Quando eu era criança, um pouco antes de minha adolescência e das aborrecências que a acompanham, o tradicional “programa de domingo” invariavelmente era comparecer na igreja Matriz de Santana para a “Missa das Dez”, ou, melhor dizendo, a chamada “Missa das Crianças”.
Estávamos no final da década de setenta e começo dos anos oitenta. Quem celebrava a missa ainda era o Padre Luiz Gonzaga Alves Cavalheiro – conhecido pelos mais antigos como o “Xerife de Santana”… E ainda lembro-me bem da austeridade dele em diversas situações! Mas ali, naquela missa, ele meio que se divertia, pois cumpria com toda a liturgia e ainda arranjava um jeito de, com um ou outro gracejo, arrancar algumas risadas daquela criançada que preenchia a gigantesca nave da igreja: meninos sempre do lado esquerdo e meninas do lado direito. Ou será que era o contrário?
Enfim, ao final da missa e badalar dos sinos era o momento de enfrentar a fila do pipoqueiro, que sempre se posicionava estrategicamente na praça bem em frente da igreja, já tendo começado a estourar uma nova leva de pipocas fresquinhas momentos antes da saída da criançada.
“Tio, me dá um saquinho, fazfavor, mas com BASTANTE queijo, hein?”
Até hoje não consegui descobrir qual é o segredo místico que esses tiozinhos pipoqueiros passam de geração após geração e que faz com que o sabor daquele queijo de pipoca de carrinho seja único na face da Terra, jamais sendo possível de reproduzir em outros ambientes, não importa as condições ideais de temperatura e pressão que venham a ser aplicadas…
Ainda lá pelo meio do saquinho (tendo guardado uns dois ou três queijinhos para o final, porque não sou besta), virava para o eventual amigo/colega/parceiro que estivesse do lado e já soltava:
“Vamo pra feira?”
Compreendam que naquela época, longe das distrações digitais, televisivas e comerciais comuns nos dias de hoje, invariavelmente nós crianças tínhamos que inventar o que fazer. E a feira tal qual a conhecíamos – ao menos a de domingo – era um lugar divertido para se passear naquele espacinho de tempo que tínhamos antes de voltar pra casa para o tradicional almoço de domingo (feijão, arroz, macarrão e frango, bem como, muito de vez em quando, um tanto de batatas fritas também).
Em comparação às feiras dos dias de hoje, sinceramente não me lembro se existiam os trailers ou barracas de pastéis, já que quem quisesse comer um bom pastel que fosse numa das pastelarias nas esquinas próximas da igreja! Aliás, não percebíamos ainda à época, mas desde então já era também um lugar para os cachaceiros e cervejeiros de plantão darem início aos trabalhos de final de semana…
Aquele ambiente cheio de gente e o teor multicolorido daquelas frutas, legumes e sabe-se lá mais o quê, não importa para onde quer que se olhasse, sempre foi uma coisa que me atraiu. Ainda que, na época, não me importasse muito em chegar até o “final da feira”, onde se concentravam barracas desse tipo, era ali no comecinho, talvez até mais ou menos no meio da feira, que se encontravam os itens de maior interesse. Ao menos para a criançada.
Sabíamos que estávamos nos aproximando de um outro universo paralelo quando já ali, antes mesmo de chegar na rua da feira, começávamos a ouvir:
“Aguuuuuuuuulha di disintupifugão! Ólha a aguuuuuuuuulha di disintupifugão!”
E aquele tradicional pregoar dos feirantes era uma constante por toda a extensão da feira.
“Olha aqui, olha aqui, a promoção! Tudo mais barato! Somente hoje, somente hoje, hein?”
“Peixe, olha o peixe, peixe fresquinho, acabou de chegar, vem conferir madame!”
“Paga dez, leva doze! Pode vir, pode vir! Paga dez, leva doze!”
“Pamonha, pamonha, pamonha! Pamonha fresquinha! Pamonha de Piracicaba!”
Não. Péra. Deleta esse último, que não tem nada a ver. A memória às vezes dá um nó na cabeça da gente…
Isso sem nem contar aquela rapaziada mais “abusada”, que soltava algumas coisas do tipo:
“Olha aí, olha aí! Olha a formosura passando! Moça bonita, hoje, não paga! Só que também não leva!”
Tudo bem que era uma brincadeira – e que até fazia as meninas corarem e soltarem umas risadinhas. Mas as feiras de hoje me parecem muito mais silenciosas, tanto num sentido quanto noutro. Até porque um gracejo desses, nos dias politicamente chatos corretos em que vivemos, poderia ser encarado como assédio e dar todo aquele perrengue que costumamos ver por aí. Uma pena. Com isso um pouco da alma da feira parece que se perdeu através do tempo.
Seguíamos em frente e olhávamos com um olho comprido para aquelas tentadoras garrafinhas de sucos coloridos – não consigo nem de longe imaginar uma coisa com sabor mais artificial do que aquilo! Mas o que na realidade nos interessava eram as garrafas em si: nos formatos de trem, avião e outras bobagens mais que adoraríamos ter para uma ou outra brincadeira. Isso sem falar nos deliciosos sequilhos, como quase tudo na feira vendidos a granel (alguém aí ainda sabe o que é isso?) e, esses sim, “impossível de comer um só”.
Até que finalmente chegávamos na única barraca que realmente justificava nossa presença ali: a de “tranqueiras”. É que, diferente de hoje, em que você acha de um tudo na feira, desde roupas, calçados, produtos importados, CDs, DVDs (suuuuuper originais), brinquedos, etc (e tudo isso em barracas que já têm até mesmo as maquinetas que aceitam cartões de débito, de crédito, parcelam e o escambau), naqueles tempos não existia essa variedade de itens – quando muito uma, talvez duas barraquinhas, cheias de coisinhas que pareciam um baú do tesouro para os nossos infantis olhos ávidos por novidades.
Pentes, espelhinhos ovais, canivetes, baralhos, adornos, chaveiros, muitos chaveiros, lanternas, miniaturas, presilhas, enfeites, alguns tipos inimagináveis de ferramentas, isqueiros, cachimbos, coisas de então e de outrora que faziam ferver nossa imaginação e voltávamos comentando entre nós se tinha visto isso ou aquilo ou então para o que será que servia aqul’outro. Sim, é lógico, raramente comprávamos alguma coisa. Mas, também é lógico, tínhamos assunto para a semana toda, inclusive sonhar se conseguiríamos juntar um dinheirinho para na semana seguinte tentar comprar o objeto de desejo – se é que ainda iria estar por lá.
Ah, essas crianças…
E agora preciso de um favor: você que é vegetariano, vegano, amante dos animais ou outro tipo qualquer de ser com igual teor de pureza e grau de evolução, pare de ler. Isso mesmo. PARE. DE LER. AGORA. O que virá a seguir era uma coisa natural, ao menos pra época, mas tenho certeza que você não vai gostar. Com o que está escrito até agora até que já deu pra matar a saudade daqueles tempos, não deu não?
Continuou, né?
Não diga que não avisei…
As feiras de então não estavam cercadas por açougues, padarias, casas de carnes ou quaisquer outros tipos de estabelecimentos que tivessem dessas assadeiras de frango (“televisões de cachorro”), tão comuns hoje em dia. Você queria um frango para o almoço? Bastava comprar. Vivo. Escolhia um de bom peso e tamanho numa das gaiolas que ficavam por ali, logo na saída da feira, o tiozinho amarrava as pernas da ave, e, pendurada de ponta cabeça junto com a sacola de compras, você a levava para casa, a pé mesmo.
Era o normal. Há muito tempo perdi a conta de quantas e quantas vezes já acompanhei minha mãe nessa tarefa. Ao chegar em casa a operação era a de praxe. Não vou entrar aqui nos detalhes sórdidos sobre o como se sucediam as coisas, mas depois de abatido o frango, as penas eram arrancadas e ainda era necessário “sapecar” (ou seja, chamuscar) as pontinhas que haviam ficado pra trás. Ainda lembro-me do cheiro nada agradável que se espalhava pela casa… Depois disso, uma vez limpo e temperado, seu interior ainda era preenchido com uma deliciosa farofa antes de ir para o forno.
Sim, frango era “comida de domingo”. E, ainda, assado? Veja lá que raridade!
Bem, todo esse texto, todas essas lembranças, somente vieram à baila porque lembrei desse bendito “frango com farofa”. Um daqueles sabores inesquecíveis de infância. Mas me é difícil de recordar o fato isolado, sempre tem que haver um contexto – e a feira daqueles tempos é que fazia esse contexto.
Mesmo nos dias de hoje até que ainda gosto de ir na feira.
Mas, confesso, não é mais a mesma coisa.
Se procurarmos bem ainda encontraremos aquele olhar fraternal, aquela cumplicidade entre os feirantes, entre os clientes, entre ambos, aquela ajuda pronta a ser dada em qualquer oportunidade em que fosse necessária – como era comum antigamente. Mas há que se procurar. Bastante. Tá tudo muito mais comercial, muito mais o produto, o lucro, a venda do que o proseio, do que a curiosidade, do que o passeio. Pessoas vêm e vão, compram o que querem e tomam seu rumo. Feirantes vêm e vão, vendem seus produtos e tomam seu rumo.
Enfim, como sempre acabo fazendo com esses textos que me levam a reminiscências de outrora, só posso concluir de uma mesma maneira: ando com uma gigantesca saudade de não sei o quê…