Desmusicado

E eis que ontem à noitinha, após longo e combativo dia de trabalho, emputecido com inglória notícia que me atormentava – e ainda sob chuva – estava eu a dirigir pra casa. E, lógico, ouvindo minhas músicas como sempre.

Para aqueles que talvez ainda não saibam, aquela frase que compartilhei por aqui outro dia, “Prefiro a música – pois ela ouve meu silêncio e ainda o traduz, sem que eu precise me explicar…”, tem exatamente TUDO a ver com este humilde escriba que vos tecla. Não sei, não consigo, dirigir sem estar ouvindo alguma música. De preferência as que escolhi. É uma ótima maneira de manter as porteiras da mente recostadas, não deixando os pensamentos debandarem em louca disparada…

Enfim, voltando ao assunto, eis que no meio do caminho me pifa o pendrive!

(Sim, a melhor maneira que encontrei para curtir minhas músicas foi através de um pendrive. Tá, nem tão pendrive assim. Na verdade um adaptador para cartão de memória micro SD de 4 GB com conexão USB (quem não entendeu levanta a mão!)… Melhor que andar com bolsas de CDs que fatalmente vão ser destruídos no dia a dia com o carro pra cima e pra baixo. Com umas cinco centenas de músicas armazenadas era o suficiente para me distrair.)

Cutuca, descutuca, tira, põe, remove o cartão, insere o cartão, coloca de novo – e nada!

Bem, paciência. Coisas de informática têm dessas coisas…

Mas como nunca falha, Murphy, aquele velho sacana (que, pra mim, deve ter a cara do House), resolveu me acompanhar hoje pela manhã. Na correria – e, de novo, sob chuva – acabei esquecendo de fuçar por algum outro pendrive em casa. Sequer lembrei dos CDs. Entrei no carro, saí da garagem, fui dirigindo e quando, já no “piloto automático”, levei a mão para ligar o som… Caiu a ficha! SEM SOM! E tudo que pude ouvir foi a surda gargalhada do Murphy, contorcendo-se de tanto rir no banco de trás!

Engoli em seco.

Pois Murphy sabia.

Tudo que me restava era o rádio.

E se existe um “dom” (ou seria maldição?) que efetivamente tenho é de nunca – eu disse NUNCA – conseguir sintonizar uma estação que esteja tocando alguma música. Nunca.

“Bem”, pensei comigo, “esse tipo de coisa não deve durar pra sempre, deve?” Resolvi arriscar. Liguei o rádio. Uma espécie de entrevista com um representante de algum insípido produto revolucionário estava no ar. Mudei de estação somente para encontrar aspirantes a humoristas de quinta categoria tentando fazer graça. Mudei de novo. Alguns dos milhões de técnicos de futebol que este nosso país comporta (suporta?) estavam tecendo seus comentários sobre os jogos de ontem – que, diga-se de passagem, ignoro totalmente, pois sou ateu em termos futebolísticos. Mudei. Um pastor dizia o quanto devemos tomar cuidado, pois o diabo estaria constantemente presente em nossas vidas (alguém já reparou como esse pessoal consegue falar mais do diabo do que de Deus?). Mudei. “Eu quero tchu, eu quero tcha…” Quase bati o carro na pressa de mudar novamente de estação. Um caboclo de voz arrastada e chorosa tecia loas ao poder divino da igreja xpto, pois nela teve seu câncer curado. Mudei. Uma mocinha dava seu depoimento sobre a volta do grande amor de sua vida depois de ele ter ficado com todas as amigas gostosas dela. Mudei. De volta ao produto revolucionário.

MEU DEUS!!!

Tudo isso em, talvez, apenas um quilômetro de estrada.

Sem alternativa, desliguei o rádio.

Garoa fina e trânsito moroso: ótima combinação para os pensamentos começarem a se escoicear dentro do curral…

Vários minutos depois e após mais alguns quilômetros de tormentoso silêncio, resolvi tentar dar uma passeada pelas estações novamente.

Inútil.

Totalmente inútil.

E-XA-TA-MEN-TE as mesmas pessoas falando as mesmas coisas nas mesmas estações!

Assim, no tortuoso caminho para o trabalho, o único trecho de música riscado no disco da minha memória teimava em ficar repetindo “I got thirteen channels of shit on the TV to choose from”

Ou seja, há muito tempo Waters já sabia sobre meu l’état d’esprit de hoje!

🙁

Crise na Grécia

Uma crise sem precedentes!

  1. Zeus vende o trono para uma multinacional coreana.
  2. Aquiles vai tratar o calcanhar na saúde pública.
  3. Eros e Pan inauguram prostíbulo.
  4. Hércules suspende os 12 trabalhos por falta de pagamento.
  5. Narciso vende espelhos para pagar a dívida do cheque especial.
  6. O Minotauro puxa carroça para ganhar a vida.
  7. Acrópole é vendida e aí é inaugurada uma Igreja Universal do Reino de Zeus.
  8. Eurozona rejeita Medusa como negociadora grega: “Ela tem minhocas na cabeça!”.
  9. Sócrates inaugura Cicuta’s Bar para ganhar uns trocados.
  10. Dionisio vende vinhos à beira da estrada de Marathónas.
  11. Hermes entrega currículo para trabalhar nos correios. Especialidade: entrega rápida.
  12. Afrodite aceita posar para a Playboy.
  13. Sem dinheiro para pagar os salários, Zeus libera as ninfas para trabalharem na Eurozona.
  14. Ilha de Lesbos abre resort hétero.
  15. Para economizar energia, Diógenes apaga a lanterna.
  16. Oráculo de Delfos vaza números do orçamento e provoca pânico nas Bolsas.
  17. Áries, deus da guerra, é pego em flagrante desviando armamento para a guerrilha síria.
  18. A caverna de Platão abriga milhares de sem-teto.
  19. Descoberto o porquê da crise: os economistas estão falando grego!

No fundo…

(…) Pois ouvi uma voz e cheguei à janela. Era uma jovem que passava para me dizer bom dia; vai à praia. Entrou, sentou-se; tivemos uma rápida conversa banal. É moça, bela, simples; é mais conhecida que amiga. Temos uma espécie de amizade distraída, fraca, suave. Quando se foi, cheguei à janela, e acompanhei-a com os olhos até a esquina. Ela não sabia que estava sendo vista. Andava com seu passo natural, e não se voltou. Ia pensando suas coisas. Comoveu-me. Não sei por que seus saltos altos me comoveram, enquanto andava, e assim também o leve movimento de seus cabelos. Seria despropositado dizer-lhe a mínima palavra de ternura, hoje, amanhã, ou nunca. Não podemos recolher o brilho do lombo elástico de uma onda e fazer um discurso ao mar, acaso podemos? Quando subimos aquela capoeira estorricada, entre carvões de troncos, ao sol ardente, antes de pegar o caminho do outro lado do morro, paramos um instante sob uma árvore qualquer; e então uma brisa vinda dos morros passou em nossa cara suada. Temos um vago sentimento de bênção; a sombra, a leve mão da brisa. Mas seria absurdo dizer: muito obrigado. Na verdade, falamos muito pouco, embora, nos botequins, levemos horas a tagarelar. No fundo somos calados; para a ternura e para a ofensa. Como poderia dizer a essa moça que me comoveu seu corpo de breves ancas andando sobre os saltos altos; ou que o leve movimento de seus cabelos castanhos me fez bem.

“Não mais aflitos”
Rubem Braga

Chove

E eis que a chuva se instala lá fora assim como a insônia se instala aqui dentro…

Senta do meu lado e, num acalentoso sussurro, com suas mãos lívidas e dedos longos, cutuca meus pensamentos, me descobre por dentro e por fora, expondo toda minha nudez.

A mente irrequieta – ah, tormento de quem tanto pensa! – entra na sua habitual profusão de imagens e caminhos, totalmente à revelia de minha inútil busca de tentar me concentrar no monótono, sonoro e constante desaguar da chuva que jorra lá fora.

Vã tentativa!

De um salto abandono o conforto das cobertas.

A noite é fria, mas o coração pulsa quente.

Pulsa apertado, angustiado, absorto, independente.

Despido tanto de sentimentos quanto de andrajos, as mãos buscam os batentes, o corpo se arqueia no umbral, uma gélida e úmida brisa da fria madrugada abraça a pele desnuda e o olhar se fixa no desbarrancar d’água que o céu teima em despejar.

Os pensamentos revoam ao meu redor, lépidos e faceiros, inconstantes e inconsequentes, ágeis como sempre, irrequietos como nunca. De nada adianta me concentrar. Ou desconcentrar. As taças de vinho já não os sossegam mais. Sequer o peso da idade lhes tem valor. Nada respeitam. Nada os aquieta. E o repouso fugidio teima em desaparecer.

E, torrencial, a chuva cai.

E por entre toda aquela água, o céu escuro silenciosamente grita por mim, desvendando um enigmático sorrir formado de densas nuvens. Irresistível o chamado. Entrego-me à tão sutil convocação, cabeça jogada para trás, mãos estiradas pela amurada, o frio inexistente, e o peito se abre para receber a inebriante chuva que me agasalha.

As gotas caem furiosas, agulhando minha pele em toda sua extensão. O cabelo lentamente começa a se encharcar enquanto os pingos serelepes buscam seus próprios caminhos por minha barba, roçando meus lábios, suavemente enforquilhando a garganta enquanto seguem rumo ao chão por meu dorso exposto.

É um batismo. Um rebatismo. De fogo. Na água. É a noite que, paciente, acolhe o retorno deste seu filho dileto. O ofegar trêmulo e constante não é de frio – jamais seria! – mas sim de alegria, de paz, de comunhão com um universo que jamais me deus as costas, mas sim eu a ele.

E, num sereno caótico, uma oração sem palavras se faz. Desnecessárias! O que se constrói num átimo de momento é uma oração de sentimentos. Inexpressíveis e inigualáveis sentimentos.

E é a mais linda, pura, perfeita e elevada oração que jamais fiz e jamais conseguirei voltar a fazer.

E, por fim, a mente se aquieta.

Os pensamentos se aninham.

O coração relaxa.

E a chuva cai…