi de que, na realidade, estava sonhando. E me lembrei dos mais de quatrocentos quilômetros quase ininterruptos de viagem, de minha exaustão física, de que fui deitar cedo e de que já devia estar dormindo há, pelo menos, nove horas!

E me instalei naquele tênue limiar entre o sonhar e o acordar. Acordei dentro do sonho. Mas não despertei na vida real. Tomei consciência de que estava perambulando pelas paragens do mundo onírico, onde tudo é possível e qualquer coisa pode se tornar realidade.

E resolvi que minha realidade seria ter uma boa e franca conversa com ela.

Voltei correndo, torcendo para não acordar de vez, torcendo para que continuasse dormindo, semi-desperto, ou seja lá o que for que se chame esse estado.

Parei do lado de sua mesa, puxei de lado a cadeira em que estava sentada e encarei-a fixamente. Ela sorriu. Aquele sorriso tão completo que somente ela sempre soube dar. E ali mesmo, ignorando sua companhia, beijei-a. Profundamente. Sinceramente. Melhor: fui beijado. Aqueles lábios carnudos me tomaram por completo e podia perceber que ela também sorria durante esse desencontrado mas absoluto beijo.

E sentei-me.

E conversamos.

Conversamos sobre tudo. Sobre todos. Sobre mim. Sobre ela. Conversamos como sempre conversávamos quando nos tínhamos um ao outro à disposição. Conversamos sobre uma infinidade de coisas por uma eternidade de tempo. Pois o tempo se move de maneira diferente quando sonhamos. E o mundo parou de girar e nós continuamos a conversar. Eternamente pra sempre enquanto durou.

Mas, como diz a música, “o pra sempre, sempre acaba”

Acordei.

Sem saber como terminou a conversa. Como nos despedimos. Quase, sequer, como nos encontramos.

Aquela estranha sensação de não saber bem onde se está ou o que falar ou com quem falar.

Mas acordei.

Estranhamente impressionado por algo tão recente e tão vívido em minha mente. Seu gosto ainda estava em minha boca. E, mesmo assim, eu não havia saído dali.

Como explicar?