Cinquenta tons de um cafajeste

Alexandre Petillo

‘Antes de tudo, precisamos explicar um conceito…
Cafajeste é uma coisa, canalha é outra’

Apesar de nessa época, em alguns recantos em que as tradicionais marchinhas ainda resistem, elas cantarem de boca cheia que é dos carecas que elas gostam mais, na realidade atual não é bem assim não. De olho na histeria delas com o filme “Cinquenta Tons de Cinza”, enrolado e baseado no livro de mesmo nome, é dos cafajestes que elas sim gostam mais. Ou pelo menos é com os “cafas” que elas fantasiam, usando mais uma palavra carnavalesca.

“Você está maluco”, reclama a mais exaltada. Eu sei que a sua avó já avisava para ficar longe dos cafajestes e a própria vida já lhe trouxe dissabores de relações com esse tipo de homem. Por isso, antes de tudo, precisamos aqui explicar um conceito que faz toda a diferença. Cafajeste é uma coisa, canalha é outra.

O cafajeste é um apaixonado pelas mulheres. Sim, no plural no geral e por você, amiga leitora, por alguns momentos.

O cafajeste quer conquistar a mulher, envolvê-la, fazê-la sentir prazer, se sentir feliz, alegre, lembrar daqueles momentos a dois como os melhores em que ela viveu.

Ele jura amor – e não está mentindo. É que o “cafa” pode mudar de ideia rapidamente ao encontrar um vestido solto com as costas nuas logo depois de te pedir em casamento, mas, amiga, essa é a vida.

O canalha, não. O canalha é um canalha. Ele não está nem aí para o que a mulher quer, sente e pensa. Ele quer resolver suas vontades básicas e animais, sair dali o mais rápido possível, pular de galho em galho, sem se importar com o estrago deixado pelo caminho. O cafajeste, não. O cafajeste também sofre.

E o que é Mr. Grey, personagem principal do livro/filme “Cinquenta Tons de Cinza”? Um belo de um cafajeste tradicional, cheio de grana e imaginação, louco para levar uma mulher às nuvens, mesmo que seja no seu próprio jatinho.

Uma amiga me contou que nas sessões do filme aqui no Vale do Paraíba, lotadas, a mulherada bate palmas e chega a se levantar da poltrona quando Grey aparece na telona.

Tenho certeza que o comichão não aparece pela vontade de ser sodomizada ou coisa do tipo. É vontade (ou saudade) de encontrar um cafajeste para chamar de seu.

Se acendeu algo por aí com essa minha tese, cara leitora, vai nessa. Baixe a guarda e encare um cafajeste de peito aberto. Ele é um cara que vai te achar a mulher mais bonita do mundo, vai estar sempre muito bem disposto pra fazer aquele sexozinho gostoso de manhã (cafajeste é um cara evoluído, não liga pra coisas como ter que escovar os dentes antes ou se você está com a maquiagem borrada) ou madrugada adentro, ele abre a porta do carro, te escreve poemas, gosta de te ouvir, mas, como já antecipava um dos grandes “cafas” da nossa história, “será eterno enquanto dure”.

Saiba que em algum momento o cafajeste clássico vai sentir vontade de levar seu charme para outras paragens. O segredo para não doer seu cotovelo é entender isso. Tentar mudá-lo não é uma opção.

O sucesso de “Cinquenta Tons de Cinza” é a vitória do cafajeste. Se eu estou comemorando? De jeito nenhum, não sou cafajeste, sou menino bão.

( Crônica publicada no jornal O Vale, de 15/02/2015 )

Nota: Não costumo repetir com frequência um mesmo autor por aqui, mas essa, na minha opinião, o Alexandre acertou na mosca! Não vi o filme e nem pretendo ler o livro. Os comentários de quem já o leu já foram suficientes para formar minha opinião que, pasmem, é exatamente essa aí de cima. E a sina e a benção do cafajeste é encantar aquelas já desencantadas com a vida que levam…

Para ti que amas

Quando em teu coração desabrocha, cheia de vida, a flor perfumada do amor, lembra-te que alguém a plantou, certo dia, dentro de ti.

Quando o teu coração se ilumina do suave colorido do pôr-do-sol, lembra-te que alguém amanheceu contigo.

Quando o fogo da paixão abrasa o teu coração, consumindo todas as tuas fibras, na imolação do prazer, lembra-te que alguém acendeu essa chama.

Quando teu coração estiver bordado de sonhos dourados, tecido com fios de luar lembra-te que alguém coloriu teu mundo interior.

Quando a noite encontrar-te com o coração partido e angustiado pelas amarguras colhidas durante o dia, lembra-te que alguém possui o lenitivo de que precisas.

Quando teu rosto não puder conter a torrente de lágrimas que se afundam pelas dobras do travesseiro, lembra-te que existe alguém te esperando de lenço na mão.

Quando a insônia te revolve desesperadamente na cama, lembra-te que alguém pode semear sonhos de paz em tua mente.

Quando a solidão te oprimir e o teu grito não encontrar eco, lembra-te que lá do outro lado alguém ama a tua companhia e entende o teu clamor.

Quando os teus segredos não cabem mais dentro de ti, ameaçando romper os diques de tua alma, lembra-te que existe alguém disposto a recolhê-los e guardá-los com o carinho e a dignidade que tu esperas.

Quando em teu coração mora o azul do céu, a claridez do sol, o gorjeio dos pássaros, o perfume das flores, a nostalgia do entardecer, o encanto das manhãs, a serenidade dos lagos e o sorriso da ventura, lembram-te que alguém tocou o teu coração com a varinha milagrosa do amor.

Ó tu, que amas e vives no controvertido mundo do arco-íres e da escuridão, da calma e da agitação, da paz e da instabilidade, saibas que existe mais alguém habitando o teu planeta!

Nas horas felizes, partilha com ele teus sorrisos; nas horas de solidão, vai, levanta-te e o procura, onde quer que ele esteja.

Ele não é senão parte de ti, assim como tu és parte dele.

Não olhes o relógio! Que importam as horas? A vida é tão curta, não há tempo a perder.

Ó tu, que amas, se tiveres a coragem e a singeleza de assim o fazer, abre teus lábios e canta o milagre do amor, porque só o amor aproxima as pessoas e faz com que falem a mesma linguagem!

Lauro Trevisan

A arte de ser infeliz em 2015

Alexandre Petillo

O homem perfeitamente infeliz acredita que a vida é um eterno recomeço e tem direito de desistir de tudo a qualquer tempo; coleciona despedidas como arquivos de mp3; só se alimenta de produtos orgânicos; leva uma garrafa de água por onde anda como se fosse o elixir da juventude; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (mas não toma comprimidos para não alimentar a indústria farmacêutica) e indignação (dispensa ansiolíticos, mas desabafa no Facebook enquanto consome cerveja gourmet).

O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos – e ele o diz frequentemente, sempre lembrando que nossa geração não vai chegar lá. Banho frio por princípio, mesmo no inverno – é um defensor ferrenho do meio-ambiente –, e uma hora e meia de ginástica diária, alterna entre caminhadas, “bike” e alguma ginástica moderna.

O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda de cabelo; ao sul, pelo partidos de direita que espalham mentiras (ou pelos partidos de esquerda, que querem fazer daqui uma nova Venezuela, existem homens perfeitamente infelizes dos dois lados); a leste, pelo 3G que não funciona.

O homem perfeitamente infeliz é contra o casamento formal. Toma conhecimento de todas as revoluções artísticas e literárias modernas: gênio é o Marcelo Camelo; brasileiro é o Marcelo Camelo; saber português é o Marcelo Camelo.

Em sua sala, o puzzle de um desenho do Romero Britto emoldurado, que ele mesmo montou, quase 10 mil peças.

A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: ele parou de tomar refrigerante e ver TV há cinco anos, três meses, doze dias, dezoito horas. Se não parou, vai parar a qualquer momento.

Sua simpatia política é de esquerda, está sempre do lado das minorias e dos menos favorecidos, escreve textos gigantes em defesa dos excluídos direto do seu jardim de inverno. As redes sociais são o seu recreio mental mais importante; ver séries americanas de TV enriquece seus argumentos nas rodas de bares que vendem chope a 10 reais.

Sua psicologia: o mundo ainda vai descobrir minha genialidade. Sociologia: crack é uma doença, mas aqueles viciados me atrapalham quando quero estacionar no centro. Filosofia: sou sempre melhor do que o que me oferecem.

Considera-se dono de um excelente bom humor; cita ditos históricos e provérbios edificantes; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: “Bem que eu te avisei!”.

O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz.

( Crônica publicada no jornal O Vale, de 08/02/2015 )

Nota: Este texto é uma versão moderna do homem perfeitamente infeliz descrito por Paulo Mendes Campos em 1960.

A morte e as mortes de Renato Russo

Diante da polêmica desatada quanto aos direitos da Legião Urbana sobre a obra de Renato Russo, além do uso criminoso de sua música “Que País é Esse?” nas manifestações de extrema-direita, resolvi investigar e entrar no assunto.

Alguns pecados foram cometidos contra a memória de um dos nomes mais talentosos da cultura nacional. Ainda não deixaram em paz o compositor, músico, poeta e artista multimídia Renato Manfredini Júnior.

São muitas as mortes do genial Renato Russo.

A primeira foi sua morte física, vitimado pela AIDS aos 36 anos de idade, em 1996. Ele se foi no auge de sua capacidade criativa, no ápice de uma produção brilhante, quando compunha verdadeiros poemas e depois, com o esmero de um ourives, lhes adaptava a melodia.

Agonizou a seu modo, discreto e altivo, enfrentando com evidente tranquilidade o seu determinismo biológico. Assistido pelo velho pai, um advogado de renome e alto funcionário do Banco do Brasil, preparou a cerimônia do adeus, que ia da destinação de toda herança a Giuliano, seu filho único, até mesmo ao local onde deveriam ser jogadas ao vento suas cinzas, nos jardins do sítio de Burle Marx. Clarividente, Renato conservou o bom humor nos dias tristes do fim. Morreu entre livros, desenhos, letras inéditas e seus discos, num dia ensolarado da primavera carioca. Já era um mito.

Outra morte, a segunda, ocorreu longe da atenção do distinto público, do sofrimento da legião de fãs da Legião Urbana e do conhecimento da imprensa. Foi a maneira como seus parceiros na célebre banda lidaram com o fim do grupo e a partida do seu líder. Um deles, Dado Villa-Lobos, chegou a agredir fisicamente o pai de Renato, um homem cuja honestidade era patente e inatacável, por motivos fúteis. Filho de um diplomata que serviu a ditadura militar com fidelidade canina, a agressividade do explosivo Dado era algo como um resquício do ambiente pesado da Brasília recém liberta dos milicos e suas práticas. Por essa época Dado alardeava,inclusive na imprensa, que se recusava a participar de “um velório sem fim”.

O outro integrante da banda era Marcelo Bonfá. Manuscritos de Renato, encontrados recentemente em seu apartamento (ainda hoje intocado, preservado como estava no dia de sua morte), deixam mal o moço, a quem Renato atribui um comportamento mesquinho e irascível. Com Dado, ele compunha o cenário onde Renato esbanjava charme mesmo sendo um homem feio. Renato lançava uma forma de dançar girando os braços que, mesmo desengonçada, caiu no gosto do país e influenciou declaradamente Caetano Veloso, por exemplo. Seu timbre de voz, grossa, algo melodramática, caiu no gosto de dezenas de milhões de admiradores e reverbera ainda hoje na memória deles todos, em gravações reproduzidas em rádios, em TVs, na internet ou em festas, bares, festivais.

Renato era um gênio, carismático e temperamental. Seus companheiros da Legião eram pouco mais que pajens, cambonos ou auxiliares de palco. Depois do fim da banda e da morte do seu líder, os dois jamais aconteceram, vivendo como ciprestes florescidos à beira do túmulo, herdeiros de milionárias migalhas de um eventual e finado parceiro. A extensa produção musical, profícua e exuberante, se foi com Renato Russo. Dado e Bonfá recebem os direitos autorais das parcerias com o falecido (algo como pouco mais de 20% do que Renato compôs) e não estouraram nas paradas de sucesso, não demonstraram algum insuspeito talento, alguma genialidade inesperada, um brilho que não se apresentou talvez por não existir.

E o que fizeram a família, o herdeiro, os que administram o legado artístico e empresarial do desaparecido líder da banda que morreu com ele? Continuaram a tocar adiante o patrimônio tanto material quanto artístico deixado por Renato Russo. O filho, Giuliano, adotou um modelo de gestão muito parecido com o que João Cândido Portinari utiliza para preservar o legado de seu pai, nosso maior artista plástico. Cercou-se de advogados, administradores, curadores e pesquisadores da obra de Renato. Muitos deles, amigos do fundador e líder da Legião.

Aí acontece a segunda morte de Renato Russo. E ela envolve caráter. E dinheiro, muito dinheiro.

Os seus antigos companheiros de banda, que até então cometiam abusos como shows na boate Kiss, trágico palco da tragédia de Santa Maria (RS), tournée internacional no Uruguai sem autorização da família, um desastrado tributo com Wagner Moura protagonizando Renato no palco, sempre utilizando o nome “Legião Urbana”, uma marca histórica a ser preservada. Os herdeiros de Renato perdoaram as leviandades, engoliram os abusos, nada fizeram. E erraram, certamente.

O legado já estava sendo organizado, um farto material esparso sendo reunido, a obra tomando um bom rumo e passando a ser gerenciada com profissionalismo e competência. Como, aliás, o fazem os herdeiros de Tom Jobim, de Jorge Amado, de Frank Sinatra… A cultura deve ser tratada como um bem para consumo público mas dotada dos instrumentos que a protejam, preservem, evitem sua deturpação ou mesmo sua morte.

Aqueles rapazes secundários no palco de Renato, parceiros em bem menos de 1/3 das músicas (as letras, todas, de autoria de Renato), resolvem ir à Vara da Fazenda, na Justiça do Rio de Janeiro, e alegam através de seus advogados que eram donos da marca, já que a Legião era um trio, Renato morreu e eles teriam direito a 33% cada um, cabendo aos herdeiros a terceira parte, tão somente.

E fazem, através das redes sociais, um estardalhaço absoluto, total, amparados por uma legião estridente de fãs da Legião Urbana. Fãs sinceros, aliás, mas desinformados da questão envolvida: um assassinato de direitos.

A história é longa, mas pode ser contada em poucas linhas.

Renato sempre foi um sujeito extremamente organizado, meticuloso, cuidadoso com suas coisas, direitos e obrigações. Não parecia, mas era. E registrou nos idos de 1987 a marca Legião Urbana, através de uma empresa da qual presenteou (isso: presenteou) Dado e Bonfá com uma pequena fração (8 alíquotas cada um), ficando senhor absoluto do controle acionário total, com 198 alíquotas. No mesmo ano, a dupla revende ao mesmo Renato o que dele havia recebido como mimo.

Quase duas décadas depois da morte do líder da banda, e mais de duas décadas depois do negócio – por sinal registrado na Junta Comercial de Brasília – os que ganharam, revenderam e receberam o acertado, resolvem que são donos do que venderam! E em fração muito maior, algo como saltando de irrisórios menos de 10% para 66% da empresa!

Giuliano é um jovem apaixonado pela obra e pela memória do pai. Pelo que se sabe, vive longe da badalação e pouco usufrui da riqueza material, discreto que é. Teve o mérito de reorganizar a obra e de administrá-la assessorado por profissionais da área. A cultura agradece. Porém, ele apanha de gente que sequer havia nascido quando seu pai morreu, insuflados pela desinformação, como uma matilha virtual no Facebook. Recordam o caso de uma ex-amante de Di Cavalcanti que, de posse de uma carta duvidosa do grande pintor, impediu que a obra de Di fosse festejada, citada, organizada, utilizada em benefício do país e dos autênticos herdeiros. A história sequer registra o nome dela. Mas sua loucura atrasou em décadas um trabalho que ainda hoje não se fez.

Os ambiciosos ex-pajens de Renato estão perdendo no mérito. Não vão morder o dinheiro que não lhes pertence. Mas lograram o discutível direito de se utilizarem da marca em suas apresentações em shows, como aquele da boate-crematório. Que sejam felizes.

A terceira morte de Renato Russo é a mais cruel de todas. É ideológica.

Renato foi um homem avançado, declarado admirador de Lula, leitor dos clássicos da literatura mundial, conhecedor dos pensadores e grandes personagens históricos. Sua obra é claramente revolucionária, quebrando paradigmas, inovando, rompendo tabus e se impondo por um nítido caráter transformador. Mas em manifestações da extrema-direita, como a ocorrida dias atrás na Avenida Paulista, a meia-dúzia de ratos pingados entoava “Que país é esse?”, ao mesmo tempo em que defendia o impeachment de uma presidente reeleita faz poucos dias, urrava pelo retorno dos militares, defendia a pena-de-morte entoando um verdadeiro hino que reverbera nas consciências. Um escândalo, um absurdo. As cinzas de Renato voaram, de novo, nos jardins de Burle Marx.

O mais amargo tributo que os grandes artistas pagam é o eventual desvio de finalidade das obras que nos legam. Picasso renasceria para morrer de novo se Guernica fosse exposta no palácio de um ditador.

O direito à propriedade intelectual, o direito autoral, a preservação da obra e o respeito à produção cultural são verdadeiros dogmas. Não cabe discussão barata com quem não entende do assunto e com quem não respeita a lei. Ou pior, com quem quer faturar o que não lhe pertence.

Palmério Doria