Sub Censura

– Mr. Isaac Newton…?
– Pois não.

– Essa obra que o senhor acaba de apresentar para publicação, “Optkis”… Lamento, mas a Royal Society não poderá validá-la.

– Como assim?

– Sua teoria de que a luz, atravessando um prisma, se decompõe em vários espectros coloridos…

– Não é teoria. É experiência.

– Que seja, Mr. Newton… Mas trata-se de ideologia de gênero, também.

– Como assim?!?

– É uma insofismável defesa da bandeira LGBT, Mr. Newton. Infelizmente nossa instituição não pode compactuar com essa afronta aos valores familiares.

– Que afronta? É um estudo empírico sobre a velocidade de cada espectro da luz após a refração, onde a decomposição cromática explica a…

– Por favor, Mr. Newton. Não insista. Sua obra anterior, a “Principia”, nós até deixamos passar, e…

– Até deixaram passar?!?

– Sim. Aquele estudo sobre atração universal dos corpos, sem distinção de gênero, já foi ousadia suficiente, mas fizemos vista grossa porque pelo menos lá o senhor reforçou o dogma do Criacionismo, e…

– Reforcei?!?

– Sim… Aquela maçã que caiu em sua cabeça… Não era a de Adão e Eva?

Nelson Moraes

Receita de Primavera

Pegue alguns passarinhos
de todos os tamanhos…
Escolha os bem ruidosos
e junte às borboletas.
Mas não guarde nem faça nada…
Pegue sem segurar,
capture com o olhar.
Separe umas formiguinhas
e abelhas pequenininhas.
Adquira piados,
coaxos e zunidos.
Ouça de olhos fechados
e alma escancarada.
Despeje alguns sorrisos,
uma ou outra gargalhada.
Aqueça o sol por primazia
até dourar o coração.
Assopre uma brisa fresca
e reserve muitas cores
(despreze o cinza).
Salpique pétalas de flores e espera…
Já, já está pronta a Primavera!

Rossana Masiero

A Mensagem

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo:

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?

Como se tornar o idiota da selfie

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Lara Brenner

Enquanto seguro meu garfo cheio de um suculento macarrão, me belisco e olho para o lado, apenas para checar se aquele momento de divindade gastronômica é real. Imediatamente desejo não ter me virado. A cena bizarra se repete novamente: uma moça bonita aciona a câmera frontal do celular e o estica frente a seus seios fartos, realçados por um vestido a vácuo, enquadrando-os junto a um prato de sobremesa. Ao longo da última hora, aquele deveria ser o quinquagésimo autorretrato (sou do tempo em que “fotinha” era retrato).

De repente, começo a me sentir um extraterrestre naquele restaurante descolado e com boa música ao vivo. Quase ninguém olhava para os músicos — que tocavam um samba de gafieira — a não ser para fotografá-los e postá-los em tudo quanto é canto cibernético. Ninguém comia sem antes registrar a comida, ou matava a sede antes de clicar o drink apoiado na mão e com o bar ao fundo. Era um show de Truman voluntário, uma bolha de registros milimetricamente calculados.

Beicinhos, caretas, piscadelas, cabelos jogados, ângulos corretos… Autorretratos em grupo, em casa, na cama, na piscina, em frente ao espelho, na academia, no funeral (!), após o sexo (sim!, tem isso agora), com o cachorro (milhares com o cachorro, meu Deus), com roupa de festa, com roupa íntima, sem roupa alguma (!), virado do avesso… Essa coisa de “selfie” tomou uma proporção tão maluca que, em 2013, foi eleita pelo dicionário Oxford como a palavra do ano, uma vez que sua popularidade havia crescido — pasme! — 17.000% em 365 dias. E cá estou eu, já alguns anos depois, mais perdida que cego em tiroteio, achando tudo meio artificial e esquisito. É o crescimento exponencial do ego.

Confesso que sempre que vejo uma “selfie” bem linda — e são várias em minha timeline — fico imaginando a luta da pessoa até consegui-la. Podem ser horas procurando a iluminação adequada, treinando a cara no espelho, batendo cabelo pra lá e pra cá, enquanto o braço quase gangrena de tanto segurar o celular para cima. Sei disso por experiência própria. Precisava obter algumas para uma divulgação e foi um martírio inesquecível. Segurar um “carão” é arte para poucos.

O problema não é se registrar para a eternidade, a modernidade está aí e não acompanhar faz nenhum sentido. O problema é retratar a vida sem realmente vivenciá-la, estar presente sem estar. É preocupante que as pessoas precisem se autorretratar infinitamente para sentir que estão ali de fato, muitas vezes crendo intimamente a qualidade daquele momento só será convalidada a depender do número de curtidas. Narcisos sofredores, narcisos drogados, embriagados de si mesmos e embevecidos num perigoso “egotrip”.

O crescimento exponencial do ego costuma carregar uma mortalha pesada: o vazio existencial. Nunca se esteve tão frágil e tão exposto ao mesmo tempo. Está aí a depressão — o mal do século — para comprovar. Talvez estejam sobrando registros externos e faltando os internos, num mundo com menos autorretratos e mais autoanálises. É hora de engolir a câmera e deixar que ela registre o que há de mais importante, mas quem tem realmente coragem para fazer essa viagem?

Posso estar ficando velha, chata e ranzinza. Posso estar saindo do otimismo cibernético para a crítica anacrônica, mas, da próxima vez em que você estiver saboreando um delicioso macarrão, pergunte-se sinceramente qual é a necessidade de se autorretratar ao comê-lo.

“Eu vim para trazer a divisão”, disse…
…Jesus!

Cynara Menezes
(Socialista Morena)

Uma das coisas que mais me perturbam na atual situação brasileira é a ilusão de certos setores de que o PT “inventou” a divisão entre ricos e pobres, entre negros e brancos, entre esquerda e direita, entre mulheres e homens, entre hetero e homossexuais. O chamado “Fla-Flu”. Tem gente que fica chateado porque brigou com amigos, colegas e familiares por causa de política e isso é “culpa do PT”. Será?

O primeiro ponto a se perguntar é: a divergência é mesmo algo ruim? Balela. Se o embate fosse entre brancos e brancos, ricos e ricos, direitistas e direitistas aposto como seria visto com mais normalidade: uma disputa entre iguais. O que incomoda é que a tal “divisão” é, na verdade, uma reação dos historicamente oprimidos, dos “de baixo”, às injustiças. Incomoda que as chamadas “minorias” estejam divergindo com mais força, em alto e bom som.

Os negros estão denunciando o racismo; as mulheres estão denunciando o machismo; os pobres estão denunciando o preconceito de classe; os gays estão denunciando a homofobia. Antes, todas estas cidadãs e cidadãos hoje em processo célere de empoderamento estavam mudas, resignadas com sua situação. A esquerda tampouco tinha acesso aos meios de comunicação para conscientizar a população –e hoje temos a internet.

Esta divisão é positiva para evoluirmos enquanto sociedade. Não acredite quando dizem que é ruim. Fiquei impressionada ao conhecer trechos do Novo Testamento onde Jesus Cristo fala justamente de divisão e não de união. “Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a Terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão” (Lc, 12, 51-52). Na Bíblia utilizada pelos protestantes, é ainda mais veemente: “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas a espada” (Mt, 10, 34-35).

Em Lucas, complementa: “Daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três: ficarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra”. Diz ainda Jesus: “Eu vim para lançar fogo sobre a Terra; e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49-53).

Estes trechos dos evangelhos de Lucas e Mateus são considerados controversos porque indicariam que Jesus seria a favor do uso de violência. Não necessariamente. Do que Jesus não é a favor, sem sombra de dúvidas, é do conformismo. Se ele veio à Terra, não foi para transmitir uma mensagem pacificadora, isso está claro. Ou não teria expulsado os vendilhões do templo.

Aliás, imaginem o rebuliço que seria hoje se Jesus voltasse, como os cristãos esperam, e encontrasse vendilhões falando em seu nome em emissoras de TV e igrejas espalhadas pelo mundo… Com certeza seria acusado de “incitar a divisão” entre ricos e pobres ao pregar que “é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.

Cristo foi um revolucionário. E revolucionários não vêm a este mundo para lançar uma mensagem de obediência e subserviência ao sistema – ou não seriam revolucionários. O que o revolucionário quer é abalar as estruturas. Foi o que Cristo fez, ou não? E acabou morto por isso, assim como Maomé, perseguido por criar uma dissidência religiosa do judaísmo e do cristianismo, o islã. Martinho Lutero foi excomungado pela igreja Católica por dividi-la e houve luta armada em favor de suas ideias reformistas.

Fora do campo religioso, Nelson Mandela abriu os olhos do mundo ao absurdo regime que existia na África do Sul, que colocava os negros, originais moradores do país, em um gueto, dominados por supremacistas brancos de origem europeia. Pois é: para quem critica a “divisão” no sentido de conflito, que tal o apartheid? Os donos do poder pretendiam que os negros sul-africanos se subjugassem àquela situação para sempre. Mandela os fez se levantar contra ela. E que bom que tenha sido assim.

Com tantos erros cometidos sob a ótica do campo da esquerda, o PT teve o inegável mérito de dar voz a quem não tinha voz. Por isso agora eles gritam. Pare de reclamar da “divisão” que há em nosso país, preocupe-se em entender por que ela existe – e por que é bom que ela exista. Se não houvesse divisão, significaria que estamos conformados. E conformistas não movem o mundo.