Não é mais possível fazer vista grossa à violência perversa de Bolsonaro

Jorge Coli

Em contabilidade sinistra, presidente se opõe à ciência e minimiza perigo de coronavírus

Churchill teria dito uma frase assim: “Ele é tão cretino que até a turma dele acabou percebendo”. Cai como uma luva para a atual situação de Bolsonaro, cada vez mais isolado no poder.

Porém, Bolsonaro não se caracteriza apenas por ser cretino. Além de pascácio, seu universo mental é pervertido. Bolsonaro tem as características dos piores ineptos: aqueles que são desumanos. A tal ponto que alguns políticos reles, pelo contraste, estão parecendo nem tão indecentes assim!

Começamos, no Brasil, a contar para além de 2.000 os mortos por coronavírus. Sabemos que esses números são inferiores à quantidade real de vítimas e não passam de indicadores: falta de testes; autópsias não podem ser feitas por risco de contaminação; hospitais não comunicam, ou não conseguem identificar, todas as causas mortis; entre outras razões.

Sem contar que, por esse Brasil afora, em lugares perdidos ou desfavorecidos, quantos não morreram e vão morrer sem que se saiba a causa. Portanto, o número de vítimas é alto, mais alto ainda do que dizem os indicadores tenebrosos.

Muitas dessas mortes foram causadas pelas afirmações absurdas, contrárias a tudo o que a ciência diz, e que Bolsonaro insistiu em proclamar, em divulgar até mesmo oficialmente, por meio de cadeia nacional, minimizando, em nome da economia, o perigo que o contágio representa.

Gripezinha, resfriadinho que não o abateria, um super-homem com passado de atleta (quando tantos verdadeiros atletas pelo mundo, e jovens, já se foram, vitimados pela Covid-19), exibindo falsas flexões em vídeo. E que não causaria danos à grande maioria das pessoas.

“Vai morrer gente, vai”, ele disse, mas apenas os velhos, os fracotes, gente que não conta para a produtividade do país. Sua sinistra contabilidade define quem tem ou não direito à vida.

Estou nesta triste lista, eu, com 72 anos, dentro do grupo de risco, como tantos outros frágeis e idosos, prontos para o forno crematório. Viva o país dos “young and healthy”!

“Não mata mais do que o surto da H1N1 no ano passado”, ele disse. Mal começou a epidemia do coronavírus entre nós e já ultrapassamos de bastante a soma dos mortos causados pela gripe de 2019.

Não importa. A anta maligna continuou saindo às ruas, reunindo pessoas em volta dele e proclamando, todo orgulhoso: “Eu tenho direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir”. Por causa dele, tanta gente deixou o cuidado elementar contra o vírus, seja porque cansou de ficar em casa, seja escudado pelo moralismo da produtividade, do “vou trabalhar porque não sou preguiçoso”.

Bolsonaro é culpado pelos mortos que desrespeitaram o confinamento pois foram encorajados por ele. É um genocida.

A violência perversa que se instalou desde o início de seu governo, com devastação de florestas, desmonte da educação e da pesquisa científica, abandono das populações indígenas aos predadores, e tantos outros crimes, podia passar despercebida a quem fazia vista grossa: tudo isso era longe, abstrato, e o importante mesmo era salvar a economia. Agora, com a peste na porta de cada um, não é mais possível deixar de ver que o pesadelo longínquo se tornou, de fato, realidade.

Mas, calma aí, Bolsonaro não é tão culpado assim. Há pior do que ele. Piores são os eleitores que o puseram lá, no alto do poleiro. Cada um que votou em Bolsonaro é cúmplice das mortes que ele está provocando. Cúmplices de genocídio e de assassinato.

E não é possível dizer: “Eu não sabia”. Não sabia, com a campanha baseada na celebração das armas, na vontade de metralhar os inimigos políticos? Campanha alimentada pela pulsão de morte? Como não sabia, cara pálida?

Você votou em Bolsonaro levado por ódio irracional, que o impediu de ver a abominação evidente. Que o fez isentar as manifestações de machismo, de racismo, de desprezos preconceituosos vomitados sem vergonha. Que levou você a acreditar nas manipulações oportunistas de uma justiça a serviço de fins eleitoreiros, perfeitamente bem-sucedidas, a ponto de porem o juiz responsável na poltrona de ministro. Seu ódio deixou você cego. Votos não poderiam ser conduzidos por ódios ou por amores.

Não creio que a mula sem cabeça tenha algum remorso, diante das mortes que aumentam. Mas é impossível que a decência tenha abandonado todos os seus eleitores.

Para estes, é hora de assumir a responsabilidade por todos os horrores desumanos causados pelo presidente. E de aprender a lição que, por infelicidade, tem custo tão alto.

Chomsky e a viabilidade da espécie humana

Srecko Horvat

Entrevista do filósofo e linguista americano Noam Chomsky. Hoje com 92 anos e tendo vivido como testemunha muitos dos grandes fatos que marcaram o século XX e o início do XXI, ele analisa o cenário da crise do coronavírus e traça um quadro nada animador para os próximos anos. No entanto, cita que o isolamento social destes tempos deve ser usado para fortalecer os laços sociais e desenvolver projetos de resistência. A entrevista foi concedida no fim de março de 2020, uma conversa com o filósofo e co-fundador do DiEM25, Srecko Horvat.

Srecko Horvat: Você nasceu em 1928 e escreveu seu primeiro ensaio quando tinha 10 anos de idade sobre a Guerra Civil Espanhola, após a queda de Barcelona em 1938, o que parece bem distante. Sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, testemunhou Hiroshima e muitos eventos históricos e políticos importantes, da Guerra do Vietnã, a crise do preço do petróleo, a queda do muro de Berlin, Chernobyl, testemunhou o momento histórico que levou ao 11 de setembro e o crash financeiro de 2007/2008. Com esse background e sendo um ator da maioria desses processos, como vê a atual crise do coronavírus, algo sem precedente histórico. Surpreende você? Como observa isso tudo?

Noam Chomsky: Devo dizer que as memórias mais tenras que me assombram agora são dos anos 1930, o artigo que você mencionou sobre a queda de Barcelona foi sobre, aparentemente, a inexorável propagação da praga fascista sobre a Europa e como chegou ao fim. Descobri muito mais tarde, quando os documentos internos vieram à publico que os analistas do governo americano, na época e nos anos seguintes esperavam que a guerra terminasse com mundo dividido entre regiões dominadas pelos EUA e uma região dominada pela Alemanha.

Meus medos infantis não estavam completamente errados. E essas memórias voltam agora. Quando era criança, posso lembrar, ouvindo comício de Hitler em Nuremberg no rádio, podia não compreender as palavras, mas podia facilmente entender o clima daquilo tudo, e tenho que dizer que quando escuto os discursos de Trump hoje, soa algo parecido. Não que ele seja fascista, não tem muito de uma ideologia, é apenas um sociopata, um indivíduo preocupado consigo mesmo, mas o clima e o medo é similar e a ideia de que o destino do país e do mundo está nas mãos de um sociopata bufão é chocante.

O coronavírus é algo sério o suficiente, mas vale lembrar que há algo muito mais terrível se aproximando, estamos correndo para o desastre, algo muito pior que qualquer coisa que já aconteceu na história da humanidade e Trump e seus lacaios estão à frente disso, na corrida para o abismo. De fato, há duas ameaças imensas que estamos encarando. Uma é a crescente ameaça de guerra nuclear, exacerbada pela tensão dos regimes militares e claro pelo aquecimento global. Ambas podem ser resolvidas, mas não há muito tempo e o coronavírus é terrível e pode ter péssimas consequências, mas será superado, enquanto as outras não serão. Se nós não resolvermos isso, estaremos acabados. As memórias da infância continuam voltando para me assustar, mas em uma dimensão diferente. A ameaça de guerra nuclear não fazia sentido com o mundo onde está, mas olhando para o passado recente, em janeiro, o relógio do juízo final é ajustado a cada ano com os ponteiros dos minutos a uma certa distância da meia noite, que seria o fim. Desde que Trump foi eleito, o ponteiro tem se movido para mais perto da meia noite. Ano passado estava a dois minutos da meia noite. O mais próximo já alcançado. Esse ano os analistas retiraram os “minutos” e movem agora o ponteiro em segundos, 100 segundos para a meia noite, o mais próximo que já estivemos. Observando três questões: A ameaça da guerra nuclear, a ameaça do aquecimento global e a deterioração da democracia, essa última que não está tendo espaço aqui, mas é a única esperança que temos para a superação da crise. Para que as pessoas tenham controle sobre seu destino, se isso não acontecer, estamos condenados.

Se deixarmos nosso destino com sociopatas bufões, será o fim. E isso está próximo, Trump é o pior, por causa do poder dos EUA, que é esmagador. Estamos falando do declínio dos EUA, mas você olha para o mundo e não vê quando os EUA impõem sanções, assassinatos, sanções devastadoras, é o único país que pode fazer isso, mas todo mundo tem de segui-lo. A Europa pode não gostar das ações odiosas contra o Irã, mas tem que acompanhar, deve seguir o mestre, ou será chutada do sistema financeiro internacional. Não é uma lei da natureza, é uma decisão na Europa estar subordinada ao mestre em Washington, outros países não tem nem tem mesmo como escolher. Voltando ao coronavírus, um dos mais chocantes e severos aspectos disso, é o uso de sanções para maximizar a dor, intencionalmente, o Irã está em uma zona com enormes problemas internos pelo estrangulamento do arrocho das sanções, que são intencionalmente desenhadas, para fazer sofrer mais e mais agora. Cuba vem sofrendo, desde o momento em que ganhou sua independência, mas é surpreendente que tenha sobrevivido, mas ficaram resilientes e um dos elementos mais irônicos desta crise do vírus, é que Cuba está ajudando a Europa. Quero dizer, isso é tão chocante, que você não sabe como descrevê-lo. Que a Alemanha não pode ajudar a Grécia, mas Cuba pode ajudar a Europa. Se você parar pra pensar sobre o que significa isso, todas as palavras não servirão. Quando você vê milhares de pessoas morrendo no Mediterrâneo, fugindo de uma região que foi devastada por séculos e sendo enviadas para morrer ali, você não sabe que palavras usar. A crise civilizacional do ocidente neste ponto é devastadora, pensar nisso e trazer memórias de infância de ouvir Hitler no rádio enlouquecer as multidões, faz você pensar se esta espécie [humana] é mesmo viável.

Srecko Horvat: Você mencionou a crise da democracia. Atualmente acho que devemos nos encontrar em um momento sem precedentes no sentido de que cerca de 2 bilhões de pessoas estão de uma forma ou de outra confinadas em casa, em isolamento, auto-isolamento ou quarentena. Ao mesmo tempo o que nós podemos observar é que na Europa, mas também outros países perto de suas fronteiras, internas ou externas, há um estado de exceção em todos os países em que possamos pensar, em regressão em lugares como França, Servia, Espanha, Itália e outros, exército nas ruas… e quero perguntar a você como linguista. A linguagem que circula nesse momento: Ouvindo não apenas Trump, se você ouvir Macron ou alguns outros políticos europeus, constantemente escutará que eles falam sobre Guerra. Mesmo na mídia se fala sobre “frontliners” e o vírus sendo tratado como inimigo. O que me lembra também Victor Klemperer em “Lingua Tertii Imperii”, livro em que falou da linguagem do Terceiro Reich e como a linguagem e a ideologia foram impostas. Sob sua perspectiva , o que esse discurso sobre guerra representa, para legitimar um estado de exceção, ou algo mais profundo neste discurso?

Noam Chomsky: Eu penso que não é exagero. O significado é que se nós lidamos com a crise, estamos nos movendo para uma mobilização como as de tempos de guerra. Se você pensar, pegue um país rico, como os Estados Unidos que tem recursos para superar a questão econômica de imediato. A mobilização para a Segunda Guerra Mundial deixou o país com uma grande dívida que está completamente saldada hoje e a mobilização foi bem sucedida, praticamente quadruplicou a indústria dos Estados Unidos, acabou com a depressão e deixou o país com mais capacidade para crescer.

Isso é menos do que precisamos provavelmente, não naquela escala, isso não é uma guerra mundial, mas nós precisamos da mentalidade desse movimento, nessa crise que essa é severa aqui nós também podemos lembrar da epidemia da gripe suína em 2009, originada nos Estados Unidos. Centenas de milhares de pessoas se recuperaram do pior, mas tem que lidar com isso em um país rico como os Estados Unidos.

Agora dois bilhões de pessoas, a maioria está na Índia. O que acontece para os indianos, eles vivem “da mão para a boca”, estão isolados e morrem de fome. O que irá acontecer? Em um mundo civilizado os países ricos dariam assistência, aqueles que estivessem em necessidade ao invés de estrangulá-los, que é o que estamos fazendo particularmente na Índia e em muitos dos países no mundo.

Se a atual tendência persiste no sul da Ásia, se tornará inabitável em poucas décadas. A temperatura alcançou 50 graus no Rajastão, neste verão está aumentando. A questão das águas agora pode piorar, há dois núcleos de poder que irão lutar por recursos reduzidos de água. Eu digo que que o coronavírus é muito sério, nós não podemos subestimá-lo, mas nós temos que lembrar que isso é uma pequena fração da crise que está vindo. Pode talvez não ameaçar a vida o que o coronavírus faz hoje mas, (tais fatos) irão perturbar a vida ao ponto de tornar a espécie inviável em um futuro não muito distante.

Então nós temos que lidar com muitos problemas, problemas imediatos, o coronavírus é sério, como muitos outros maiores, vastamente maiores, e que são iminentes. Agora há uma crise civilizacional, temos que ver o lado bom do coronavírus, o que pode fazer as pessoas pensarem sobre que tipo de mundo nós queremos? Nós queremos um mundo que nos leva a isso? Devemos pensar sobre a origem desta crise, por que há uma crise do coronavírus? É uma falha colossal do mercado, leva direto a essência dos mercados exacerbados pelo neoliberalismo selvagem, a intensificação neoliberal, os problemas socioeconômicos. Isso era sabido há muito tempo, que a pandemia era muito provável, entendemos muito bem a probabilidade da pandemia do coronavírus, uma modificação da epidemia da SARS, que foi superada 15 anos atrás, o vírus foi identificado, sequenciado, vacinas estavam disponíveis, laboratórios ao redor do mundo poderiam trabalhar diretamente em desenvolver uma proteção para uma potencial pandemia do coronavírus.

Por que não fizeram isso? As companhias farmacêuticas. Nós temos entregado nosso destino a tiranias privadas, corporações, que são inexplicadas para o público, nesse caso, o Big Farma. Para eles fazer novos cremes corporais é mais lucrativo do que encontrar uma vacina que proteja as pessoas da destruição total. É possível para o governo entrar nisso, voltar às mobilizações dos tempos de guerra, foi o que o que aconteceu com a pólio naquele tempo, eu posso me lembrar muito bem, a terrível ameaça que foi extinta pela descoberta da vacina Salk, por uma instituição do governo, apoiada pela administração Roosevelt. Sem patentes, disponível a todos. Que pode ser feito agora, mas a praga neoliberal bloqueia isso. Estamos vivendo sob uma ideologia para a qual os economistas têm uma boa parte de responsabilidade, que vem do setor corporativo. Uma ideologia que é tipificada por aquilo que Ronald Reagan colocou no script, pelo seu mestres corporativos com seus sorrisos reluzentes, dizendo que o governo é o problema. Vamos nos livrar do governo, o que quer dizer “vamos deixar as decisões nas mãos das tiranias privadas que não tem responsabilidade com o público”. Do outro lado do Atlântico Margaret Thatcher nos mostrou que há uma sociedade, em que apenas indivíduos jogados dentro do mercado podem sobreviver de alguma forma e para além disso não há alternativa. O mundo tem sofrido sob o poder dos ricos por anos, e agora é o ponto onde as coisas podem estar acabadas. Com intervenção direta do governo no escopo da invenção da vacina Salk, mas que é bloqueado por razões ideológicas da praga neoliberal e o ponto é que essa epidemia de coronavírus poderia ter sido prevenida.

A informação que estava ali para ser lida era bem conhecida em outubro de 2019 logo antes do surto. Houve uma grande simulação em escala nos Estados Unidos para uma possível pandemia Mundial desse tipo. Nada foi feito, agora a crise ficou bem pior pela traição do sistema político. Nós não prestamos atenção na informação que estavam cientes em 31 de dezembro, a China informou à OMS sobre uma pneumonia com sintomas com etiologia desconhecida. Uma semana depois eles identificaram, alguns cientistas chineses, como um coronavírus, também sequenciaram e deram a informação ao mundo pelos seus virologistas, outros que ficaram incomodados em ler o relatório da OMS. Os países naquela área, China, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura começaram a fazer algo e contiveram o surgimento da crise. Na Europa o que aconteceu, Alemanha foi capaz de agir de maneira egoísta, não ajudando os outros. Outros países apenas ignoraram. Um dos piores deles o Reino Unido e o pior de todos, os Estados Unidos, que disseram um dia que não havia crise, diziam “ser apenas uma gripe”, e no dia seguinte era uma terrível crise, que sabiam de tudo. No dia seguinte: “nós temos que tratar de negócios, porque tenho que vencer a eleição…”

A ideia de que o mundo está nessas mãos é chocante, mas, o ponto é que começou com uma, novamente, colossal falha do mercado ao ponto fundamental da ordem econômico-social deixada muito pior pela praga neoliberal e ela continua por causa do colapso nas estruturas institucionais que poderiam lidar com isso, se estivessem funcionando.

Esses são os pontos que nós temos que pensar seriamente e pensando mais profundamente digo, em que tipo de mundo nós queremos viver? Se superarmos de qualquer forma haverá opções. O alcance das opções vão da instalação de Estados altamente autoritários por todas as partes até a reconstrução da sociedade em termos mais humanos, preocupados com as necessidades humanas ao invés do lucro privado. Isso é o que nós devemos ter em mente, que estados altamente autoritários e viciados são bastante compatíveis com o neoliberalismo, os teóricos do neoliberalismo como Hayek e o resto eram perfeitamente felizes com o estado massivo de violência apoiada pela economia. O neoliberalismo tem suas origens em 1920 em Viena no estado proto fascista austríaco que esmagou a união dos trabalhadores e a social-democracia austríaca e fez parte do governo proto fascista e louvou o fascismo e sua economia protecionista. Quando Pinochet instalou ditadura assassina brutal no Chile eles amaram, eles lutaram lá, auxiliando esse “milagre maravilhoso”, que que trouxe “solidez da economia”, grandes lucros, para uma pequena parte da população.

Não é errado pensar que sistema neoliberal selvagem pode ser reinstalado por auto-proclamados liberais por forte violência do Estado, um pesadelo que pode vir. mas é necessário a possibilidade de que as pessoas se organizem, se tornem engajadas para um mundo muito melhor, que também enfrentará os enormes problemas que estamos lidando… Problema da guerra nuclear que está mais próximo do que nunca esteve, o problema da catástrofe ambiental do qual pode não haver retorno uma vez que chegamos em tal estágio e não está em uma distância tão grande, a menos que nós arranjemos decisivamente. Então é um momento crítico da história humana não apenas por causa do coronavírus, mas deve nos trazer a consciência das profundas falhas, de forma mais profunda, as características disfuncionais de todo sistema sócio-econômico. Pode ser um sinal de alerta em uma lição para nos prevenir de uma explosão, mas pensando sobre isso e coisas como essas vai nos levar a mais crises piores que essas com um preço extra a se pagar.

Srecko Horvat: Como se dará a resistência em tempos de distanciamento social e o que se esperar de um futuro pós-coronavírus?

Noam Chomsky: Primeiro de tudo nós devemos ter em mente que há, desde poucos anos atrás, uma forma de isolamento social que é muito danosa. Você vai ao McDonald’s e vê adolescentes sentados ao redor da mesa comendo hambúrguer e o que você vê é uma conversa rasa de uns ou alguns outros mexendo no seu próprio celular com algum indivíduo remoto, isso tem atomizado e isolado as pessoas em uma extensão extraordinária. As redes sociais têm tornado as criaturas muito isoladas, especialmente os jovens. Atualmente, as universidades nos Estados Unidos onde os passeios tem placas dizendo “olhe para frente” porque cada jovem ali está grudado em si mesmo, essa é uma forma de isolamento social auto-induzido, o que é muito prejudicial.

Estamos agora em situação real de isolamento social. Que deve ser superada com recreação, laços sociais e tudo que puder ser feito. Qualquer coisa que puder ajudar as pessoas em necessidades, desenvolvendo organizações, expandindo análises… Fazendo planos para o futuro trazendo as pessoas para perto… Procurando soluções para os problemas que encaram e trabalhar neles. Estender e aprofundar atividades, pode não ser fácil, mas os humanos têm encarado seus problemas.

A infância são lugares e ruídos

Marcelo Franco

Vocês todos aí preocupados com os rumos do país e eu aqui cumprindo um ritual de recordações que é um dos meus prazeres de domingo. Envolve álbuns antigos de fotografias, pesquisas na internet e até caminhadas pelas ruas e vielas da minha juventude. Sendo leitor de Proust, Pedro Nava e Eric Kandel, desde cedo eu estava destinado à sina de lembrar. Meu cérebro fervilha de passagens muito antigas, coisas que vi e imagens e sons há muito distantes do meu “eu presente”. “Les événements m’ennuient”, mas apenas os atuais, nunca os passados.

Vendo fotografias da minha infância, me veio uma dúvida estranhíssima: ainda há Melissas? Sim, aquelas sandálias de plástico que as garotas usavam na “minha infância querida que os anos não trazem mais” — o que foi feito delas? Toas as garotas que aparecem nas fotos antigas a estavam usando no momento do instantâneo que as imortalizaria em imagem para mim.

Há anos nem mesmo a palavra me vinha à memória, e eis que, de repente, Melissa! É todo um passado que renasce — ou que sempre esteve à minha volta sem que eu percebesse. A simples lembrança das tais sandálias também me joga numa espécie de túnel do tempo — como o carro de Marty McFly e Doc Brown em “De Volta Para o Futuro”, esse nome me leva diretamente ao passado.

Se as garotas usavam Melissa, nós meninos calçávamos tênis Montreal — que patrocinavam o programa “Domingo no Parque” (“Você troca uma bicicleta por uma chupeta velha?”, perguntava Silvio Santos; “Siiiimmm!!!”, respondia o incauto). Ou tênis Redley, com a parte de trás dobrada e os calcanhares de fora. Ou ainda, luxo dos luxos, All Star de cano longo — não o nacional, mas o made in USA, que tinha dois furinhos nas laterais.

Havia calças baggy e semi-baggy para as garotas. Calças e camisas em cores cítricas da Company, K&K ou Fiorucci para nós meninos (calças Zoomp eram um sonho distante: caras e usadas só pelos mais descolados). Carteiras emborrachadas da OP (com velcro). Chaveiros de fio de telefone da Pier. Relógios Champion que trocavam de pulseira. Era um mundo de horrores: garotos com cabelo mullet (é assim que se escreve?) usando tênis verdes e com os calcanhares à mostra, calças laranja, camisetas pink, relógios amarelos, carteiras azuis. Na hora do futebol, Kichute com cadarços amarrados nas canelas. Bocas abertas para mascar os enormes chicletes Bubbaloo. Como, como pudemos?

A atitude, por assim dizer, vinha com tudo o que era externo a nós mesmos. Usávamos essas roupas, mas também escrevíamos com Bic 4 Cores ou com caneta Kilométrica, a caneta simpática por um preço milimétrico. Perfume Azzaro (dizíamos, brincando, “arrasô”). Bebíamos Super Nescau, a energia que dá gosto. Danoninho valia por um bifinho. Queríamos ter barba para fazê-la com Prestobarba: a primeira faz tchan, a segunda faz tchun e… tchan-tchan-tchan! Mas não sei se as mulheres usavam Impulse — “Se algum desconhecido um dia lhe oferecer flores, isso é Impulse!”.

E víamos “Armação Ilimitada” e “TV Pirata”. MacGyver detendo um vazamento de ácido sulfúrico com uma barra de chocolate. Silvio Santos anunciando “Pássaros Feridos”: “É um filme muito bom, um filme a que eu já assisti várias vezes. Mas podem ver a novela da Globo. ‘Pássaros Feridos’ só começa depois que a novela acabar”. O baixinho da Kaiser. A menina do Tang. Fernandinho da camisa (“Bonita camisa, Fernandinho!”). Araquém, o showman. Tetê Espíndola cantando, esganiçada, “Escrito nas Estrelas” (primeiro lugar no “Festival dos Festivais”). Víamos repetidamente nossas séries favoritas: “Era uma vez três belas garotas que cursaram a Academia de Polícia. E todas cumpriam tarefas muito perigosas. Mas eu as tirei de tudo aquilo e agora elas trabalham para mim. Meu nome é Charlie”. E também: “Steve Austin, astronauta. Um homem semimorto. Senhores, nós podemos reconstruí-lo. Temos a capacidade técnica para fazer o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin será esse homem. Muito melhor do que era. Melhor, mais forte, mais rápido”. “A Gata Comeu”, com toda aquela turma perdida numa ilha. No cinema, “Top Gun” e “Karatê Kid”. Para que mogwais não se transformassem em gremlins, não deviam ser expostos a luz forte, não podiam ser molhados e tampouco deviam ser alimentados depois da meia-noite.

Cantávamos “Take My Breath Away”, “I Just Called to Say I Love You” ou, os mais moderninhos, “Reggae Night”. Em vez de cantar “Na madrugada, vitrola rolando um blues/ Tocando B.B. King sem parar”, dizíamos “Trocando de biquíni sem parar”. Também era preciso saber a longuíssima letra de “Faroeste Caboclo”. (Só para especialistas: quem se lembra das bandas “Afrodite se Quiser”, “Heróis da Resistência” e “Picassos Falsos”?). As músicas eram gravadas em K7 e, quando tínhamos idade para sair com o carro dos pais, o toca-fitas tinha de ser retirado e carregado nas mãos para que não fosse furtado (e não era um trambolho: era, antes, sinal de status). Como, como pudemos?

A tecnologia avançava: no colégio, fazíamos provas copiadas em mimeógrafo (todo mundo ficava meio aéreo com o cheiro de álcool). Achávamos que os primeiros microondas davam câncer. Decorávamos programações enormes para nossos computadores CP-500. Pernas e braços quebrados eram engessados — ah, o prazer de desenhar no gesso da garota por quem se era apaixonado… E, para sermos modernos, falávamos “numa nice” e “da lata” (o legal era saber explicar a origem da expressão…).

Havia as dificuldades, claro. Juntar moedas naqueles cofrinhos distribuídos pelos bancos. Conhecer alguém que pudesse trazer novidades da Zona Franca de Manaus. Ter medo, no colégio, de topar com a “loira do banheiro”. Rodar discos ao contrário para ouvir mensagens cifradas. Era comum jogar ovos e farinha nos aniversariantes. Tênis novos ganhavam pisões para ser batizados. Jogando “adedonha” e saindo a letra “D”, ninguém nunca decidiu se “dragão” e “dinossauro” valiam como animais e se “dourado” era cor. Nas locadoras, havia uma sala secreta com os melhores filmes, que precisavam ficar escondidos porque eram todos pirateados.

Essa era a nossa vida. (Teste rápido para saber se você foi adolescente nos anos 80: quais os nomes de todos os filhos de Pepeu Gomes e Baby Consuelo? Resposta: Sara Sheeva, Zabelê, Nanashara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá.) Vimos tudo isso. Só não vimos o cometa Halley, que o mundo todo procurou em 1986 e não encontrou.

Como disse, era mesmo um festival de atrocidades. Mas as Melissas não entravam nessa lista: afinal, as garotas mais cobiçadas tinham as suas. É curioso: não consigo me lembrar das meninas sem também pensar nas Melissas que elas usavam. E elas, as garotas, eram um mundo à parte. Estavam sempre por ali, mas nunca muito perto, não havia a interação que existe hoje. Nas festinhas, meninos ficavam num canto, meninas se aglomeravam noutro. Contato, só quando se dançava uma lenta (“dançar a lenta”! Quando algum amigo dizia que devíamos nos aproximar da garota que queríamos, respondíamos que iríamos esperar para “dançar a lenta” — e, pergunto-me agora, por que diabos os amigos não se aproximavam das garotas que eles queriam?). Mas, sôfrega e desordenadamente, nós as vigiávamos, perseguíamos e irritávamos. Suas existências povoavam as nossas.

Nós, meninos, é claro, disputávamos. Estremeço de medo retrospectivo só de pensar que sou um sobrevivente (como todos os homens): corríamos velozmente em cima de muros e telhados, pulávamos grades com pontas, mergulhávamos em montes de areia pulando de cima de árvores, onde ficávamos com a cabeça perto de fios de alta tensão, descíamos a rua 102 em carrinhos de rolimã quase até a avenida 83, rezando para que os freios (uma trava das rodinhas) funcionassem (se não funcionavam, a solução era pular do carrinho ou virá-lo com o peso do corpo, deixando a pele no asfalto), voávamos com bicicletas, jogávamos pedras pontudas uns nos outros. Mas está tudo lá: ri, briguei, amei, odiei. Vi nascimentos, conheci a injustiça da morte. Descobri o amor e suas alegrias e dores. Conheci a amizade, com suas traições à espreita. Todas as experiências fundadoras, por assim dizer. Alguém já disse que se engana quem quer que a infância seja um tempo de inocência plácida: é preciso aprender a lidar com o mundo, com o mistério do amor e da morte e com os poderes da sexualidade, aquilo que Miguel de Unamuno chamaria de “sentimento trágico da vida” — eu, por exemplo, com 12 ou 13 anos sabia tudo, digamos, sobre o funcionamento de joguinhos eletrônicos, mas não sabia lidar com uma garota ou tomar um ônibus. Mas aos 15 ou 16 já havia aprendido minhas lições na rua.

Tudo, tudo ficou na memória, e essa obsessão já me fez escrever muitas vezes sobre a rua da minha juventude. A infância, alguém já escreveu e repito aqui, são lugares: a rua, a escola, a chácara, o clube. E também é um charivari contínuo, todo um ruído — risos, músicas soltas, berros, escapamentos de carros, barulhos de coisas que caem — ao redor desses lugares.

Esforçando-me um pouco, as imagens voltam-me nítidas. Fecho os olhos agora e me lembro de novo das meninas, daquilo que então já pressentíamos como um mistério. Elas — sempre um mundo à parte — cantavam a antiga cantiga de roda: “nestarua nestarua tem um bosque/ quesechama quesechama solidão/ dentrodele dentrodele mora um anjo/ queroubou queroubou meu coração”. Depois ladrilhavam a rua “compedrinhas compedrinhas de brilhante”. E sim, as meninas ainda cantavam cantigas de roda: o mundo mudou só na década de 90; na década de 80, durante minha infância e adolescência, Goiânia era como uma cidade do interior, havia cantigas, havia muros baixos, havia inocência, havia jardins. Havia jardins — essa frase explica tudo: nos anos 90, já não havia mais jardins.

É uma vigilância eterna pairava sobre nós, principalmente das mulheres — minha vida foi povoada por mãe, irmã, tias, primas, toda uma estrutura estabilizando seus pequenos homens em construção. Mas havia as garotas. E havia as Melissas que as garotas usavam.

Fecho os olhos novamente e as vejo agora individualmente e não em grupo. Lá vem a Mariana com suas pernas já longas (Melissa branca. Modelo “Aranha”, descubro agora no Google). Lá estávamos nós em cima de um muro esperando a tarde toda para ter um vislumbre da Letéia, dos seus assombrosos olhos verdes e dos seus dentes que de tão brancos brilhavam ao sol (outra Melissa branca). Certa vez eu a vi, de cima de um telhado, tomando banho — e essa imagem foi um cataclismo que me atormentou durante muitas semanas. Lá estão Alessandra e Geane (Melissas rosa iguais), que vieram de São Paulo e eram mais velhas do que nós, nos atiçando e nos deixando humilhados pelo que sentíamos e ainda não entendíamos. Patrícia, que colava figurinhas “Amar é…” e escrevia mensagens nos meus cadernos (Melissa verde, como seus olhos). A adolescência é uma sequência de oportunidade perdidas, não?

Sobretudo, não consigo deixar de pensar naquela moça, aquela, de pernas longas e pele clara e que, muitos anos depois, causaria um turbilhão na minha vida (a dor de querer e, depois, a dor de esquecer). O que me agonia é que não pude vê-la, com 12 ou 13 anos, usando Melissa Aranha e correndo pelas ruas do bairro (as garotas eram “sapecas” ou “levadas”, diziam os pais. Ela, com certeza, deve ter sido — ainda é. Mas ninguém mais diz isso). Essa nostalgia do que não vi dói, profunda e irreparavelmente, em algum lugar do meu peito.

Nosso destino inexorável é… Bem, é aquele. Por isso, relembrar é tão importante. E também viver o dia: “carpe diem” etc. etc. Assim, para que as obrigações chatas e cotidianas não me façam esquecer que a vida deve ser vivida, recito diariamente para mim mesmo estes versos de Manuel Bandeira:

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Todas aquelas garotas e Melissas vivem apenas em mim, e, recordando, posso fingir que um dia o mundo foi mais simples e divertido — como uma menina sapeca de Melissa correndo pelas ruas do bairro.

Pensando bem, não quero saber se ainda fazem Melissas.

O Mito da Produtividade

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Estou no sexto dia de quarentena. Aqui da janela do meu apartamento já vi dois panelaços contra o presidente, uma salva de palmas para os profissionais da saúde, uma vizinha tomando sol de biquíni na sacada, pelo menos quatro pessoas carregando sacolas de mercado, um fusca azul e um passarinho em cima do fio de luz. Muitas aventuras, eu sei.

Durante esse período de confinamento, só sai de casa duas vezes: uma para ir ao mercado, outra para buscar um monitor no trabalho e deixar o home office mais confortável, mas confesso que ainda sento meio desajeitada no escritório improvisado que montei na sala.

Até agora, o maior contato que tive com outros seres humanos foi no elevador do prédio, quando desci para jogar o lixo fora. Meus maiores diálogos são com minhas plantas e minhas gatas. Elas não costumam responder, mas ontem a noite tive quase certeza que ouvi uma delas chamando meu nome. Sigo na dúvida se foi a espécie vegetal ou a animal.

Estou entediada. Mas não é falta do que fazer, pelo contrário.

Todos dias sou impactada por pelo menos dez conselhos motivacionais sobre como aproveitar a quarentena: levante, tome um banho, um café, separe um cantinho da casa para trabalhar, faça exercícios, leia 4 livros sobre epidemia, assista todos os filmes salvos na sua lista do Netflix, escreva sobre como está se sentindo, acenda um incenso, beba água, organize o guarda-roupa, aprenda uma receita nova… e por aí vai. Em resumo, preciso ser produtiva e tirar o melhor de cada segundo de confinamento.

Minha reação a esses conselhos é sempre a mesma. Toda vez que esbarro com esse tipo de conteúdo no Instagram, em uma newsletter ou no chat do trabalho, me sinto na obrigação de criar uma lista de coisas que preciso fazer para ser produtiva. Também lembro que só li 30 páginas de um livro até agora, assisti uns seis episódios de uma série que já conheço de cor e os armários da cozinha continuam bagunçados.

Culpa. Ansiedade. E de novo culpa.

Nessas horas a gente nota que “não escrevo porque não tenho tempo” e “não consigo terminar de ler o livro porque to cheia de coisas pra fazer” não passam de desculpas. Todo mundo que tá confinado tem tempo de sobra pra colocar a vida em dia. O problema é que a vida de verdade acontece lá fora, no mundo, entre reuniões, happy hours, caminhadas no parque, compras no shopping e café da tarde com os amigos. Aqui dentro é só um refúgio para escapar do mundo depois do trabalho ou no sábado de manhã, quando durmo até tarde.

E não me entenda mal, eu gosto de ficar em casa. Sou o tipo de pessoa que dispensa compromissos para passar a sexta a noite com vinho e chocolate no sofá da sala. Mas isso só funciona porque vivo cheia de coisas pra fazer e me permito aproveitar algumas horas de preguiça e mente vazia sem culpa, toda semana. E tá tudo bem, sabe?

Mas agora, com a agenda vazia, vinho no sofá virou rotina. Fugir das obrigações não tem mais graça. E, mesmo assim, ainda não defini o abdômen fazendo os exercícios que o app da academia liberou. Também sigo comendo arroz e feijão todos os dias. Ser produtivo o tempo todo é um saco e a pressão que os discursos motivacionais impõem na minha rotina estão me deixando louca – o que é bastante ruim, já que sempre tive a tendência a me cobrar demais.

Lá fora, a vida tá um caos e isso, por si só, deveria nos dar licença poética para enlouquecer um pouquinho e lidar, sem culpa, com isso da melhor forma que pudermos. Seja fazendo 50 abdominais ou sentando no chão com um café quentinho e o sol esquentando os pés.

Então vamos combinar aqui, só entre nós: da próxima vez que dermos de cara com uma publicação nos obrigando a levantar a bunda da cadeira e fazer algo útil, ficaremos sentados em protesto. Ok? E sem culpa. Chega. Mas se tiver vontade de limpar o banheiro, pode também.

Ninguém deveria nos fazer se sentir culpados sobre como aproveitamos nosso tempo em meio a uma pandemia. Mesmo que não seja intencional.

Tá liberado procrastinar, ficar de preguicinha, rodar as redes sociais 100 vezes e assistir BBB. Se é isso que te acalma, vai fundo. Depois do apocalipse teremos tempo de sobra pra colocar a vida em dia e poderemos voltar com as desculpas para furar o rolê e não lavar as cortinas. Mas, por enquanto, álcool gel na mão, retiro espiritual no sofá da sala e muita paciência para não pirar. Ou pra pirar mais ainda.

Sem culpa.

O terror pressuposto sempre aterroriza mais

Nelson Moraes

Me lembro de que, em O Exorcista, a cena que mais me assustava (de gelar o pelo da nuca) não envolvia necessariamente a menina possuída, vomitando, xingando ou levitando. Era um detalhe quase irrisório: no início do filme, saindo do metrô, o padre Karras passa por um mendigo sentado no chão, que lhe pede “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras o ignora e segue em frente. Muito adiante no filme o vemos já em altos colóquios com a garota possuída, e sempre tirando da manga uma explicação científica (psiquiatra que ele era) pra cada voz – com sotaque, ou masculina, ou idosa – que a menina fazia. De repente ela para, respira fundo e sussura calmamente: “Ei, padre, dá uma esmola prum ex-coroinha?” Karras empalidece, e a gente junto.

O Iluminado. Tudo ali aterroriza porque quase nada é mostrado. O enlouquecimento gradual de Jack Nicholson é que conota a emanação maléfica provinda de cada parede, de cada corredor, de cada quarto do hotel, mas ela nunca é explícita, nunca eclode em sua plenitude visual. São só insights, rápidas visões e, no mais, longas conversas – tediosas de tão triviais – com personagens que, vivos ou mortos, não se parecem nada com assombrações. Tudo oblíquo, e apavorante.

Poltergeist. Tem sangue, tem demônios, tem explosões, tem mortos-vivos, mas a cena que me fez pular da cadeira foi uma simples e rápida sequência, no começo. Pra insinuar a presença do sobrenatural na casa, a cena, sem nenhum corte, mostra mãe da família – JoBeth Williams – passando rapidamente por uma copa bem arrumada e indo à cozinha pegar um utensílio; no instante seguinte ela retorna e a copa não é a mesma: as cadeiras estão todas amontoadas sobre a mesa, cadeiras que precisamente um segundo antes não estavam ali. Terror puro.

Por isso a pandemia do coronavírus me soa tão estarrecedora. Não estamos testemunhando visualmente o impacto das mortes, face a face, como era de se esperar de uma peste: elas ocorrem no confinamento hospitalar ou residencial, e – por enquanto – com o distanciamento de um registro estatístico. Não testemunhamos, sobressaltados, manifestações purulentas em vítimas terminais que ainda por cima tossiriam sangue, como em um filme barato de horror. Não aparecem zumbis cambaleando como em The Walking Dead, não surgem os carroceiros catadores de cadáveres nas esquinas, tão corriqueiros em tempos de peste bubônica.

Não. Apenas as ruas vazias, os ambientes de trabalho em pesado silêncio, os supermercados fazendo eco, as praças entregues ao vento e a seus próprios monumentos, as perspectivas – pra quem trabalha, pra quem vive do que produz – mais apavorantes ainda. O pior de tudo que divisamos nessa distopia ao vivo, além da desertificação, são as consequências, que ainda não se manifestaram e já doem na alma, flagelam impiedosamente mesmo sem ter acontecido.

Evito o clichê de afirmar que dessa pandemia – a qual, torçamos, será breve – vamos sair outras pessoas. Mas talvez descubramos, com ela, que o terror arreganhado, sanguinolento e escatológico que já pulou tantas vezes aos nossos olhos na ficção não passava de um alívio, de um refresco, de um lenitivo pro que de mais aterrorizante pode existir: a diuturna ameaça do que jamais se permitirá ser vislumbrado.

Foi amor ao primeiro escrito com português correto

Rebeca Bedone

Ela se rendeu aos aplicativos de paquera. Tímida e conservadora, nunca acreditou muito nessas tecnologias do amor. Mas acontece que a solidão torna-se uma insistente companheira para aqueles que não tomam alguma atitude, como sair de casa mais vezes ou até encarar sites de relacionamento. Encorajada pelas amigas que arrumaram seus “crushs” na internet, ela montou seu perfil. Escolheu algumas fotos e ficou pensando se colocaria informações pessoais. Melhor não, vai saber quem é que leria sobre a sua vida. No começo, ela tinha que decidir se apertava o xis ou o coraçãozinho: não ou sim. Com qual critério decidir se o cara era um paquera em potencial? A foto. Até ali, era só a aparência física que estava valendo? Ok. Ela resolveu jogar o joguinho de encontrar um “crush”: não; não; não; não; não; não; não. Tinha alguma coisa errada. Será que ela estava sendo exigente demais? Com certeza, sempre foi (deve ser por isso que anda sem sorte no amor). Mas essa maneira de escolher não parecia muito justa. E se os nãos anteriores fossem pessoas legais e interessantes? Ela só saberia se conversasse, certo? Então despiu-se mais uma vez de seus preconceitos e começou a espalhar coraçãozinhos: sim, sim, sim, sim, sim, sim! Mais uma barreira vencida. Ela estava se sentindo orgulhosa. Ficou esperando para ver o que aconteceria em seguida, quando chegou a primeira mensagem: “oi linda”. Hum. Curioso. A abordagem, que para muitas mulheres deve ser uma delícia, para ela pareceu invasiva. O cara nem tinha intimidade e já ia chamando-a de linda. Mas, ok, ela estava decidida a romper barreiras. Papo veio, papo foi e o dia correu com uma variação de cantadas digitais. Mas alguma coisa estava esquisita. Não era que os moços não parecessem bacanas, até pareciam. Uns mais atirados, outros, discretos; fazia parte do processo, como na vida real. Mas um detalhezinho a incomodava: quanto erro de português, meu Deus! Veja bem: ela não é nenhuma literata nem professora de Língua Portuguesa. Mas, quanto mais madura e independente é uma mulher, mais seletiva ela fica em seus relacionamentos. Se isso é bom? É e não é; cada experiência que o diga! E, em se tratando dela, escrever o básico de forma correta é imprescindível (fazer o quê?!). Como sentir tesão com um “moro aqui a cinco anos” e “concerteza você vai gostar”? Ela, com absoluta certeza, não gostou. E gostou menos ainda quando leu “pra mim fazer”, “fazem 3 dias” e “agente vamos”. Sobre os porquês, ela até deu um tempo na sua implicância. A língua portuguesa é difícil mesmo, não seria justo julgar alguém só por ele não saber por que os porquês são escritos de forma junta ou separada. Mas, porque chegou a próxima mensagem, ela quase surtou: “linda agente podia marca um rapi”. Será que ele estava convidando-a para dançar rap? Não. Era “happy hour”! As pessoas escrevem mensagens com um ritmo acelerado nos dias de hoje. Ela entendia que abreviaturas como vdd (verdade), blz (beleza), vc (você), ctz (certeza), n (não) e bj (beijo) fossem aceitas na era da escrita digital. Mas, mesmo assim, ela chegou a pensar que a profecia de José Saramago seria cumprida algum dia: “De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”. Entretanto, o que a chateava era ver a “última flor do Lácio, inculta e bela” ser tão maltratada. O seu coração doía ao ler tanta coisa errada. Por que assaltaram a gramática e assassinaram a nossa lógica? Para ela, havia uma grande diferença entre licença poética e erro de português. Foi então que seu celular apitou: “Boa noite. Tudo bem com você?”. Os olhos dela brilharam. Como era bonito ler palavras que não estavam abreviadas. E a mensagem tinha até pontuação! Ela ficou interessada e respondeu. A conversa prosseguiu tão deliciosamente pelo aplicativo de paquera que, logo, eles passaram para o WhatsApp — e não “Zap”, como disse um outro candidato ao coração dela. E depois? Será que rolou o encontro ao vivo? Bom, isso é uma outra história (ou estória, para quem preferir).

O Spider-Man Mexicano e a Gwen Stacy que não morreu

O Spider-Man Mexicano nunca deveria ter existido, mas por obra do Destino tornou-se uma curiosidade muito mais interessante que suas próprias histórias.

Carlos Cardoso, em 30/09/2019 às 18:16, no meiobit.com.

Ok, não ESSE Spider-Man Mexicano.

Se você nunca ouviu falar do Spider-Man Mexicano, não se sinta excluído. É um dos lados mais obscuros do personagem, mas um dos mais divertidos e inacreditáveis. Nas imortais palavras do Lito, senta que lá vem história:

Se você pegar um pacote de revistas da Marvel hoje, publicadas nos EUA, vai perceber que a cronologia é uma zona, personagens aparecem em títulos diferentes vivendo momentos diferentes de suas vidas, mas isso já foi bem pior. No Brasil na década de 80 a editora Abril publicava títulos da Marvel que às vezes estavam dois ou três anos defasados uns dos outros.

Quando em 1984 foi lançada a saga Secret Wars, a Gulliver comprou os direitos para vender brinquedos associados à série, e pressionou a Abril a lançar as 12 edições, començando naquele ano mesmo. Para cumprir o contrato a editora criou um verdadeiro Frankenstein.

Alguns uniformes foram redesenhados, personagens foram apagados da existência, e até o final foi mudado.

Alterações menores são normais, tipo o A da mesa dos Vingadores ser invertido e virar um V, ou quando rebatizaram um personagem de Magnum (com um bigode ele tinha uma remota semelhança com o Tom Selleck), ao invés de manter o nome original, afinal se Wonder Man virasse “Homem-Maravilha” os leitores achariam que ele era mais gay que o Robin mordido por um Liberace radioativo.

O que era mais que incomum, mais que raro era a criação de histórias inteiras por parte das editoras locais. Não era o estilo da Marvel. A Disney, sem problemas, respeitando as regras de conduta, cada país tinha suas histórias próprias, e por isso o Zé Carioca conhecia tanto do gingado brasileiro.

Entra o Spider-Man Mexicano

O Aranha apareceu pela primeira vez em 1962, e já no começo de 1963 estreou em revista própria, a Amazing Spider-Man #1. O sucesso foi imediato, com o personagem atraindo leitores de todos os cantos. A Marvel, sempre disposta a faturar um trocado, licenciava as revistas que eram traduzidas, adaptadas e impressas nos mercados locais.

Em três meses El Sorprendente Hombre Araña chegava às bancas, publicado no méxico pela Prensa. O público adorou, as vendas foram incríveis mas surgiu um problema: Excesso de demanda. As pessoas queriam mais histórias.

Outros títulos foram importados e traduzidos, mas os Avengeiros (ou seja lá como for Vingadores em espanhol) não atraiam tanta atenção.  As pessoas queriam o Aranha.

A editora começou a catar histórias de outros títulos do Spider-Man, mas como as edições americanas eram mensais e depois de oito números as mexicanas se tornaram quinzenais, logo o material acabou, mas na mais nobre tradição mexicana, disseram aos fãs: “Todo o problema acabou, La Prensa chegou”.

Com Raúl Martinez escrevendo e José Luis González Durán desenhando, histórias locais do Hombre Araña começaram a ser publicadas. A Marvel não gostou, não eram histórias autorizadas, mas como a Casa das Idéias sempre foi meio casa da luz vermelha, e a regra era calcinha na mão dinheiro no chão (ou algo assim) e a Prensa mal ou bem continuava pagando royalties, fizeram vista-grossa.

Spider-Man Mexicano e a edificante Gwen Stacy.

No começo as capas eram kibadas do John Romita Jr, entre outros, e as ilustrações internas eram quase colagens, mas com o tempo Durán foi pegando jeito e se soltando, se soltando até demais. Ele nutria uma obsessão quase patológica pela Gwen Stacy, ela aparecia em quase todas as histórias, e, digamos assim, Durán a desenhava em um estilo bem… latino. Nenhuma americana loirinha do Queens teria essa… saúde.

As muitas “faces” de Gwen Stacy.

As capas chegavam a ser constrangedoras mesmo pros padrões de quadrinhos, onde homens vestem cueca por cima da calça e a mulherada ia pro combate de maiô. A arte de Durán era excepcionalmente boa pros padrões locais e da época, ele pecava por kibar muito material alheio, usava outros quadrinhos como referência o tempo todo, mas era uma necessidade. Ele tinha que trabalhar no dobro da velocidade dos artistas gringos, e ainda acumulava as tiras do Araña para publicação em jornais.

Seja por seu caráter ou suas tuberosidades calipígias, Gwen Stacy era extremamente popular, e por causa disso a Prensa começou a encher linguiça publicando histórias próprias, para não chegar ao fatídico The Amazing Spider-Man #121, quando (spoilers!) Gwen morre nas mãos do Duende Verde. Ou melhor, nas mãos de Peter Parker, o que é melhor ainda pra deixar a vida dele mais desgraçada ainda.

Mais de 45 edições foram produzidas, adianta a morte de Gwen Stacy, com direito a uma muito especial:

El Casamiento de Pedro Prado.

Como casar os dois daria muito trabalho e teriam que reescrever todo o material de fora, o casamento todo não passou de uma alucinação do Parker, mas deu aos leitores o que eles queriam, um momento final de telenovela para o casal número um dos quadrinhos, depois de Batman e Robin.

Quanto à Prensa, no melhor estilo dramalhão mexicano a má-gestão fez com que a editora se endividasse e fechasse as portas em 1974, mas como vitória final, eles nunca chegaram a publicar a morte de Gwen Stacy!

Mais tarde os direitos foram comprados pela OEPISA, que mantendo a tradição de transformar a cronologia da Marvel num samba do crioulo doido, publicou a revista Arañita (Spidey, no original) e entre histórias prontas e inventadas localmente, fizeram até um desautorizadíssimo crossover entre o Homem-Aranha e… Planeta dos Macacos.

versão 2.0 do Spider-Man Mexicano – Agora com mais kibe

Agora o final feliz que você não esperava: José Luis González Durán está vivo e bem, tem uma página no Facebook e mal acreditou quando sua arte (que era ótima, diga-se de passagem) foi redescoberta, e tanta gente foi atrás do homem que não deixou Gwen Stacy morrer.

José Luis González Durán, el padre del spider-man mexicano.