“Redes sociais formaram geração de pessoas inseguras”, diz criador do Orkut

Juliana Carpanez

Orkut Buyukkokten é um sujeito que parece gostar de se conectar com pessoas. Na entrevista ao UOL, na cafeteria de um hotel em São Paulo na terça-feira (3), o criador da plataforma que levava seu nome conversou por quase uma hora, olho no olho, sem encostar uma única vez no celular. Quem dos seus amigos altamente ligados em tecnologia faz isso?

Na sessão de fotos, mesmo com hora marcada para outro compromisso, topou fazer poses e trocar de roupa a pedido do fotógrafo. Conhecido por suas camisas exóticas, subiu duas vezes até seu quarto no hotel para variar o look. Apenas quando terminado o dever, pegou o celular e postou no Instagram com apenas 882 seguidores, as imagens que sua assessora havia feito durante a sessão de fotos para o UOL (a tal foto da foto). Em seus stories, esse registro apareceu numa sequência do evento de marketing digital Digitalks 2018 e de muita comida – fartos buffets, amendoim, pudim, pão de café e caipirinha estavam na lista.

No encontro, conversou sobre como as redes sociais prejudicam as pessoas e mostrou como acha que dá para melhorar esse cenário – aqui aproveitou para divulgar sua nova rede, Hello, lançada no Brasil há um ano. Também contou que viu as fake news se aproximando, negou ter lucrado com a criação do Orkut, revelou usar o Tinder e se declarou para o Brasil, que visita pela segunda vez, agora para uma série de palestras. Só se mostrou reservado quando questionado sobre a idade, que prefere não revelar.

Cientista da computação formado em Stanford (EUA), ele deixou o Google em 2014, mesmo ano em que a rede social Orkut foi extinta. Antes disso, Orkut já havia parado de trabalhar em sua plataforma para virar gerente de produto da gigante de tecnologia. Hoje ele mora em San Francisco (Califórnia, EUA), onde disse dedicar seu tempo ao Hello e aos amigos. Seu dinheiro vem dos investidores que apostam neste novo projeto.

Antes de apresentar os principais trechos da entrevista, com as respostas editadas para melhor compreensão, duas curiosidades. Primeira: o turco Orkut fala Orkut.com para referir-se à rede social (e diferenciá-la de seu nome). Segunda: o plano inicial era chamar essa plataforma de Eden. Como a palavra não estava mais disponível para registro de domínio, os chefões do Google decidiram usar Orkut.

UOL – Você é importante para o Brasil, pelo fato de tanta gente ter usado sua rede social. Quanto o Brasil é importante para você?

Orkut Buyukkokten – Vim para o Brasil em 2009, quando conheci as pessoas, a cultura, a comunidade. Fiquei encantado em como todos eram amigáveis, receptivos, apaixonados, cheios de vida. Eu já tinha essa impressão por causa dos brasileiros com quem eu trabalhava no Orkut.com.

Chegamos a ter cerca de 70% dos internautas brasileiros no Orkut, criando momentos mágicos: essas pessoas fizeram amigos, se casaram, encontraram melhores empregos. Queremos trazer de volta todos esses valores e essas conexões autênticas com o Hello.

UOL – Como você quer fazer isso? As outras redes também começaram com propostas parecidas, mas de alguma forma as pessoas acabam transformando a maneira de usá-las.

Orkut – As redes sociais são hoje especialmente desenvolvidas para as pessoas se promoverem: essas plataformas ganham dinheiro quando você mostra interesse no que as outras pessoas exibem. Os algoritmos e feeds de notícia são otimizados para aumentar o engajamento e os minutos gastos nesses serviços, criando valor para os anunciantes, os cocriadores de conteúdo, as marcas e os acionistas. Não são desenvolvidos para aumentar a felicidade humana.

O que acaba acontecendo é que estamos mais atentos à vida das pessoas do que nunca: vemos seus casamentos fabulosos, as férias sem fim de nossos amigos, jantares incríveis, gente de aparência maravilhosa. Criamos assim uma geração insegura, que olha para esses feeds de notícias e acha que nunca poderá se comparar aos outros, nunca poderá fazer o bastante, nunca poderá ser o bastante.

Então além das expectativas de nossas famílias, amigos, vizinhos, temos hoje toda essa ansiedade que vem das redes sociais ao nos compararmos com os outros. Temos uma sociedade que é realmente insegura, ansiosa, deprimida, estressada, infeliz e solitária. E as redes sociais têm um papel nisso. Elas não aumentam a felicidade, não melhoram a qualidade de vida. Elas a torna pior.

Se usarmos a tecnologia da maneira certa, ela pode abrir portas, nos conectar mais, servir às comunidades. Vimos isso acontecendo nos bons tempos do Orkut.com. Hoje as redes sociais não criam engajamentos autênticos, as pessoas pararam de mostrar quem realmente são. Elas compartilham o que pensam que os outros querem ver.

Como resultado, nossa vida é repleta de cascatas de momentos falsos perfeitamente orquestrados. Paramos de nos arriscar, de ser genuínos, criando paredes que nos protegem dos outros. Não nos conectamos, não criamos intimidade, não somos vulneráveis.

UOL – E como você pretende fazer diferente?

Orkut É preciso desenvolver uma plataforma na qual os usuários sejam os campeões, eles devem vir sempre em primeiro lugar. A interação com as pessoas precisa ser divertida, precisa haver um engajamento autêntico. E a forma mais natural de nos conectarmos uns com os outros na vida real é com as comunidades: eram elas as características mais populares no Orkut.com.

Além disso, existe uma combinação de tecnologia, de algoritmos, de aprendizado das máquinas. É possível fazer as iniciativas positivas suprimirem o que não é bom. Para postar anonimamente no Hello, por exemplo, temos um sistema de monetização. Então a pessoa pode falar sobre política ou sexualidade sem se expor. Mas, como é preciso pagar por isso, ela nunca usará o anonimato para praticar bullying ou espalhar o ódio. Trata-se de uma forma de equilibrar o ecossistema e melhorar a experiência do usuário.

UOL – Quando você começou a perceber os impactos ruins das redes sociais?

Orkut – Vi esses primeiros sinais no meu próprio feed de notícias. Um amigo havia postado uma foto feliz em um piquenique com sua mulher, quando eu sabia que eles estavam se separando. Não era um momento real, era um momento falso. Vejo isso o tempo todo.

Vejo pessoas gravando vídeos em um show, não vivendo aquela experiência. Recentemente, na Europa, fui a uma balada e tinha três jovens sentados que estavam o tempo todo olhando seus telefones. Eles não se falavam e só foram dançar para gravar um vídeo.

É preciso olhar nos olhos e para o coração das pessoas. Mas estamos olhando para o smartphone, o que é uma violência contra a humanidade. Somos humanos, não máquinas.

UOL – Você percebeu esses primeiros sinais já no Orkut?

Orkut – Não, foi depois. O Orkut tinha um sistema muito diferente, em que o engajamento acontecia principalmente nos scraps. As pessoas colocavam lá as mensagens para elas mesmas ou para seus amigos. Era mais autêntico: não tinha um feed de notícias que mostrava todo esse conteúdo patrocinado.

Isso é outra coisa que está acontecendo hoje. Tem muito conteúdo que as pessoas postam em benefício próprio e não conseguimos mais distinguir o que é real daquilo que não é. Você vê como isso pode influenciar a política, tem as fake news. As coisas foram se tornando mais superficiais, mais falsas, e assim foi possível ver as fake news chegando.

Olhamos o feed e compartilhamos coisas falsas, mas não acreditamos naquelas que são reais. É muito triste isso.

UOL – O Orkut também teve um final ruim, depois de muitas denúncias de crimes e mau uso.

Orkut – Esse tipo de uso indevido e ilegal realmente vai acontecer, porque são as mesmas pessoas na vida real e no online. Acontece em todas as plataformas, isso eu posso garantir para você. Qualquer serviço que conecta as pessoas, que permite a comunicação, será usado também para fins maliciosos.

UOL – Existe um movimento contrário às redes sociais que denuncia a forma descontrolada como usamos essas ferramentas. Qual sua opinião sobre isso?

Orkut – O problema não é usar muito seu telefone, nem as redes sociais. O problema é usar serviços que o deixam infeliz e, no topo dessa lista, estão coisas como “Candy Crush”, Facebook, Grindr. Acredito do fundo do meu coração que a tecnologia pode estar ligada à felicidade, se você gastar tempo conectado a pessoas e conteúdo de uma maneira significativa.

Não quero falar especificamente do Facebook nem do Instagram. Vou falar do Tinder, Happn, esses aplicativos para encontrar parceiros.

Estou solteiro há dois anos [Orkut teve um longo relacionamento com Derek Holbrook] e, quando interajo com pessoas no Tinder, o que vejo é desespero, solidão, insegurança. As pessoas se esqueceram como se comunicar umas com as outras, como ser respeitosas. Aplicativos como o Tinder tornam as relações descartáveis, você julga alguém em um segundo considerando apenas sua foto. É muito cruel para a sociedade, para a humanidade.

Ghosting virou uma palavra de dicionário. É quando você começa a falar com alguém e depois desaparece. Trata-se de uma das coisas mais cruéis, emocionalmente, que você pode fazer com outro humano, pois é muito doloroso. E quem pratica o ghosting são os mais inseguros, aqueles com mais problemas. Isso tudo me aterroriza e por isso estou tão motivado a criar um ambiente de conexões significativas para as pessoas

UOL – Voltando ao Orkut, você ganhou dinheiro com o site?

Orkut – Desenvolvi esse projeto dentro do Google [na política de 20% do tempo livre] e, quando você é contratado, tudo o que faz é daquela empresa. Então era um produto do Google. Tinha até um rumor que eu ganhava US$ 0,10 por cada scrap postado, mas era um rumor [risos].

A princípio eu era a única pessoa que trabalhava no projeto: eu era o engenheiro, o designer, o gerente de produto e até mexia nos servidores. Quando estava tudo pronto para o lançamento, em uma reunião com [o então CEO] Eric Schmidt e [a então diretora] Marissa Mayer, eles sugeriram usarmos o nome Orkut.com. Isso porque eu era o único funcionário, tinha aquele domínio registrado e era uma palavra de cinco letras, fácil de identificar. No último minuto, decidiram lançar como Orkut.com.

UOL – Como era o outro nome?

Orkut – O nome interno do projeto era Eden, que significa paraíso, um lugar incrível para as pessoas estarem juntas. Mas o domínio não estava disponível e não tínhamos tempo suficiente para comprá-lo.

UOL – Ficou triste com o fechamento?

Orkut – Sim, foi um momento muito triste para mim. Tínhamos uma comunidade com mais de 300 milhões de pessoas, ele as aproximou. Foi triste para mim e para todos. Mas vi isso como o fim de um capítulo, e o Hello como o começo de outro. É uma continuação, uma espécie de sucessor espiritual do Orkut.

Teve vários momentos mágicos que me tocaram. Meu melhor amigo conheceu a mulher no Orkut e pediu que eu fosse padrinho de seu filho.

Hoje, em uma palestra, eu contei como me sentia excluído: nasci na Turquia, cresci na Alemanha, muitas vezes eu não me encaixava. Ou porque era um programador nerd, porque era baixo, porque tinha sotaque, porque era gay. E depois da palestra uma pessoa veio até mim e contou que, quando era mais novo, seus amigos e sua família não sabiam que ele era gay. Mas, por causa do Orkut, ele podia se conectar com outras pessoas que o aceitavam e isso o ajudou.

Essas histórias me tocam, é quando sinto que fiz a diferença na vida das pessoas.

UOL – Os brasileiros dominaram o Orkut. Isso de alguma forma foi negativo para o site?

Orkut – A comunidade cresceu muito rápido e, logo depois de lançarmos, tivemos problemas com os servidores. Havia muitos atrasos, perda de conexão: tinha até aquela mensagem engraçada do “bad, bad service. No donut for you“. Com isso perdemos nossa base de usuários nos Estados Unidos, mas no Brasil ela crescia, crescia, crescia. É difícil dizer se os brasileiros tinham mais paciência ou se estavam acostumados com conexões lentas: na época, muitos usavam cybercafés [o que inclui LAN houses] e conexão discada.

Conseguimos resolver esse problema com os servidores em um ano e chegamos a ter cerca de 70% de todos os internautas brasileiros na plataforma. O Brasil foi incrível para o Orkut.

Just do it

Quando alguém te insulta, ou te reduz a uma coisa,
Quando te dão um conselho que não solicitaste,
Quando te lançam a culpa pela dor deles,
Quando não te escutam, e apenas falam deles mesmos,
Quando te comparam com os demais,
Quando te ignoram, invalidam, julgam ou zombam de teus pensamentos e sentimentos.

Pare. Respire.

Lembre que a dor não é tua.
Lembre que eles estão sonhando o único sonho que podem sonhar até que despertem.
Lembre que não conhecem a ti, apenas a própria fantasia.

Talvez eles achem demasiado difícil amarem-se a si mesmos.
Talvez eles busquem o seu valor no exterior.
Talvez eles estejam desconectados da sua respiração, de seu corpo, de sua preciosa vitalidade, de sua verdadeira vocação.
Talvez eles vivam em um mundo dualista, onde há o bem e o mal, o certo e o errado, sucesso e fracasso.
Talvez eles tenham esquecido a simples alegria de viver.
Talvez tu compreeendas isto.
Talvez tu tenhas estado onde eles têm estado.

Não tente mudá-los agora. Talvez eles nunca mudem.
Não tente corrigi-los. Eles não estão pedindo ser corrigidos.
Quanto mais os pressiones, mais vão afastar-se de ti.
Não te enredes na teia das tristezas.
Vê com clareza, inclusive tenhas compaixão, mas não pressiones.
Está bem que eles se sintam perturbados. Sim, de fato.
Dê-lhes espaço para que se sintam perturbados.
Está bem que se sintam decepcionados contigo.
Dê-lhes espaço para que se sintam decepcionados.
Está bem que te julguem. Abra um espaço para os seus julgamentos, também.

Acomodes teus próprios pensamentos e sentimentos!
Permita-te sentir-te triste, irritado, culpado, desconfiado.
Deixes que todas essas valiosas energias te banhem por dentro.
Elas não te farão dano, se você permite movimentarem-se.
Sim, conhecerás muitos Guardiões nesta jornada.

Percorra o teu caminho de todos os modos, e permita que os demais percorram os próprios.

Não tens de justificar o teu caminho, nem defendê-lo.
Mantém-te próximo de ti mesmo nestes tempos difíceis.
Não lute contra a escuridão…

SIMPLESMENTE ACENDA TUA LUZ COM MAIS FORÇA!

Jeff Foster

O Sebastianismo

Vocês já ouviram falar do “Sebastianismo”? Então. Até há pouco tempo, nem eu. Mas dentre os 4 ou 12 livros que sempre tenho à cabeceira para leitura, dia desses retomei um que traz a história de Portugal desde antes de ser Portugal, passando por todos seus reis e, dentre eles, D. Sebastião.

D. Sebastião I foi o Rei de Portugal e Algarves de 1568 até 1578. Mas, na prática, já era o rei de fato desde 1557, quando faleceu D. Manuel I, seu avô e antecessor no trono. Entretanto, como tinha apenas quatro anos de idade, teve que esperar mais um bocadinho…

Nesse meio tempo, enquanto regentes cuidavam do trono, foi educado “para reinar”, isto é, foi criado dentro do culto do heroísmo militar e do caráter divino da realeza. Desse modo convenceu-se desde cedo que caberia a ele ser o instrumento de salvação da cristandade em tese ameaçada pela reforma protestante que vinha tomando um corpo cada vez maior desde a publicação das 95 teses de Martinho Lutero, em 1517 – uma obsessão que somente acentuou-se com o passar do tempo.

E no decorrer dos dez anos que reinou sonhava com a derradeira luta contra os “inimigos da fé”…

E a “oportunidade” surgiu em 1578, quando, do alto de seus meros 24 anos de idade, embarcou para a África com o firme propósito de tomar a cidade de Marrocos, a qual havia sido conquistada por um mouro apoiado pelos turcos (o que significaria que a Turquia iria dominar todo o Norte da África, ameaçando assim a Europa Cristã). Ainda que estivesse com um exército de 17 mil combatentes, o confronto com as forças do rei de Marrocos, que se deu nas proximidades de Álcácer Quibir, resultou num estrondoso fracasso. Metade dos soldados morreu e a outra metade foi aprisionada. E o próprio rei morreu. Porém seu corpo nunca foi encontrado.

Sem herdeiros diretos que pudessem se habilitar ao trono de português, após muito embate este acabou sendo entregue nas mãos de seu parente Filipe, rei da Espanha (Filipe I em Portugal). E assim permaneceu por mais duas gerações, com Filipe II e III.

E essa situação política de subordinação à Espanha foi se traduzindo numa inconformidade por parte do povo e gerando uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa, através de um esperado retorno triunfal de D. Sebastião, já que vários setores da população simplesmente não acreditavam na morte do rei. Estava criado o “Sebastianismo”, uma espécie de consciência coletiva popular que traduzia-se na firme convicção de que em épocas de sofrimento generalizado do povo, haveria de aparecer uma figura heroica, salvadora, não sendo possível dizer quem seria ou de onde viria, mas que haveria de salvar a todos!

Escritores de renome, tais com o Padre Antônio Vieira, Fernando Pessoa e mesmo Ariano Suassuna dedicaram-se a esse tema. Mas o mais interessante é que as origens do Sebastianismo são de fato anteriores à morte e até mesmo ao nascimento de D. Sebastião!

Vejam como isso se deu através das palavras de José Hermano Saraiva, em seu livro História Concisa de Portugal:

“Em 1530, o rei D. João III deu a Vila de Trancoso a um seu irmão mais novo, o infante D. Fernando, que por essa altura se casou. Os lavradores e artesãos de vários ofícios amotinaram-se e não permitiram que o infante tomasse conta da Vila. Isso porque preferiam a dependência direta da administração da Vila por parte dos funcionários reais, que eram mais ou menos indulgentes na cobrança de impostos, em vez de pertencerem a um grande senhor rigoroso e às vezes cruel em suas exigências. Essa situação de rebeldia manteve-se durante alguns anos e o rei entrou em negociações com um representante dos moradores, confiando em que o tempo acabaria por resolver a situação. Não se enganou, porque o infante morreu já em 1534 e a Vila de Trancoso voltou ao patrimônio da Coroa.”

E o que isso tem a ver com o Sebastianismo? Calma, calma… Veremos!

“Foi durante os anos da revolta anti-senhorial de Trancoso que um sapateiro que lá morava, Gonçalo Anes Bandarra, escreveu umas trovas que o tempo haveria de tornar célebres. Era um homem rude (“próprio para ovelheiro”, diz um auto do Santo Ofício), que se metera a ler a Bíblia em português e mantinha contatos com cristãos-novos [judeus forçados a se converterem à fé católica], a quem recorria para que lhe explicassem as passagens que não entendia. Misturando confusas citações da Bíblia, reminiscências da poesia popular tradicional, mitos espanhóis (o Encoberto, a que faz alusão, é um mito ligado à revolta das comunidades espanholas de 1520-1522), profecias que andavam de boca em boca, vestígios de lendas do ciclo arturiano [em especial as lendas britânicas de que Rei Arthur estaria vivo e algum dia iria retornar], críticas sociais à corrupção e à prepotência dos grandes, compôs uma espécie de auto pastoril profético, que era inicialmente um protesto conta a doação da Vila ao infante irmão do rei.

Mas acontecia que o sapateiro era mau escritor. Usava os termos que lhe pareciam bem soantes, mas que não sabia ao certo o que queriam dizer, reproduzia, embaladas na toada popular da redondilha, palavras, frases e símbolos ouvidos aqui e ali, mas era incapaz de lhes definir um sentido claro. O resultado foi que as trovas se podiam entender em tantos sentidos quanto se quisessem. Começaram a circular cópias de mão em mão e quando se iniciou a perseguição da Inquisição aos cristãos-novos estes julgaram ler o anúncio da vinda de um Messias salvador nos versos que, na realidade, eram um apelo a D. João III para que defendesse a Vila de Trancoso da ambição do infante. Nessa altura a Inquisição interveio e prendeu o sapateiro, que apareceu como suspeito de judaísmo. O Bandarra era porém tão alheio a esses entendimentos que os judeus lhe faziam das trovas que acabou por ser posto em liberdade e condenado apenas a não escrever mais versos e a não se meter em leituras profanas.

Os inquisidores julgaram que a sua sentença punha termo ao processo, mas na realidade este apenas estava por começar.

A morte de D. Sebastião em condições misteriosas [quase 50 anos depois do episódio da Vila de Trancoso e dos versos compostos por Bandarra] veio dar uma nova acepção às trovas do sapateiro. O rei morreu durante a batalha, mas ninguém afirmava tê-lo visto morrer, embora muitos o tivessem visto já depois de morto (segundo a ética cavaleiresca, confessar que se tinha visto morrer o rei, sem dar a vida por ele, seria uma infâmia – o que explica em grande parte o mistério). Entre o povo dizia-se que o rei conseguira escapar e ia regressar ao País. Há notícia de vários aventureiros que exploraram essa crença popular e procuraram fazer-se passar por D. Sebastião.

As profecias de Bandarra passaram então a ser lidas com olhos diferentes: o Messias cujo regresso anunciavam era D. Sebastião. O público leitor já não é mais formado só pelos cristãos-novos, mas por nobres saudosistas. Versões sucessivas foram adaptando a redação ao seu novo sentido, de tal modo que o movimento de Restauração que viria a ocorrer somente em 1640 pareceu trazer a confirmação das trovas. Considerado o profeta nacional, o sapateiro foi venerado como santo, e até mesmo o arcebispo de Lisboa autorizou a colocação de uma imagem de Bandarra num altar da cidade.”

O Sebastianismo, devidamente adaptado de tempos em tempos, deixou suas marcas que se estenderam em múltiplas variações até meados do século XVIII, cada qual com um novo rei como titular, tendo chegado ao Brasil já quando de sua colonização e mais tarde, no final do século XIX, foi o que inspirou Antônio Conselheiro quando do movimento que criou Canudos. E deu no que deu.

“Mas, mais funda do que o artifício literário, a consciência sebastianista permanece como estado instintivo e permanente. O mito do ‘rei que há de voltar numa manhã de nevoeiro’ ainda hoje é um lugar comum da linguagem popular portuguesa. Ninguém o diz a sério, mas a frase é muitas vezes usadas para aludir a um intraduzível estado de espírito que consiste em crer que aquilo que profundamente se deseja não deixará de acontecer, mas ao mesmo tempo em esperar que aconteça independentemente do nosso esforço e sem implicação da nossa responsabilidade.”

Sub Censura

– Mr. Isaac Newton…?
– Pois não.

– Essa obra que o senhor acaba de apresentar para publicação, “Optkis”… Lamento, mas a Royal Society não poderá validá-la.

– Como assim?

– Sua teoria de que a luz, atravessando um prisma, se decompõe em vários espectros coloridos…

– Não é teoria. É experiência.

– Que seja, Mr. Newton… Mas trata-se de ideologia de gênero, também.

– Como assim?!?

– É uma insofismável defesa da bandeira LGBT, Mr. Newton. Infelizmente nossa instituição não pode compactuar com essa afronta aos valores familiares.

– Que afronta? É um estudo empírico sobre a velocidade de cada espectro da luz após a refração, onde a decomposição cromática explica a…

– Por favor, Mr. Newton. Não insista. Sua obra anterior, a “Principia”, nós até deixamos passar, e…

– Até deixaram passar?!?

– Sim. Aquele estudo sobre atração universal dos corpos, sem distinção de gênero, já foi ousadia suficiente, mas fizemos vista grossa porque pelo menos lá o senhor reforçou o dogma do Criacionismo, e…

– Reforcei?!?

– Sim… Aquela maçã que caiu em sua cabeça… Não era a de Adão e Eva?

Nelson Moraes

Receita de Primavera

Pegue alguns passarinhos
de todos os tamanhos…
Escolha os bem ruidosos
e junte às borboletas.
Mas não guarde nem faça nada…
Pegue sem segurar,
capture com o olhar.
Separe umas formiguinhas
e abelhas pequenininhas.
Adquira piados,
coaxos e zunidos.
Ouça de olhos fechados
e alma escancarada.
Despeje alguns sorrisos,
uma ou outra gargalhada.
Aqueça o sol por primazia
até dourar o coração.
Assopre uma brisa fresca
e reserve muitas cores
(despreze o cinza).
Salpique pétalas de flores e espera…
Já, já está pronta a Primavera!

Rossana Masiero

A Mensagem

Num mundo em que a comunicação é tudo e o dinheiro sempre pouco, conta-se aqui uma história altamente moral sobre a inutilidade da primeira enquanto se economiza o segundo:

E chamou o pintor e lhe encomendou a placa para anunciar a especialidade do seu negócio: “Nesta casa se vendem ovos frescos”. Além dos dizeres recomendou ao pintor que bolasse uma figura, uma alegoria referente ao ramo. E perguntou quanto era. O pintor disse que ficaria em 50.000. Cinquenta mil o quê?, indagou o comerciante, pensando, inutilmente, numa moeda mais desvalorizada do que o cruzeiro. Cinquenta mil cruzeiros, disse o pintor. Ah, não vale, disse então o comerciante. Como não vale?, retrucou o pintor, ofendido em sua arte mais do que atingido em sua economia. O senhor não poderia reduzir um pouco?, arriscou o comerciante. Claro que posso, disse o pintor, posso reduzir a figura e os dizeres. Como assim?, disse o negociante? Olha, explicou o pintor, pra começo de conversa não precisamos usar figura nenhuma. Se se diz que o senhor vende ovos não há necessidade de colocar nenhuma galinha pintada, não é mesmo? Se o normal são ovos de galinha, o fato de não ter nenhuma outra ave faz com que os ovos sejam, presumivelmente, de galinha. É certo, concordou o negociante. Então, fez o pintor, vinte mil cruzeiros de menos. Agora também não é necessário dizer nesta casa. Se o freguês passa por aqui e vê: “Se vendem ovos frescos”, já sabe que é nesta casa. Ele não vai pensar que é na casa ao lado, não é mesmo? Certíssimo!, exclamou o comerciante. Então, continuou o pintor, por que colocar “Se vendem”? Se o freguês potencial lê “Ovos Frescos”, já sabe que se vende. Ninguém pensaria que o senhor vai abrir uma casa comercial para alugar ovos ou apenas para expô-los, right? É mesmo!, espantou-se ainda mais o comerciante. Quanto ao “Frescos”, continuou impávido o pintor, refletindo melhor não é de boa psicologia usar essa palavra. “Frescos” lembra sempre a hipótese contrária, a de ovos “velhos”. Não deve nem ter passado pela cabeça do comprador a ideia de que seus ovos podem ser outra coisa senão frescos. Portanto, tiremos também o “frescos”! Certíssimo!, berrou o negociante, agora profundamente entusiasmado com a dialética do pintor. Façamos, portanto, apenas OVOS. Por favor, desenhe aí só essa palavra, bem bonita, bem clara: OVOS! Só ovos, ovos tout court, ovos em si mesmos, que se vendam pela sua pura e simples aparência de ovos, pelo seu inimitável oval! Então vamos lá, concordou o pintor. Mas antes de começar a usar o pincel, voltou-se para o negociante e perguntou, preocupado: Mas, me diga aqui, amigo ― pensando bem, por que vender ovos?