Por uma voltinha de bicicleta…

O matemático Edward Norton Lorenz, nos idos da década de sessenta, desenvolveu a tese básica de que “situações iniciais ligeiramente diferentes podem se desenvolver em situações consideravelmente diferentes”. Sei que parece um pouco confuso, mas – vejam só! – este é exatamente o enunciado primordial da “Teoria do Caos”.

Particularmente prefiro um dos corolários da Lei de Murphy (aquele velho sacana e que tem a cara do House) em que diz que “se uma série de fatos pode dar errado, dará errado na pior sequência possível”.

Dito isso, vamos aos fatos. Isolados em sua essência, mas conectados em sua conclusão. E cheio de links para vocês se divertirem…

Desde a adolescência minha coluna vertebral já possuía uma ligeira “deformação morfológica em curva dupla” – o nome é pomposo, mas nada mais é que a chamada “escoliose em S”. Durante muitos anos isso me causou dores e desconforto, mas, como com tudo a gente se acostuma, ela sempre estava ali, presente, às vezes com algumas crises e outras, por longos períodos, sem sequer me incomodar. E isso somente “sarou” após o acidente. Desde então ganhei um joelho que dói o tempo todo e vive clamando por atenção, de modo que a escoliose foi alçada para um segundo plano, praticamente imperceptível. Até hoje.

Independentemente disso, desde a mais tenra idade sempre adorei andar de bicicleta. Sozinho, em bando, para me divertir, para me distrair, para me desestressar ou, simplesmente, para namorar. E, sim, isso é da profícua década de oitenta, época em que nós, meninos, levávamos as moçoilas para dar uma voltinha sentadas no quadro da bicicleta, entre o selim e o guidão, totalmente aninhadas em nossos braços. Como desde aquela época eu já não dava ponto sem nó, a minha bicicleta era a única que tinha uma almofada para elas sentarem, então nem preciso dizer por quem elas preferiam ser levadas, né? E, assim, bateu uma vontade de dar umas pedaladas, pois já fazia muito tempo que eu não tirava a bicicleta do lugar. Até hoje.

Isso porque nos últimos tempos tenho estado mais sedentário do que jamais fui na minha vida. Totalmente acomodado. Desde a cirurgia no joelho, em 2012, que comecei a me acomodar. Até que, durante a recuperação, ainda estava fazendo meus alongamentos, algumas caminhadas e por aí afora. Daí veio um inverno terrível e uma preguiça maior ainda. O inverno passou. A preguiça, não. E, hoje pela manhã, numa conversa sincera com a dona balança, cientes dos três dígitos que teimam em não baixar, juntos chegamos à conclusão que estava na hora de uma nova dieta! Afinal de contas minha boa e velha bicicleta – que, diga-se de passagem, eu mesmo montei – está encostada lá na garagem, num canto, soterrada pelas bicicletas da Dona Patroa e dos meus filhotes, acumulando camadas seculares de poeira. Somente assim, com um pontapé inicial, eu sairia desse sedentarismo que diretamente estava me incomodando. Até hoje.

E, último dos fatos que interessam para nossa narrativa, temos meu sogro. Sim, aquele bom e simpático velhinho, um japonês de 82 anos, que mora conosco, mal fala uma palavra de português e surdo como uma porta de carvalho. Dupla. E que, como todo japonês velhinho tradicional, tem uma compulsão mania de guardar coisas. Acumular, mesmo. Alguns dizem que é uma tradição herdada desde a época dos tempos difíceis da guerra, quando nada se tinha e era preciso guardar tudo o que fosse possível e usar de muita criatividade para aproveitar tudo isso para as coisas práticas do dia a dia. Aquele negócio de que “vai que um dia precisa, né?”. Bem, dessa genética pela guarda de quinquilharias e criatividade para usá-las, meu sogro tem de sobra. E, numa dessas, num canto bem ao lado das bicicletas, tem um monte de caibros, madeiras e ripas, variando de dois a três metros de comprimento, desordenadamente acumulados para que, como sempre, algum dia jamais viessem a ser utilizados. Ou sequer tirados do lugar. Até hoje.

Já começaram a perceber o tamanho da encrenca, né?

Então.

Hoje, logo pela manhã, munido mais de ânimo que de bom senso, resolvi que já era hora de sair do marasmo. Como meu pé ainda está meio avariado do tombo da moto (não este – ainda – não tem link) correr não é possível, caminhar é quase uma opção, mas andar de bicicleta seria tudo de bom! Logo após o café fui até a garagem com o firme intuito de encher os pneus da bicicleta – vazios já há muito. Faria isso, subiria para ler o jornal com uma boa xícara de café, desceria novamente já com um balde d’água, constataria que os pneus estão bons, faria uma bela duma lavagem e limpeza na menina e, ato findo, sairia para dar uma boa e saudável voltinha de bicicleta. Me cansaria um tanto, suaria outro tanto, mas, feliz, voltaria para casa endorfinicamente com uma sensação de dever cumprido. E seria só o começo! Plano perfeito.

Ou quase.

Isso porque o fiadaputa do Murphy resolveu que era o momento ideal para combinar de modo magistral todos os fatos isolados anteriores que já acabei de descrever…

E, lógico, ao começar a desvencilhar as bicicletas da Dona Patroa e dos filhotes que estavam impedindo de tirar a minha, não percebi que parte daquelas madeiras estavam sutilmente apoiados nelas. A não ser quando já era tarde demais. Já foram pegos de surpresa por uma chuva quando estão no meio da rua? Ou pela água gelada do chuveiro quando esperavam que estar quente? NADA DISSO se compara a receber no lombo uma chuva de caibros e ripas e madeiras e sei lá mais o quê quando menos se espera. Do susto, da cacetada, da exagerada torsão no corpo para me desviar do que ainda não tinha me atingido, restou somente a mais antiga e familar dor que me acompanha até hoje.

E meu bom humor matinal se esvaiu junto com a poeira que baixava no chão da garagem.

Com toda a sutileza e cuidado de um mastodonte em fúria coloquei as madeiras de volta no lugar.

Carinhosamente, como um babuíno selvagem, empilhei todas aquelas bicicletas de volta no lugar.

E agora, calmo como no decorrer de toda essa desventura, ciente e cioso da necessidade de cuidar deste templo que é meu corpo, deixo-lhes a refletir sobre todas essas conexões que nos envolvem, e, enquanto isso, vou pegar minha moto e me dirigir até o boteco mais próximo para uma cervejinha gelada.

Pois três quarteirões é uma distância muito longa para ir a pé…