Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – VI

Os descaminhos da liberdade

Um estudo sobre a escravidão na Era Hiboriana.

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.” Esta é uma das frases que tornou notório o grande escritor Eric Arthur Blair (George Orwell), autor, entre outras obras fantásticas do magistral e polêmico romance 1984. Não deixa de ser uma frase irônica, apesar do contexto em que se situa no romance A Revolução dos Bichos, cuja trama trata justamente do processo de dominação de alguns animais sobre outros após a conquista de uma fazenda por todos.

Aliás, conquista, dominação e o “ser mais igual do que os outros” sempre foram uma constante na história do animal homem, e na Era Hiboriana de Conan, não foi diferente.

Ninguém sabe ao certo como o escravismo teve início nesse período muito anterior ao império romano mas, se ele acompanhou a história da escravidão do mundo que conhecemos, suas raízes se encontram entre os povos primitivos que mais tarde se tornariam atlantes e valusianos, milênios antes do tempo do bárbaro de bronze.

A princípio, falando de épocas mais remotas ainda, os prisioneiros do sexo masculino das frequentes guerras e saques eram provavelmente torturados e oferecidos em sacrifício aos deuses dos vencedores, enquanto as mulheres e crianças seriam agregadas às tribos triunfantes, já que as culturas nômades dispensavam o uso de escravos.

Com o aprimoramento da organização sócio-econômica dos povos, associado ao constante fator beligerante da época, a necessidade da força de trabalho passou a fazer parte da vida das pessoas. Surge então o escravo, na figura do prisioneiro – a princípio um capricho reservado para reis e capitães, e depois, indistintamente.

Com o advento da era escravista pré-hiboriana houve a importante descoberta do comércio escravo, uma fonte de renda rápida e altamente lucrativa. Assim, quando o Rei Kull governava a Valúsia, a escravidão já era uma realidade instituída e, mesmo após o cataclismo que tragou a Atlântida e parte do continente turaniano e concorreu para que muitos dos sobreviventes regredissem à selvageria, a atividade abominável persistiu, tanto que, oito mil anos mais tarde, já na Era Hiboriana, apenas alguns reinos mais civilizados como os da Aquilônia, Argos e Nemédia possuíam leis de proteção aos escravos, ainda que suscetíveis às conveniências de certos reis inescrupulosos que não as cumpriam.

Traçamos, a partir de agora, um perfil da escravidão na era de Conan.

O Leste

Turan – Operou extenso comércio escravo que abrangia pontos que iam de leste a sul das nações hiborianas, atravessando Zamora, sua vizinha mais próxima ao oeste. O próprio Conan teve sua segunda experiência com a escravidão como prisioneiro, marchando com uma caravana turaniana para Shadizar, capital de Zamora, quando foi salvo por um conhecido. Os escravos da caravana eram chamados “bens de comércio humano”.

Alguns donos de escravos não eram maus para seus “bens”, mesmo em Turan. Atalis, o astuto sábio de Yabalet, é um exemplo deles, muito embora tivesse enviado sua escrava, Hildico, a brituniana, a um campo de batalha em busca de Conan, onde a jovem foi duramente castigada. Quando Conan deixou Yabalet, após uma transação com o mágico de Munthassem Kahn, levou Hildico consigo como recompensa.

Severos ou não, o fato é que os turanianos escravizavam até mesmo membros de famílias nobres do oeste, como foi o caso de Octávia, filha de um lorde nemédio. Capturada por saqueadores de Jehungir Agha, ela tinha esperança de que Conan, então com os kozakis nas estepes hirkanianas, a visse e a comprasse. De fato, o bárbaro adquiriu a posse da garota em Xapur, uma ilha do Mar Vilayet, mas isto se deu graças à vontade e entusiástica interferência de Olivia.

Os turanianos também usavam seus escravos como espiões, como um estígio sem nome, sobrevivente da horda de Natok, o oculto, derrotado por Conan.

Vendhia – Em sua capital, Ayodhya, a morte de Ghunda Chand foi presenciada não só por sábios, sacerdotes, oficiais da corte e sua irmã Yasmina, como por várias escravas. Mais tarde, Yasmina, a divina de Vendhia, foi capturada pelo mestre de Yimsha, sacerdote-mor do Círculo Negro, que pretendia mantê-la como escrava.

Zamora – Shadizar e talvez Arenjun serviam como entreposto comercial para caravanas turanianas de escravos vindas do leste e do sul, provavelmente mesmo depois que o império turaniano passou sobre a fronteira leste de Zamora.

Khorajá – O filósofo Astreas, em uma carta a seu colega e amigo Alcemides, da Nemédia, relatou que a Rainha Taramis (em verdade, sua irmã gêmea, a bruxa Salomé), havia permitido que a capital fosse tomada por mercenários shemitas e que os khauranianos estavam sendo sistematicamente massacrados, sacrificados ou vendidos como escravos para os turanianos.

Iranistão – Os Filhos de Yezm, na cidade Yanaidar, oculta entre os Montes Ilbar, constituíam uma sociedade totalmente machista, em que todos os homens eram livres enquanto as mulheres, escravas, eram encarregadas de fazer com que yezmitas drogados recém-chegados acreditassem estar no paraíso prometido aos que servissem a Magus.

Zamboula – Ao visitar a cidade sob controle de Turan, no Deserto Kharamun, uma sangrenta e arriscada aventura possibilitou a Conan descobrir que seus escravos eram canibais e à noite rondavam a cidade para conseguir seu execrável alimento. E ao perguntar à jovem que acabara de salvar dos negros antropófagos por que os cidadãos de Zamboula não se livravam daquela ameaça, Zabibi, como ela se dizia chamar, ou Nafertari, amante de Jehungir Kahn, respondeu que além dos selvagens serem escravos valiosos, eram também numerosos e seriam capazes de se revoltar caso a carne humana lhes fosse negada. Aliás, em vista de tal situação, a melhor solução encontrada por alguns cidadãos da cidade foi abastecer os canibais com a carne dos numerosos estrangeiros que visitavam Darfar.

Kush e os Reinos Negros

Há indicações de que muitas tribos do litoral de Kush e das nações costeiras do sul atacavam tribos negras do interior para conseguir “bens de comércio humano” e vendê-los para os navios que ancoravam em sua costa vindos de Argos, Zíngara e Shem.

Algumas tribos interioranas também praticavam essa atividade atacando o sul da Stygia em busca de escravos brancos. Lívia, a ophiriana que Conan salvou dos bakalans no sul de Kush, fôra capturada por escravistas negros em Khesatta, cidade estígia de magos, para servir aos caprichos particulares do rei tribal Bajujh.

A escravidão branca foi igualmente utilizada em Meroc, capital de Kush. A jovem nemédia Diana, que fôra aprisionada por caçadores de escravos shemitas em um navio argoseano e depois vendida aos kushitas, acabou sendo presenteada à rainha Tananda e por fim salva por Conan.

Um negro que atacava os Reinos Negros em busca de escravos, antes de se tornar um dos governantes de Tombalku, era Sakumbe, cujos maiores interesses, segundo Conan, eram marfim, ouro em pó e escravos.

O próprio bárbaro do norte e Chabela, futura Rainha de Zíngara, foram escravizados após serem capturados pelos ghamatas – nômades dos desertos da fronteira meridional da Stygia, para os quais a caça de escravos era muito difundida – e vendidos para Nzinga, a rainha.

Porém, se Chabela se viu sobrecarregada com as mais extenuantes e vis tarefas, o cimério teve que atender às exigências pessoais da rainha, o que, conhecendo o aventureiro como já conhecemos, certamente não foi missão desagradável – aliás, surgiram até boatos de que ele foi o pai de uma futura rainha amazona. A escravidão desempenhou importante papel na ascenção e queda de Xuchotl, a estranha cidade de um só edifício, ao sul de Darfar e Keshan.

Os tlazitlanos que deixaram Kosala, no leste, passaram a vagar pelas estepes do sudoeste onde escravizaram tribos negras para a construção de uma cidade de jade, marfim, mármore e metais preciosos. Quando a obra estava terminada, os escravos foram mortos e, segundo disseram a Conan, de seus ossos foram criados os dragões que guardavam a cidade.

Mais de meio século antes do cimério e Valéria visitarem Xuchotl, um outro escravo, Tolkemec, de uma tribo de genealogia estígia, traiu seus senhores a uma tribo próxima à de seus ancestrais e vingou-se dos tlazitlanos nas próprias câmaras de tortura da cidade.

Os novos donos de Xuchotl também utilizaram o trabalho escravo. Um de seus governantes valeu-se dele para construir uma passagem secreta da sala do trono até o portão oeste e assassinou os trabalhadores ao final da obra para que ela permanecesse em segredo.

Em Yanyoga, a cidade-caverna situada a sudeste de Zimbabo, a Rainha Lilit contou a Conan que sua raça descendia de aventureiros vendhianos que haviam escravizado uma raça de aborígenes de pele amarela. Contudo, o relato era falso. Lilit e sua raça eram, na verdade, descendentes do povo serpente, já enfrentados pelo Rei Kull da Valúsia.

O Sul

Stygia – Existia umintenso comércio de escravos entre Kush e a Stygia, embora nenhuma das nações pagasse pelo “artigo” mas, na verdade, se saqueassem por ele. Um típico destacamento estígio de saque-escravo era constituído de quarenta cavaleiros, todos matadores experientes. Seu procedimento usual consistia em cercar uma aldeia negra durante a noite e atacar ao amanhecer. Os cativos saudáveis eram acorrentados e levados para os leilões do norte, enquanto os muito jovens, velhos ou fracos demais para sobreviver à viagem, eram imediatamente executados.

Em termos de crueldade, os estígios aparentemente eram os piores do mundo hiboriano. Exemplo disso foi o frio pirata baracho de Kush Meridional, membro da tripulação de Conan na viagem à Antillia, no Mar do Oeste. Quando jovem, ele fôra capturado por caçadores de escravos estígios, que, por uma razão inexplicada, cortaram sua língua.

Shem – Os senhores de escravos shemitas empreendiam expedições marítimas para saquear as matas de Kush. Juma foi uma das vítimas de tais empresas, levado quando criança de sua tribo e vendido no leilão de Shem, onde trabalharia no campo. Porém, quando seus donos notaram sua predisposição para um porte físico gigantesco, venderam-no para Argos, para se tornar gladiador.

Para a maioria das mulheres hiborianas, a escravidão em Shem era terrível. Natala, uma jovem brituniana, foi escrava em uma cidade shemita desconhecida, assolada pelos sobreviventes de um exército mercenário que lutara pelo príncipe Almuric de Koth. Conan a levou consigo quando o bando fugia da cidade após saqueá-la e juntos atravessaram a Stygia e enfrentaram as adversidades do deserto meridional de Kush que, apesar de terríveis, eram preferíveis à escravidão num harém shemita.

Vale acrescentar que entre os próprios shemitas houve vários escravos. Cerca de nove séculos antes de Conan, eles faziam parte do corpo de escravos dos gazali do sul de Koth, um povo expulso de sua terra devido à perseguição religiosa. Quando os escravos fugiram, se juntaram às tribos selvagens dos desertos. Lissa, uma gazali, contou a Amalric, um jovem soldado mercenário aquiloniano, que os escravos não haviam sido maltratados, mas que provavelmente sofreram alguma ameaça e por isso fugiram.

Outra hiboriana vendida nos leilões de Shem foi Muriela, uma dançarina corinthia. Quem a comprou foi um ladrão shemita de nome Zargheba, que a levou para Akbitana, onde Conan a viu pela primeira vez, e depois para Keshan, onde, em Alkmeenon, forçou-a a passar-se pela princesa Yeleya.

O forte sotaque corinthio de Muriela e uma marca congênita que carregava, revelaram sua identidade a Conan, que se apossou dela e a levou consigo, não como escrava, mas como amante e companheira, o que ela aceitou sem hesitar. Juntos encontraram inesperado destino em Punt.

As Nações Bárbaras

Os Sertões Pictos – Não há evidências de que a escravidão tenha existido nesta região como traço típico. Os pictos praticavam a pesca e a caça para sobreviver e não possuíam qualquer tarefa que considerassem desprezível e que não pudesse ser desempenhada por suas mulheres. Eventuais prisioneiros não eram escravizados, mas torturados até a morte.

Na costa oeste, contudo, existiu uma prática especial de escravidão, o servilismo. Os servos eram camponeses que possuíam seu próprio meio de subsistência, mas não a liberdade pessoal, devendo sempre um excedente de sua força de trabalho ao senhor da terra. A grande diferença entre servos e escravos é que os primeiros não podiam ser vendidos nem afastados de sua porção de terra, embora, ao fugir da vingança de Thoth Amon, o conde Valenso de Korzetta tenha levado vários servos para o exílio.

Tina, a jovem acompanhante ophiriana da sobrinha de Valenso, Lady Belesa, fôra escrava de um perverso oficial da marinha. Por meios desconhecidos Belesa afastou a garota do seu senhor.

Ciméria, Vanaheim e Aesgaard – Nunca houve escravos nessas regiões simplesmente porque seus povos eram independentes demais. Conan, o cimério, porém, foi escravo no mínimo quatro vezes em sua turbulenta existência, possuindo assim um motivo a mais para abominar a escravidão. Certa vez, ele indagou a um nobre aquiloniano seu amigo:, “Não é melhor morrer honradamente a viver como um verme? Será que a morte é pior do que a opressão, a escravidão e humilhação total?”

Contraditoriamente, porém, o cimério aconselhou Lady Belesa nos Sertões Pictos a comprar escravos. Quando ela, Tina e os sobreviventes do grupo de Valenso se preparavam para deixar a costa picta a bordo do navio de um nobre aquiloniano que procurava Conan, o bárbaro deu à zíngara um saco de rubis e disse a ela que voltasse a sua terra, vendesse as gemas para comprar uma casa grande, escravos e boas roupas… e procurasse um marido.

Antillia – Pouco se sabe sobre a escravidão nesta ilha a oeste do mundo hiboriano, embora ela tenha existido lá. Sabe-se que os escravos enviavam mensagens para seus donos e os carregavam em palanquins pelas ruas de Ptahuacan.

Por meio de Metemphoc, que assumiu o poder da cidade depois que Conan derrubou seus governantes sacerdotes, o cimério ficou sabendo que alguns daqueles escravos tinham vindo de um misterioso continente de nome Mayapan, a oeste, cujas costas foram saqueadas por piratas antillianos que buscavam ouro, esmeraldas, cobre, escravos de pele vermelha, estranhos pássaros coloridos e peles de jaguar, um felino dourado manchado de negro.


Jim Neal

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Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – V

As trilhas da aventura

Estudo do Prof. Robert Yaple sobre a vida na época de Conan, baseado na obra de Robert E. Howard.

As maiores nações comerciais da era hiboriana foram Zíngara, Argos, Koth e Shem. No início, as duas primeiras desenvolveram o lucrativo mas perigoso comércio marítimo, enquanto shemitas e kothianos se valeram de seu clima e geografia privilegiados para desenvolver as rotas terrestres, mais seguras e abrangentes.

Os rios também tinham importância capital, como é o caso do Rio Khoratus, que ligava duas importantes regiões do império aquiloniano – Tarantia e Pointain -, e o Rio Styx, que daria origem a toda uma civilização.

De camelos a Kothianos

Em Shem, as trilhas de longas caravanas de camelos formavam um verdadeiro ziguezague de zuagires, fazendo ganhar importância inúmeros pontos ignorados pelos mapas hiborianos, como Shushan, Atahu, o oásis Aphaka e a passagem de Shamla, todos a noroeste de Kutchemes.

De qualquer forma, os mercadores da região ocidental de Shem eram extremamente vulneráveis aos ataques dos saqueadores zuagires e de algumas tribos montanhesas de Koth.

Nestas circunstâncias, principados como Khauran e Khorajá acabavam adquirindo papel preponderante, graças à segurança que ofereciam, em troca de volumosos sacos de moeda de ouro. Esse monopólio de rotas propiciou a que essas duas nações, protegidas por um paredão de mais de mil quilômetros que chegava até Zamora, prosperassem rapidamente e se tornassem focos independentes do restante do mundo hiboriano.

Outra ramificação importante no comércio da época era a que se estendia por Koth, Ophir e Nemédia e levava aos cobiçados mercados da poderosa Aquilônia. Ali, e em especial na fronteira entre terras nemédias e aquilonianas, as frequentes lutas fronteiriças ou mesmo guerras declaradas faziam da função de mercador um dos mais arriscados ofícios de então.

Rumo a Turan

A leste do mapa, ao longo do Mar Vilayet, ergue-se o próspero reino de Turan, cujas cidades mais importantes se situavam entre o Rio Ilbar e a margem, como as lendárias Agrapur e Shahpur, entre outras. Apesar das atividades dos piratas da irmandade vermelha, o comércio interno de Turan era predominantemente marítimo. Apenas para os pequenos vilarejos do interior eram utilizadas caravanas de mulas.

Ao sul do Vilayet, um imenso tráfego de caravanas ligava o ocidente ao Iranistão, Vendhia e Khitai. Havia ainda uma via meridional que atravessava o posto de pedágio turaniano de Vezek, partindo dali em direção a Khauran, via oásis Akrel.

Stygia, filha do Styx

Embora grande parte do tráfego estígio escoasse pelo Rio Styx, inúmeras rotas ligavam o interior da Stygia a Shem. Como Turan, a Stygia produzia sedas em enorme quantidade e exportava grande parte desta produção, principalmente para Ophir.

Mais ao sul, tortuosas trilhas levavam da costa de Kush até Sukhmet, apesar dos constantes ataques de kushitas semicivilizados e de canibais darfarianos. Uma outra via secundária seguia para o sul, cruzando as terras kushitas e o amaldiçoado deserto de Ghamatas até atingir Keshan. A constante presença de poderosos mercadores na região acaba trazendo grande instabilidade política à convulsionada Stygia.

O comércio com os reinos negros mostrava-se extremamente lucrativo. Marfim, cobre, pérolas, plumas de avestruz, peles e escravos eram trocados por produtos manufaturados do norte, como armas, armaduras e bugigangas – embora os artigos mais volumosos se restringissem ao tráfego litorâneo e às feiras nas regiões próximas ao alto Styx.

Ainda assim, não foram poucos os mercadores que se aproximaram das áreas negras pelo leste, usando guias zimbaboanos. Foi esse intercâmbio que possibilitou a Zimbabo experimentar o progresso que o transformou num dos reinos mais importantes do sul hiboriano, apesar de suas características híbridas – dois deuses, dois reis e dois povos, um de origem shemita e outro predominantemente negro.

Tudo passa

Esta era, em resumo, a configuração geral do comércio internacional da época de Conan, a última fase do período feudal hiboriano. Tanto no mar quanto em terra existia uma espécie de equilíbrio entre produtores e predadores.

Contudo, anos depois das aventuras do cimério, quando as monarquias primitivas e os reinos decadentes foram substituídos pela idade imperial, muitas das antigas ordens vigentes se romperam.

Se a Aquilônia tivesse sido menos ambiciosa, direcionando seus planos de conquista exclusivamente à Zíngara, Argos e às porções ocidentais de Ophir e Shem, a história hiboriana talvez tivesse seguido rumos diferentes que culminariam com grandes expansões transoceânicas.

Mas não era para ser assim. Em grande parte devido à cobiça aquiloniana, quinhentos anos após a existência de Conan, o mundo hiboriano desapareceu para sempre.


Robert Yaple

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Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – IV

A Gênese do Barbarismo

É impossível falar de histórias de espada e feitiçaria sem citar o gênio criador Robert E. Howard, papa do gênero e pai de Conan, Sonja e Kull, entre outros.

No entanto, se Howard foi o maior, não foi o primeiro a criar aventuras do estilo. Ele teve precursores que o inspiraram em sua obra, escritores que se tornaram conhecidos bem antes que ele conseguisse ver sua primeira história publicada na legendária revista americana de contos, a Weird Tales.

Na literatura moderna, nos primeiros anos deste século, começou a destacar-se o trabalho de um soldado irlandês que também era esportista, poeta, dramaturgo e viajante, conhecido como Lord Dunsany e que teve seu primeiro livro publicado – Os Deuses de Pagana – em 1905. Nos dez anos seguintes, Dunsany produziu nada mais nada menos que oito coleções de fantasia, consideradas as progenitoras do estilo de Howard.

Os contos de Dunsany eram inspirados na mitologia greco-romana, mesclada às lendas orientais e ao estilo épico medieval. Um exemplo de sua obra é The Fortress Unvanquishable, save for Sacnoth (A Fortaleza Invencível, exceto por Sacnoth), de 1908, que tem Leothric como o herói que vence o dragão Tharagavverung e que com seus ossos fabrica a espada Sacnoth, com a qual pode enfrentar Gaznak, o feiticeiro do castelo.

Na trilha de Dunsany vieram dois criadores de aventuras que alicerçaram de vez o gênero junto ao público leitor: H. P. Lovecraft e Clark Ashton Smith.

Lovecraft, como grande admirador de Dunsany, utilizava-se de um estilo macabro e bastante parecido com o de seu inspirador. Entre 1919 e 1926, atingiu o auge de sua carreira. Suas histórias envolvendo busca a princesas, maldições implacáveis e aventuras em navios amaldiçoados, abriram ainda mais o leque do gênero difundido por Dunsany.

Em 1922, Lovecraft conheceu o artista e escritor Clark Ashton Smith e, graças à sua influência junto ao editor de Weird Tales, conseguiu fazer com que a criação de seu novo amigo ganhasse espaço e fosse publicada.

Possuidor de texto forte, Smith tinha um estilo completamente diferente dos de Lovecragt e Dunsany. Contudo, a partir do conto The Last Incantation (O Último Encantamento), de junho de 1930, a influência de seus dois grandes mestres começou a aparecer. Esta seria a primeira história de um ciclo localizado em Poseidonis, a última ilha da Atlantis quase submersa. A seguir, Smith criaria o ciclo do continente pré-histórico de Hiperbórea e mais tarde o de Zothique, num futuro remoto.

Mas a característica principal destes três iniciadores da arte da aventura foi a criação de um fantástico cenário, onde seus heróis ganhavam um espaço geográfico próprio. Quando um autor cria a geografia de seus personagens junto com a história, sua liberdade de ação passa a ser muito maior. Smith sempre soube disso e o cenário de sua produção podia ser Atlantis, Hiperbórea ou quaisquer outros países imaginários.

Agindo desta maneira, os autores podem criar nomes, acidentes geográficos, raças e nações à vontade, segundo as necessidades. Esse processo de criação dispensa as exaustivas pesquisas históricas a que os escritores estão presos, quando falam de situações cuja existência é comprovada. Além disso, como são mundos existentes apenas dentro de sua imaginação e desconhecidos do leitor, a possibilidade de erro deixa de existir, pois um fato novo pode resultar numa informação nova, o que não aconteceria se as aventuras tivesse vínculo com a realidade histórica.

A partir daí, a criatividade deságua na produção de mapas, criação de nomes e relatos de situações, colocando heróis e vilões dentro de um mundo que parece tornar-se real na imaginação do autor e, consequentemente, dos leitores apaixonados.

Quando Lovecraft começou a criar reinos fantásticos, o fez mantendo todo o sabor da lenda e do mito. Smith, por sua vez, preferia escrever de forma mais real, e seus personagens, nada fictícios, lidavam com situações absolutamente verdadeiras. Na verdade, Smith tentava ancorar suas histórias em bases reais dentro de uma rigorosa ordem cronológica, ao contrário dos outros dois escritores.

Quando Robert E. Howard (1906-1936) começou a aparecer, trouxe em sua obra um realismo muito maior do que o de qualquer um de seus precursores. Sua visão de pré-história não era romântica, mas amargamente realista. Os personagens de Smith e Lovecraft morrem de forma poética e justa, o que não acontece com os de Howard. Pelo contrário, o sangue parece escorrer de suas histórias. Conan nunca será o modelo de herói, mas sempre um mercenário calculista lutando pela sobrevivência num mundo bárbaro, onde nem sempre os finais são felizes.

A primeira história de Howard publicada em Weird Tales foi escrita quando ele tinha quinze anos e publicada em 1925. Era um conto de homens da caverna. Um ano depois, publicaria uma aventura de um valentão histórico e seu estilo começava a firmar-se e a ganhar contornos próprios.

Com a produção dessas aventuras ele nunca alcançou grande sucesso, e acabou por entregar-se ao gênero do barbarismo, ganhando cada vez mais espaço em Weird Tales, tendo como tema o sobrenatural e a magia negra.

Finalmente, em 1929, a lapidação chegava ao seu final com a publicação do conto The Shadow Kingdom (O Reino das Sombras), onde Howard contava a história de um selvagem atlante chamado Kull. Acabava de nascer o gênero Espada e Feitiçaria e, a partir dali, um novo e fascinante mundo seria dado aos leitores sedentos das mais fantásticas aventuras.


Lin Carter

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Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – III

Os anais da História Hiboriana

Adaptado de um ensaio de Robert E. Howard

Quando Robert E. Howard começou a escrever as aventuras de Conan, o Cimério, mais de quarenta anos atrás, ele também idealizou toda a história da chamada Era Hiboriana

Esta história tem início cerca de oito mil anos antes do aparecimento do bárbaro, durante a civilização Thuriana, onde nasceu o Rei Kull, época anterior à submersão da Atlântida sob as águas do mar.

Capítulo I – A Era Pré-Cataclísmica

Da era conhecida pelos cronistas nemédios como pré-cataclísmica só se conhece o final, e, ainda assim, este permanece envolto em grande mistério.

Os registros falam do continente Thuriano e de sua importante civilização dominada pelos reinos de Kamelia, Valúsia, Verulia, Grondar, Thule e Commoria.

Esses povos falavam um idioma semelhante, o que leva a crer que tenham tido uma origem comum.

Os bárbaros desta era foram os Pictos, que habitavam ilhas no mar do oeste, os Atlantes, que viviam num pequeno continente entre as ilhas pictas e o continente Thuriano, e os Lemurianos, que povoavam um arquipélago no hemisfério leste.

Existiam também vastas regiões inexploradas. Os reinos civilizados, embora fossem grandes, ocupavam, comparativamente, uma pequena porção do planeta.

Valúsia se impunha como o maior dos reinos do oeste do continente thuriano. Sua capital, a Cidade das Maravilhas, foi, sem dúvida, a mais linda daquela era. Grondar, cuja população era menos civilizada que a maioria dos reinos, era a maior nação a leste do continente.

Em meio a região mais amena do deserto de Grondar, nas florestas infestadas de serpentes, e no alto das montanhas mais elevadas, viviam clãs e tribos primitivas.

A costa leste do continente thuriano era habitada por uma outra raça, misteriosa não-thuriana, com a qual os lemurianos por vezes mantinham contato. Aparentemente, estes povos vieram de algum lugar além das ilhas e continentes conhecidos até então.

Ao sul erguia-se uma segunda civilização, também misteriosa, totalmente afastada da cultura thuriana e aparentemente de natureza pré-humana.

A civilização thuriana se encontrava numa fase de decadência e seus exércitos eram formados basicamente por mercenários. Pictos, Atlantes e Lemurianos eram seus generais, governadores e reis.

De todos os conflitos entre reinos, e das guerras e conquistas de valusianos, comorianos e atlantes, hoje restam mais lendas que histórias verídicas.

Então o cataclismo se abateu sobre o mundo.

A Atlântida foi engolida pelo oceano e as ilhas pictas formaram as montanhas de um novo continente. Enquanto isso, partes do mundo thuriano foram recobertas pelas águas, dando origem a grandes lagos. Vulcões e terremotos surgiram com uma fúria terrível, destruindo tudo que até então era conhecido como civilização. Nações foram aniquiladas e a face do mundo sofreu uma profunda modificação.

Capítulo II – A ascenção dos Hiborianos (17.000 – 15.000 A.C.)

Quando o grande cataclismo causou a destruição da Atlântida e da Lemúria, todos os habitantes das ilhas pictas desapareceram, mas uma grande colônia deles, que havia se instalado nas montanhas ao sul das fronteiras de Valúsia, permaneceu.

Outros milhares de membros do reino de Atlântida também conseguiram escapar da fúria das águas, fugindo em seus navios.

Um grande número de lemurianos foi para a costa oriental do continente thuriano, onde acabou sendo escravizado pelo povo que já ocupava a região. E, por milhares de anos, sua história foi a de triste e brutal servidão a um povo opressor.

Na parte mais ocidental do continente, densas selvas se espalharam pelas grandes planícies, montanhas virgens se ergueram e lagos cobriram as ruínas das velhas cidades. Mesmo forçados a lutar continuamente pelas suas vidas, os atlantes ainda procuravam manter vestígios de seu estado anterior, o barbarismo altamente avançado.

Até que sua cultura teve contato com a poderosa nação picta. A partir de então, os reinos da Idade da Pedra entraram em conflito, e, no decorrer de incontáveis batalhas, os atlantes regrediram ao estado selvagem, enquanto os pictos tiveram sua evolução ameaçada. Quinhentos anos depois do cataclismo, os reinos bárbaros desapareceram.

O longínquo sul, que não foi atingido pela grande tragédia, se manteve coberto de mistérios. Seu estágio de desenvolvimento continuou pré-humano. Só houve uma exceção: os remanescentes das nações civilizadas não valusianas, que viveram nas baixas montanhas do sudoeste. Eram conhecidos como os Zhemri.

Enquanto isso, no distante norte, outro povo recomeçava, aos poucos, sua existência. Um grupo de semi-humanos, que fugiu para lá durante a destruição encontrou os continentes de gelo habitados somente por uma espécie de macacos da neve, contra quem lutou, expulsando-os para o outro lado do círculo polar ártico. Os primitivos então se adaptaram ao seu novo e inóspito ambiente e sobreviveram.

Foi quando outro cataclismo, menor que o primeiro, alterou mais uma vez a face original do continente, criando um grande mar interno que separava o leste do oeste. Os crescentes terremotos, inundações e erupções vulcânicas completaram a ruína dos bárbaros, já iniciada pela violência das guerras tribais.

Mil anos depois, bandos de homens-macacos nômades vagavam pelas planícies, sem nenhum conhecimento de fala, fogo ou armas. Eram esses os descendentes dos orgulhosos atlantes.

Já os habitantes do sudoeste dispersaram-se em clãs, ocupando cavernas com uma linguagem primitiva e conservando o nome de pictos.

Mais para o leste, os lemurianos escravizados se rebelaram e destruíram seus opressores, vivendo selvagemente entre as ruínas de uma estranha civilização.

Os sobreviventes daquele povo se dirigiram para o oeste, derrotando os pré-humanos do sul e fundando um novo reino chamado Stygia. Também os remanescentes do reino pré-humano parecem ter sobrevivido, ou pelo menos, eram adorados depois que toda a sua raça foi destruída.

No norte, uma tribo crescia rapidamente, os hiborianos ou hiborígenas. Seu deus era Bori, um grande chefe cuja lenda o elevou ao posto de divindade. 1.500 anos vivendo na neve fez deles uma raça vigorosa e guerreira. Então começaram a visitar o sul.

Certa vez, um andarilho do norte retornou ao seu lar, dizendo que as terras geladas eram habitadas por macacos semelhantes aos homens, descendentes das feras que tinham sido expulsas das terras habitáveis pelos ancestrais dos hiborianos. Para exterminar essas criaturas, um pequeno grupo de guerreiros seguiu o andarilho até o outro lado do círculo polar… e nunca mais voltou!

Nesse mesmo período, as tribos hiborianas seguiram rumo ao sul, transformando a era seguinte num período de peregrinações e conquistas.

Capítulo III – Os Reinos Hiborianos (14.000 – 10.000 A.C.)

1.500 anos depois do pequeno cataclismo que criou o mar interno, tribos de hiborianos morenos rumaram para o leste e para o oeste, conquistando e destruindo pequenos clãs. Mesmo assim estes conquistadores não entraram em contato com as raças mais antigas.

A sudoeste os descendentes dos Zhemris procuraram reviver alguma tênue sombra de sua cultura ancestral. A oeste, os primatas atlantes começavam sua longa escalada de volta à verdadeira humanidade, enquanto ao sul deles os pictos permaneciam selvagens, desafiando as leis da natureza, sem evoluírem ou regredirem. E, mais ao sul, repousava o misterioso reino de Stygia.

No extremo leste, clãs de nômades, conhecidos como os filhos de Shem, vagavam pelas terras sem fim, enquanto próximo aos pictos, na fronteira do vale de Zingg, protegidos por uma cadeia de montanhas, um bando de primatas criava um avançado sistema de agricultura e civilização.

É nesse período que surge o primeiro reino hiboriano, o rude e bárbaro reino de Hiperbórea, que teve seu início numa fortaleza de pedra erguida para evitar ataques tribais. Isso fez com que seus habitantes se transformassem, de um momento para o outro, de bravos nômades em guerreiros defendidos por muros gigantescos.

Durante todo esse tempo, a leste, os lemurianos ergueram uma estranha semicivilização sobre as ruínas daqueles a quem venceram.

Os hiborianos, entretanto, encontraram o reino de Koth, na divisa com as terras férteis de Shem. Os selvagens dessas terras, através do contato com os hiborianos e os estígios, foram lentamente saindo do barbarismo. No extremo norte, o primeiro reino da Hiperbórea era dominado por outra tribo, que manteve o mesmo nome da anterior.

A sudeste da Hiperbórea, um reino dos Zhemris começava a se formar, sob o nome de Zamora.

Já a sudoeste, invasores pictos se uniram aos agricultores do fértil vale de Zingg. Esta raça híbrida seria conquistada pela errante tribo de Hibori, sendo que da junção de todos esses elementos surgirira o reino de Zíngara.

Quinhentos anos depois, todos os reinos do mundo já estavam claramente definidos. Os reinos hiborianos: Aquilônia, Nemédia, Britúnia, Hiperbórea, Koth, Ophir, Argos, Corínthia e o Reino da Fronteira dominavam o mundo ocidental. Zamora estava a leste e Zíngara a sudoeste destes.

Bem distante, ao sul, repousava Stygia, livre de invasões estrangeiras, embora o povo de Shem tivesse chegado a trocar escravos estígios pelos de Koth. Os estígios se dirigiram para o sul do grande rio Styx, também chamado de Nilus ou Nilo, que desemboca nos mares ocidentais.

A norte da Aquilônia estavam os Cimérios, violentos selvagens nunca derrotados por invasores. Descendentes dos antigos atlantes, eles evoluíram mais rápido que seus velhos inimigos, os pictos, nos combates no desértico oeste da Aquilônia.

Passados cinco séculos, o povo de Hibori já era senhor de uma imensa civilização, cujo reino mais poderoso era Aquilônia, apesar dos outros também brilharem em esplendor e força. Ele era supremo sobre todo o mundo ocidental.

Ao norte, bárbaros com cabelos dourados e olhos azuis se espalhavam por todo o continente de neve, com exceção da Hiperbórea. Sua terra era chamada de Nordheim e era dividida entre os Vanirs, de cabelhos vermelhos, e os Aesirs, de cabelos amarelos.

Mais uma vez os lemurianos entraram para a história, mas sob o nome de Hirkanianos. Na direção oeste, uma tribo criava o reino de Turan, a sudoeste de Vilayet, o mar interno. Mais tarde, outros clãs hirkanianos se estabeleceram em torno da margem oeste deste mar.

Rápido perfil dos povos daquela era: os dominadores Hiborianos, que deixaram de ter cabelos morenos e olhos verdes ao se misturarem com outras raças, porém sem se enfraquecerem; os Shemitas, homens de estatura mediana com narizes pontiagudos, olhos negros e barbas negras-azuladas; as classes dominantes da Stygia, constituídas por homens altos, elegantes e sérios; os Hirkanianos, escuros e geralmente altos; o povo de Nordheim, com pele clara, olhos azuis e cabelos loiros ou ruivos; os Pictos, atarracados, pelo muito escura, com olhos e cabelos negros; os Cimérios, altos e fortes, com cabelos negros e olhos azuis ou verdes.

Ao sul da Stygia estavam os vastos reinos negros dos Kushitas e do império híbrido de Zimbabo.

Entre Aquilônia e os desertos pictos encontravam-se os Bossonianos, descendentes de Aborígenas e Hiborianos. Eles eram guerreiros resistentes e grandes arqueiros, pois sobreviveram durante séculos aos ataques bárbaros do norte e do oeste.

Esta foi a “Era Nunca Sonhada”, quando os resplandecentes reinos se estendiam pelo mundo como o manto azul sobre as estrelas. Esta foi, pois, a era de Conan.

Capítulo IV – Ascenção e Queda

Cinco séculos após a época do Rei Conan, a civilização hiboriana foi completamente devastada enquanto sua cultura ainda estava em seu apogeu. De certo modo, isso se deveu à ganância e voracidade da Aquilônia.

Seus reis, ávidos de poder, conquistaram Zíngara, Argos, Ophir e as cidades ocidentais de Shem. Até mesmo Koth, Corinthia e as tribos shemitas foram forçadas a pagar tributos aos aquilonianos e a ajudá-los em suas guerras.

Nemédia, que vinha resistindo bravamente por séculos, havia então formado uma aliança secreta com Britúnia, Zamora e Koth, contra o inimigo comum.

Mas antes que pudessem reunir seus exércitos um novo inimigo surgiu no oriente. Reforçados pelos Hirkanianos, os guerreiros de Turan derrotaram Zamora e enfrentaram os Aquilonianos nas planícies da Britúnia.

Aquilônia não teve problemas de expulsar os Turanianos, mas a espinha dorsal da aliança Nemédia estava quebrada. A derrota do povo do leste mostrou aos demais o verdadeiro poder aquiloniano.

Zamora foi reconquistada, e seus habitantes perceberam que apenas haviam trocado o jugo oriental pelo ocidental. Soldados da Aquilônia se aquartelaram ali, para garantir a completa obediência da população zamoriana.

Ao norte haviam incessantes disputas na fronteira ciméria entre os selvagens guerreiros morenos e seus muitos vizinhos. Os Nordheimrs, os Bossonianos e os poderosíssimos Pictos. Por várias vezes os Cimérios chegaram a atacar até mesmo a Aquilônia, não tanto com o propósito da conquista, mas apenas para pilhar e saquear.

Entretanto, por um curioso capricho do destino, foi o crescente poder dos aparentemente inofensivos pictos que destronou os reis da Aquilônia. Tudo começou quando um sacerdote nemédio conhecido por Arus decidiu aventurar-se no ocidente e catequisar o povo picto na adoração ao deus Mitra. Ele não se abalou ao escutar as trágicas histórias de comerciantes e exploradores que jamais voltaram do oeste.

Por muitos anos os pictos vinham tendo contato com a civilização hiboriana, apesar de resistirem ferozmente à qualquer tentativa de aproximação. Viviam em clãs que guerreavam entre si com frequência. Seus costumes bárbaros e violentos eram chocantes para um homem civilizado, como Arus, da Nemédia.

Arus teve sorte de encontrar um chefe de inteligência acima do normal, chamado Gorm, que lhe permitiu ficar entre os seus com vida. Foi um caso único na história dos pictos, e teria sido melhor para a civilização hiboriana se o sacerdote tivesse sido dizimado de início.

Tendo aprendido rapidamente o idioma picto, Arus pode convencer Gorm das verdades eternas de Mitra sobre direito e justiça. O sacerdote prometeu imensas riquezas materiais aos adoradores do grande deus. Para provar seus argumentos, descreveu o esplendor dos reinos hiborianos, que tudo deviam a Mitra.

Falou sobre ricas cidades, férteis planícies e torres incrustradas de jóias. Gorm, com o instinto infalível dos bárbaros, desprezou os ensinamentos religiosos e se concentrou apenas no aprendizado da luta e da conquista. Ali, naquela mística cabana de vime, onde um sacerdote vestido de seda pura tagarelava enquanto um chefe bárbaro sonhava com riquezas, foram estabelecidas fundações do império picto.

Capítulo V – Destruição e Morte

Arus, o sacerdote de Mitra, despertou em Gorm, um chefe bárbaro, o desejo de conhecer terras civilizadas. A pedido de Gorm, Arus o conduziu, junto com mais alguns de seus guerreiros, através dos pântanos bossonianos, onde foram recebidos com olhares de espanto pelos pacatos aldeões. Logo os pictos chegaram à Aquilônia e tiveram livre acesso à ela.

Arus estava confiante de ter convertido muitos fiéis para Mitra, já que os pictos o ouviam e ele já não se sentia ameaçado por seus machados de cobre. Mas a verdadeira intenção do povo bárbaro era aprender como explorar os extensos depósitos de ferro de suas planícies para forjar armas… e conseguiram. Com elas, Gorm começou a consolidar sua supremacia sobre os outros clãs pictos.

Enquanto isso, insistindo em suas guerras contra o sul e o leste, a Aquilônia desprezava as ainda desconhecidas terras do oeste, de onde saíam guerreiros pictos para servir em seus exércitos mercenários. Após completarem seu serviço, esses guerreiros voltavam para os sertões pictos, conhecendos as táticas civilizadas de batalha e com desprezo pela civilização que a familiaridade com ela causou.

Com o passar dos anos, Gorm tornou-se o Chefe dos chefes, destacando-se como o rei que os pictos tiveram há milhares de anos. Mas a espera foi longa, e Gorm já passara da meia-idade. Com a hegemonia do poder, ele voltou novamente para a fronteira, agora para guerrear.

Arus percebeu tarde demais que alimentara pagãos de ganância, não de fé. E, quando tentou reparar seu erro, teve a cabeça arrebentada por um picto bêbado. Gorm reconhecia gratidão ao sacerdote, e colocou o crânio do assassino sobre seu túmulo.

Os pictos trocaram suas vestimentas de pelo por trajes de malha, e fizeram o sol da fronteira bossoniana refletir em seus sanguinários machados de aço. Ainda assim, os valentes bossonianos resistiram durante anos, poupando a Aquilônia de seu ataque.

Enquanto isso, em pleno apogeu de poder, o arrogante império aquiloniano tratava os povos menos poderosos, inclusive os fiéis bossonianos, com crescente desprezo. Argos, Zíngara, Ophir, Zamora e as cidades Shemitas eram tratadas como simples colônias, o que irritava particularmente os orgulhosos rebeldes zingarianos. Koth também pagava tributos e logo a seguir Estígia e Britúnia sucumbiram em batalhas.

Somente a Nemédia, no centro de todos os conflitos nunca fôra dominada. Assim, os exércitos aquilonianos voltaram sua força contra o estado vizinho. Suas resplandecentes fileiras foram largamente preenchidas por mercenários, principalmente bossonianos.

Com a guerra do leste, foi insuficiente o número de homens que ficou nos pântanos bossonianos para guardar sua fronteira. Ao tomarem conhecimento das atrocidades pictas em sua terra, regimentos bossonianos inteiros abandonaram a campanha nemediana e rumaram ao oeste, onde derrotaram os pictos numa grande guerra.

Esta deserção resultou no fracasso da investida dos aquilonianos contra os enfurecidos nemédios, fazendo com que o reino da Aquilônia voltasse contra os bossonianos a crueldade e a fúria cega dos imperialistas.

Isso se deu quando tropas aquilonianas seguiram para a fronteira dos pântanos e convidaram os chefes bossonianos para irem ao seu acampamento. Lá, os chefes desarmados foram massacrados, e, em seguida, os vingativos visitantes imperiais atacaram o despreparado povo. Quando a ruína dos pântanos se estendeu de norte a sul, o exército aquiloniano voltou da fronteira deixando para trás uma terra completamente devastada.

Agora nada podia deter a poderosa invasão da fronteira pelos pictos sob a liderança de Gorm, então velho, mas ainda inflamado pela avidez de conquista.

Sem os bravos guerreiros bossonianos para se interpor a sua marcha, os enfurecidos selvagens alcançaram a Aquilônia antes que suas legiões pudessem retornar das guerras do leste.

Zíngara aproveitou a oportunidade para livrar-se do jugo, seguida pelos Corínthios e pelos Shemitas. Regimentos inteiros de mercenários e súditos insurgiram e marcharam de volta às suas terras, destruindo e incendiando tudo em seu caminho, enquanto levas implacáveis de pictos vinham para o leste. Em meio ao caos, os bárbaros da Ciméria desceram das colinas do norte para completar a ruína, e o império aquiloniano desmoronou sob fogo e sangue.

Capítulo VI – O Despertar das Trevas

Após a queda do império aquiloniano, hordas de hirkanianos chegam ao reino derrotado, vindas do leste. Hirkanianos e turanianos estão, agora, unidos sob o comando de um grande chefe. Não havendo tropas para combatê-los, eles se tornaram invencíveis. Primeiro arrasaram Zamora, depois Britúnia, Hiperbórea e Corínthia.

Em seguida, tentaram destruir a Ciméria, atacando os bárbaros de cabelos negros e pele morena. Mas, entre as colinas, a cavalaria hirkaniana não se mostrou eficaz, permitindo um contra-golpe cimério. Somente uma retirada desordenada pôde salvá-los do completo extermínio.

Os pictos, enquanto isso, tornaram-se os senhores da Aquilônia, massacrando em sua marcha quase todos os habitantes do outrora poderoso império. É provável que esses ataques tenham levado os hirkanianos a arrefecer sua fúria em anexar até mesmo a Estígia ao seu império em expansão.

Nemédia, nunca antes subjugada, era agora disputada por oeste e leste, enquanto uma tribo de aesires se enveredava pelo sul, saqueando e pilhando. Esses aesires não só derrotaram os hirkanianos, como também interromperam o avanço picto para o leste.

Enquanto isso, Gorm, o chefe picto cuja ambição havia iniciado a carnificina, era morto por Hialmar, líder dos aesires nemédios. Setenta e cinco anos antes, ele ouvia pela primeira vez dos lábios de Arus, sacerdote de Mitra, as lendas a respeito das maravilhas da terra do oeste. Tempo mais que suficiente para uma civilização morrer.

Por um curto período, pictos e hirkanianos hostilizaram-se sobre as ruínas do mundo que haviam conquistado. Até que começa a era glacial. O crescimento das geleiras empurrou muitas tribos nórdicas para o sul, onde clãs semelhantes se atacavam uns aos outros. Nemédia, nesse meio tempo, tornou-se um reino nórdico governado pelos descendentes dos mercenários aesires.

Pressionados pelos povos do norte, os cimérios se deslocavam para a fronteira, destruindo a Gunderlândia, abrindo depois seu caminho através do exército picto para derrotar os nemédios e saquear várias de suas cidades, até alcançar o leste, onde aniquilaram um exército hirkaniano nos limites da Britúnia.

Encurralados, bandos de aesires e vanires aglomeravam-se ao sul, fazendo o recém-edificado império picto cambalear sob seus golpes. A Nemédia por fim sucumbiu, e suas tropas fugiram deixando para trás a população civil. As cidades nemédias ficaram arruinadas e desertas.

Os nemédios fugitivos derrotaram os hirkanianos em Shem, Britúnia e Hiperbórea, forçando os descendentes dos lemurianos a voltarem na direção do mar de Vilayet. Enquanto isso, os cimérios, vagando na direção sudeste, destruíram o antigo reino hirkaniano de Turan e fixaram-se perto do mar interior.

Com seu império ocidental destruído, os hirkanianos chacinaram todos os seus prisioneiros e arrebataram milhares de escravos em seu caminho de volta ao misterioso leste. Eles retornariam milhares de anos depois, como Mongóis, Hunos, Tártaros e Turcos.

Ao mesmo tempo os mercenários ruivos de Vanir se deslocaram para a Estígia, onde derrotaram a classe dominante e ergueram um vasto império ao sul, ao qual deram o nome de Egito. Descender dos vanires era motivo de orgulho para os primeiros faraós.

O mundo ocidental era agora dominado pelos bárbaros nórdicos. Haviam poucas cidades. Os hiborianos, senhores no passado, tinham desaparecido da Terra, deixando apenas um vestígio de seu sangue nas veias de seus conquistadores. Com o tempo, toda a história da Era Hiboriana acabou se diluindo numa nuvem de mitos e fantasias.

Então, outro terrível cataclismo levou tudo novamente ao caos, esculpindo um novo perfil para o relevo dos tempos modernos. A grande faixa da costa oeste submergiu, e as montanhas da Ciméria ocidental transformaram-se no que hoje são as Ilhas Britânicas. Um vasto mar, mais tarde chamado Mediterrâneo, formou-se quando a Estígia se separou do resto do continente.

O território ao redo do mar interior, já em gradual evaporação, não foi atingido. Os nórdicos lá refugiados viveram mais ou menos em paz com os cimérios ainda presentes. Os dois povos formariam uma só raça.

No oeste, os pictos remanescentes, reduzidos então a um bando de selvagens da Idade da Pedra, apoderaram-se das terras outra vez, até que, mais tarde, sucumbiram ao fluxo de cimérios e nórdicos nesta direção.

Esse fluxo resultou de um crescimento populacional que superpovoou as estepes a oeste do mar interior – hoje conhecido como Cáspio e muito reduzido em tamanho – a tal ponto que a migração se tornou uma necessidade econômica. Conhecidos como arianos, esses povos deslocaram-se para as áreas hoje ocupadas pela Índia, Ásia Menor e parte da Europa.

Algumas variações desses primitivos filhos de Árias são ainda hoje reconhecidas, outras, já estão esquecidas há muito. Os nemédios irlandeses vêm dos aesires nemédios, enquanto os dinamarqueses, nômades do mar, eram os descendentes dos vanires.

Por outro lado, os loiros gauleses e bretões são descendentes da raça pura aesir. Os celtas, ancestrais do irlandês e do escocês das montanhas, vieram dos clãs cimérios de raça pura.

Os antigos sumérios descendiam de hirkanianos e shemitas, e os shemitas mais puros foram ancestrais tanto de árabes quanto de israelitas.

Os hirkanianos instalaram-se no extremo leste do continente, e voltariam de forma sangrenta à história ocidental, séculos depois, como Hunos, Mongóis, Tártaros e Turcos.

As origens de outras raças do mundo moderno podem ser traçadas de modo similar. E, na maioria dos casos, por mais remotas que possam parecer, suas histórias remetem-se às névoas da esquecida Era Hiboriana…


Roy Thomas / Walt Simonson

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Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – II

Os deuses da Era Hiboriana

Compilado de escritos deixados por Robert E. Howard

De acordo com o escritor americano, Robert Ervin Howard, cerca de 12.000 anos atrás, houve um glorioso período na pré-história da Terra entre a submersão da lendária Atlântida e a história conhecida no tempo dos egípcios e mesopotâmicos. Essa era ele chamou de Hiboriana, cujas maiores potências eram os reinos de Aquilônia, Nemédia e Turan, existindo onde hoje se encontram a França, Alemanha e União Soviética. Muitas eram as divindades adoradas no período hiboriano, e grande era sua influência em todos os habitantes do continente. Por essa razão, se quisermos compreender bem o meio ambiente no qual viveu o famoso bárbaro chamado Conan, é de absoluta importância um conhecimento detalhado sobre as entidades que compreendiam as várias religiões da época.

O Reino de Ymir

O deus supremo dos aesires e vanires – habitantes de Aesgaard e Vanaheim – era Ymir, o gigantesco deus da guerra e da tempestade. Nada de muito definido se sabe sobre ele, exceto que governava Valhalla, uma região de planícies geladas e montanhas imensas, jazigo eterno para as almas de todos os guerreiros. Sua filha era Atali, uma jovem linda e de pele branca como a neve, que atuava como uma espécie de mensageira da morte, aparecendo aos lutadores feridos mortalmente durante uma batalha.

Como, na época, Aesgaard e Vanaheim eram simples agregados de tribos independentes e não reinos unificados, provavelmente também tinham um grande número de deuses regionais, subordinados a Ymir. Mas isso é apenas suposição.

A Terra de Trevas e Noite Eterna

Ao norte do continente, situava-se a Ciméria, uma região tenebrosa, repleta de montanhas cobertas por densas florestas, cujo céu era sempre cinzento e governado por deuses obscuros. No mais alto de todos os montes achava-se Crom, a severa divindade que controlava os destinos e decretava as mortes. Nenhum cimério tinha por costume suplicar algo a Crom, pois ele era lúgubre, selvagem e odiava os fracos. Apesar de ser o deus mais importante do reino, haviam outros, com menos seguidores, mas também adorados. Entre estes, nós podemos citar Lir, seu filho Mannanan, a deusa guerreira Morrigan, seus subordinados Badb (a fúria da batalha), Nemain (o venenoso) e Macha.

A visão da vida e da morte, para os cimérios, era tão triste quanto sua terra e seus deuses. Em sua concepção, não existia esperança nem no presente, nem no futuro, pois eles tinham plena convicção de que os homens lutavam e sofriam em vão, encontrando prazer somente na loucura da batalha. Morrendo, suas almas penetravam em um reino escuro, frio e enevoado, onde vagariam por toda a eternidade.

Não é de se espantar que Crom fosse o deus de uma raça autoconfiante, cujas únicas ambições eram lutar pela sobrevivência e empenhar-se em tantos combates quanto possível.

A Chegada dos Hiborianos

Quando o mundo foi abalado pelo Grande Cataclismo que fez submergir a Atlântida, os ancestrais daqueles que viriam a ser os hiborianos fugiram para o norte do continente. Nessa época, eles não passavam de simples selvagens, pouco mais desenvolvidos do que os homens de Neanderthal. Durante os 1.500 anos em que habitaram aquelas terras, os primitivos foram, pouco a pouco, desenvolvendo complexos rituais, bem como formas de adoração a sues ancestrais. Bori, por exemplo, deve ter sido um guerreiro bem-sucedido, transformado em lenda como herói nacional e, mais tarde, deificado.

Antes de iniciarem o grande êxodo para o sul, os hiborianos eram seminômades, habitavam cabanas de couro de cavalo e viviam da caça e do pastoreio. Dessa forma, assim como as nações arianas e outros povos, eles começaram a adorar os céus e a imaginar formas celestes que governavam tanto os fenômenos naturais como as necessidades humanas. Esse conceito de deuses passou a dominar mais e mais suas crenças, na medida em que aumentava sua expansão geográfica.

Por cerca de 500 anos, as tribos hiborianas vagaram para o sul e sudeste sem ter suas crenças afetadas, até que, por fim, encontraram raças antigas e poderosas – como os acheronianos, estígios, zamorianos e outros – e conheceram seus deuses pré-cataclísmicos. Graças ao contato com esses povos, toda a cultura hiboriana foi bastante modificada. As alterações mais marcantes se deram em suas técnicas e equipamentos militares, na estrutura econômica e social, na linguagem e em sua religião. Vivendo em aglomerados isolados entre os reinos, esses hiborianos acabaram fundando nações primitivas, sendo as primeiras Koth e Ophir.

O Grande Deus

Foi em algum momento, nessa época de transição cultural, que surgiu o deus Mitra para se transformar na divindade hiboriana universal. Sua ascenção provavelmente começou cerca de 1.400 anos após a queda do reino de Acheron, quando as terras hiborianas se viram ameaçadas pela sombra de Set, o deus-serpente, e foram salvas graças ao esforço do herói-profeta de Mitra, Epimetreus.

Na época de Conan, Mitra já era considerado o único deus verdadeiro pelos seus adeptos, e, apesar de alguns outros cultos ainda serem tolerados – o de Ishtar, por exemplo -, Mitra reinou essencialmente sozinho.

Cimérios e hiborianos parecem ter sido os únicos povos a não paraticar sacrifícios humanos nessa era. Os rituais de Mitra, pelo que se sabe, não incluíam sacrifícios de qualquer espécie. O deus era considerado onipresente e sua real aparência, desconhecida por todos. As estátuas erguidas em sua homenagem, não passavam de meras tentativas para retratá-lo numa forma humana tão perfeita quanto a mente do homem podia conceber.

Set e Ishtar

Houve uma época em que quase metade do mundo conhecido estava sob o domínio de Set, o deus-serpente. Eram dias em que Acheron ainda existia como uma nação altiva e a Stygia dominava o reino de Shem. No período de Conan, contudo, a adoração ao senhor das trevas foi confinada unicamente à Stygia e suas áreas subordinadas, como o sudeste de Shem.

A origem do deus remonta ao período pré-cataclísmico, assim como as pirâmides da Stygia. Sua origem assustadora deve ter sido baseada nas víboras que habitavam os pântanos ao sul do mar de Vilayet, encontradas pelos estígios em sua emigração para o oeste. O culto a Set era proibido pelos hiborianos, que consideravam a divindade um demônio maligno. Seus rituais eram sinistros e profanos, compreendendo longas procissões de sacerdotes mascarados e sacrifícios humanos em templos subterrâneos.

Ao norte da Stygia, no reinado de Shem, a entidade mais venerada era a deusa Ishtar. Seus templos ricos e exuberantes serviam como palco para sacrifícios de animais, além de outras cerimônias religiosas. Embora o culto fosse claramente inferior ao mitraísmo, ainda era consideravelmente mais elevado do que a diabólica devoção dos estígios pelo deus Set, e bem menos profano do que as seitas pagãs de Turan, Vendhia e Khitai.

Em linhas gerais, esse era o panorama religioso na Era Hiboriana do bárbaro Conan, idelaizado pela fantástica imaginação de Robert E. Howard. Embora o bárbaro tenha crescido no temor de Crom, quando iniciou suas andanças para o sul, ele também sofreu a forte influência das culturas mais civilizadas, passando a crer em outras entidades como Ishtar e Mitra. Contudo, mesmo nas horas de maior perigo, o bárbaro raramente invocava o auxílio de algum deus, acreditando piamente, como todos os cimérios, que os únicos poderes capazes de ajudar um homem são a força, a coragem e a lâmina afiada de uma espada.


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Os fantásticos mundos de Robert E. Howard – I

Pequena biografia de Robert E. HowardD

Robert Ervin Howard, criador de densas e vigorosas fantasias, nasceu em 22 de janeiro de 1906, em Peaster, Texas. Leitor insaciável desde a infância, sentia fascínio inato pela História, o que lhe foi muito útil anos mais tarde. Sua inclinação literária, contudo, parecia algo incoerente, principalmente quando comparada ao seu aspecto físico: cerca de 1,83 m de altura, pescoço grosso, cintura esguia, enfim, tudo para ser associado, como foi, aos personagens que criou e tornou famosos.

Ainda jovem, Howard fez de tudo um pouco: foi repórter jornalístico, secretário particular numa agência de advocacia, taquígrafo, balconista de lanchonete e… ah, sim, até carteiro. Tudo isso sem nunca perder de vista sua verdadeira vocação de contador de histórias fantásticas.

Sua fértil carreira de ficcionista, propriamente, teve início quando, aos 18 anos, sua primeira história foi vendida para a legendária revista Weird Tales, criando praticamente sozinho o atualmente difundido gênero de magia e aventura, apresentando aos leitores o Rei Kull da Valúsia em 1929 e Conan da Ciméria em 1932. Ele também escreveu contos esportivos, bem como histórias orientais e de faroeste para outras revistas.

Seu estilo pitoresco, emoldurado por ambientações dramáticas e salpicado de batalhas sangrentas, garantiu-lhe grande sucesso como autor de aventuras e inveja por parte de seus colegas. Howard também aventurou-se na poesia; para citar o poeta H. P. Lovecraft, sua obra era “estranha, vertiginosa, emocionante”. Além das obras publicadas, Robert E. Howard manteve volumosa correspondência com personalidades literárias, como Clark Ashton Smith, Edmond Hamilton, E. Hoffmann Price, Otis Adelbert Kline e o já mencionado H. P. Lovecraft.

De longe sua criação mais conhecida, Conan, tornou-se tão popular entre os leitores da Weird Tales que Howard foi obrigado a abandonar seus outros heróis para dedicar-se exclusivamente às sagas do gigante cimério. Ele esboçou numerosos contos sobre o intrépido bárbaro, mas devotou suas energias na escritura de uma única novela sobre o herói, chamada A Hora do Dragão (The Hour of the Dragon). Composta em parte por vários contos recuperados, a novela passou a ser impressa em forma de livro como Conan, o Conquistador (Conan the Conqueror).

Howard morava com seus pais no vilarejo de Cross Plains, Texas, e sua carreira ganhou ainda mais notoriedade quando os vizinhos descobriram que a renda do autor era maior que a do presidente do banco. Sua última história, assim como a primeira, foi vendida para a Weird Tales.

Robert E. Howard suicidou-se em 11 de junho de 1936.

Após sua morte, suas obras pareciam fadadas ao esquecimento, como ocorreu com a produção de autores do mesmo gênero. Na década de 40, alguns contos de Howard foram reunidos numa edição limitada de capa dura da Gnome Books. Porém, a verdadeira ressurreição do interesse pela obra do escritor só aconteceu nos anos 60, quando as histórias de Conan voltaram a circular na forma de brochura, e novas histórias foram criadas por L. Sprague de Camp e Lin Carter.

Em 1970 a Marvel Comics adquiriu os direitos para versão em quadrinhos de Conan e outros personagens de Robert Howard, dando início à mais extensa e prolífera das publicações howardianas. Esse processo estende-se até hoje, com exceção de um período em que as brochuras de Conan Canon (Os Cânones de Conan) não eram disponíveis devido a complicações jurídicas. Nesse período, a premiada série colorida em quadrinhos, Conan the barbarian (Conan, o Bárbaro), manteve o público em contato com o herói.


David A. Kraft

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A censura nos quadrinhos

Sidney Gusman é jornalista especializado em quadrinhos e editor-chefe do site Universo HQ (http://www.universohq.com).

Artigo publicado no exemplar nº 24 da Revista Sandman, pela editora Globo em 1991.

Rotular histórias em quadrinhos como coisa de criança nos dias de hoje não afeta em nada o orgulho do leitor, pois ele sabe que isso pertence ao passado. No entanto, a falsa imagem negativa das HQs quase custou sua extinção nas décadas de 40 e 50 nos EUA, em pleno “reinado” de Harry Truman. A derrota dos nacionalistas na China e o início de testes nucleares na URSS propiciou o nascimento de uma psicose anticomunista que gerou consequências desastrosas, como a abertura de processos contra intelectuais esquerdistas (Alger Hiss) e estrangeiros suspeitos de espionagem (o casal Julius e Ethel Rosenberg).

Neste caos idealista, o senador Joseph McCarthy criou, em 23 de setembro de 1950, o Comitê contra as Atividades Antiamericanas: o período tristemente conhecido como “macartismo” (1950/1958). Essa caça às bruxas ocasionou denúncias e perseguições a todos aqueles considerados suspeitos de alguma coisa. Exatamente nessa era, surgiu o monstro que, até hoje, assola a liberdade de criação nos quadrinhos: o COMICS CODE (o Código de Ética).

A Era negra dos Quadrinhos

No início dos anos 50, as revistas em quadrinhos de horror, crime ou qualquer outro tipo, sofriam ataques de educadores, imprensa, grupos de pais, legisladores, igreja, polícia e psiquiatras. Segundo eles, os comics glorificavam violência, crime e sexo. O número de delinquência juvenil estava aumentando e suspeitavam de que as HQs eram, de alguma forma, responsáveis pelo rápido declínio moral da juventude.

O pós-guerra nos EUA deu início a um fanatismo em massa encoberto pelo ultranacionalismo ianque. Entre os muitos inimigos das revistas estava o Dr. Fredric Wertham, um psiquiatra de jovens problemáticos. Seus vários artigos publicados a partir de 1948 começavam a chamar atenção por mostrarem facetas das outrora inofensivas histórias em quadrinhos que ninguém tinha a malícia de enxergar.

Naquela épóca o oportunista Dr. Wertham soube utilizar muito bem a má fama das HQs para aumentar a aversão do público por ela e tornou-se o principal carrasco da oitava arte. Ele fez várias pressões, na tentativa de convencer o governo a assumir uma postura mais rígida contra o que chamava de “mutilação psicológica das crianças”.

Então, em 1954, Wertham desferiu o golpe de misericórida com a publicação do livro “Seduction of the Innocent” (Sedução do Inocente). Escrita de maneira bem simples e popular, a obra trazia, principalmente, anedotas de humor duvidoso mescladas com casos de jovens que, supostamente, haviam sido “afetados” pelas histórias em quadrinhos. De acordo com o autor, tais histórias induziam as crianças a cometerem roubo, estupro, uso de drogas ou, até mesmo, a mudar sues hábitos sexuais. Ainda hoje podemos notar reflexos das represálias moralistas através de Batman & Robin, cuja suspeita de homossexualismo era, e ainda é, flagrante segundo as más línguas. A Mulher Maravilha, por sua vez, foi apontada como um péssimo exemplo para as garotas, pois não passava de uma estandarte do lesbianismo.

Subcomitês do Congresso foram criados para estudar com mais profundidade a existência do perigo iminente das revistas em quadrinhos. Era o começo da ERA NEGRA DOS QUADRINHOS.

A Vítima

O maior expoente da história do horror nos quadrinhos foi a EC COMICS (antiga EDUCATIONAL COMICS e, então, ENTERTAINMENT COMICS), de William Gaines, e, consequentemente, o grande alvo dos moralistas americanos.

Seu famoso “triunvirato do horror”, que estreou em maio de 1950, era composto por “The Crypt of Terror” (mais tarde rebatizada de “Tales from the Crypt”), “The Vault of Horror” e “The Haunt of Fear”. Em parceria com Al Feldstein, Gaines marcou época com histórias de terror realizadas por grandes artistas como Johnny Craig, Jack Davis, Graham Ingels, George Evans e Jack Kamen. Esse sucesso, porém, não gerou simpatia alguma no Comitê encarregado de julgar as revistas da EC.

Chamado para testemunhar em defesa de sua editora, Gaines não teve argumentos positivos contra a imposição da decência deturpada de seus inquisidores. Uma vez mais, a imprensa sensacionalista cumpriu seu papel e fez o desfavor de manipular a história e conduzir a opinião pública. Afinal, manchetes escandalosas chamavam muito mais atenção do que a verdade.

Para certo espanto dos que eram contra as histórias em quadrinhos, os Comitês abdicaram de sua atuação como tribunal alegando não ser função do Governo moralizar as revistas, pois isso já deveria estar embutido nas próprias editoras. De uma forma sutil, a censura foi sendo imposta como um requisito básico nas publicações do gênero. Nenhum cancelamento precisou ser formalizado. A desgraça já estava feita!

O Comics Code

Cego pelo macartismo, o público começou uma espécie de guerra santa contra as demoníacas HQs. Não bastava queimar apenas as revistas de terror… Praticamente todas as publicações passaram a ser perseguidas. As vendas despencaram. Era a crise editorial provocada por fanáticos no início da época denominada happy days (os tão famosos “dias felizes” ou “anos dourados” que antecederam o fim do sonho americano com a Guerra do Vietnã).

Em pânico, as editoras resolveram se unir e formaram a CMAA – “Comic Magazine Association of America” (Associação das Revistas em Quadrinhos da América), através da qual pretendiam estabelecer um “padrão de moral” para assegurar aos leitores uma revista de “qualidade”. A forma escolhida para diferenciar a “boa” da “má” publicação foi o uso de um selo discreto no canto (esquerdo ou direito) superior das revistas: o Comics Code.

A demagogia era tamanha, que a CMAA enviou comunicados a jornais, associações comunitárias e outros órgãos envolvidos na moralização das HQs informando que todos os títulos com o selinho estampado em suas capas estariam livres de qualquer indução negativa às crianças. Resumindo, o Comics Code significava o seguinte: a partir de 23 de outubro de 1954 (a data fatídica!), os leitores deixariam de ser ameaçados por vampiros, lobisomens e zumbis e as palavras “terror” e “horror” não poderiam ser usadas em títulos. Consequentemente, a maioria das editoras cancelou suas publicações do gênero para não ter mais problemas com os Comitês ou outras ameaças censoras.

Apesar disso, a grande EC sofreu danos muito mais sérios. Mesmo se submentendo ao código de ética, ela não se livrou da má fama e teve suas revistas devolvidas por várias livrarias e lojas especializadas. O único título que sobreviveu a essa triste série de eventos foi Mad.

E o Comics Code continuava seu reinado repressor.

A Censura no Brasil

A censura se expandiu pelo mundo inteiro. E o Brasil não ficou de fora. Na década de 60, os quadrinhos publicados aqui passaram a ser “vigiados” por um código de ética. Eram 18 artigos que proibiam cenas de sexo, violência e ofensas à moral, ao Estado, aos pais, aos professores, aos deficientes físicos e às religiões. Esse “acordo” foi assinado por quatro empresas: Editora Abril, Rio Gráfica e Editora, Editora Brasil-América e Empresa Gráfica O Cruzeiro.

Entretanto, o grande problema das editoras brasileiras era a autocensura. Talvez isso fosse (ou ainda seja) um reflexo do passado ditatorial do país, mas o certo é que, muitas vezes, as pessoas envolvidas na publicação das revistas acabavam esbarrando nos limites impostos por si próprias. Em consequência disso, várias obras ficaram literalmente mutiladas.

O último movimento brasileiro contra os quadrinhos aconteceu em julho do ano passado, com o lançamento da revista Dundum. A publicação foi parcialmente subsidiada pela Prefeitura de Porto Alegre (RS). Por esse motivo, principalmente, a Dundum sofreu acusações de pornografia, pelo vereador João Dib (PDS); de ser contra deficientes físicos, pelo candidato a governador Alceu Colares (PDT); e, devido a uma história, sofreu uma ação jurídica da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar. Resultado do escândalo: todos os exemplares se esgotaram, mas o segundo número da revista só saiu praticamente um ano depois. Dessa vez, sem nenhum apoio governamental.

A Fuga da Censura

Devido à vigilância do Comics Code, os artistas foram obrigados a descobrir novos meios de publicar seus trabalhos, sem cortes. Começaram a surgir, então, as editoras independentes, que não se sujeitavam à aprovação do código de ética. As revistas circulavam com a inscrição suggested for mature readers (aconselhável para leitores adultos). A idéia deu certo e agradou os leitores.

Essa fatia do mercado cresceu muito e não tardou para as grandes editoras “acordarem”. Stan Lee criou a EPIC, uma divisão adulta da MARVEL, onde seriam publicadas histórias abordando assuntos que não sairiam nas revistas tradicionais. Nessa trilha apareceram os chamados “quadrinhos de autor”, qualificação muito na moda atualmente e uma maneira eficaz de burlar o crivo da censura. Contudo, houve quem preferisse a “legalidade”. A NOW COMICS surgiu como independente e vinha razoavelmente bem, até seu editor, Tony Caputo, decidir, em 1988, submeter suas publicações ao código de ética. Todas foram aprovadas, mas a partir daí suas vendas despencaram e a empresa faliu pouco tempo depois.

Vários autores conseguiram “driblar” o Comics Code, mas não se pode dizer o mesmo quanto à censura em suas próprias editoras. Recentemente, aconteceram diversos casos na DC COMICS, como a saída de Rick Veitch da revista “Swamp Thing” (Monstro do Pântano), devido a um veto a uma história onde o personagem contracenava com Jesus Cristo. Em Asilo Arkham, Grant Morrison não pôde ver realizada sua insana idéia de assistir ao Coringa, vestido como a cantora Madonna, insinuando um provável relacionamento homossexual entre Batman e Robin. O Palhaço do Crime teve que se contentar com uma “passadinha de mão” nas nádegas do morcegão. Na minissérie Gilgamesh II, Jim Starlin foi proibido de levar adiante seu roteiro, no qual os dois irmãos demonstravam uma certa atração sexual entre si. Depois disso, Starlin retornou à MARVEL.

A voluptuosa Druuna, de Paolo Eleuteri Serpieri, também não escapou. Na saga “Creatura”, a revista italiana “L’Eternauta” simplesmente retocou as “partes íntimas” da musa e de seu parceiro numa cena pra lá de sensual. O genial Moebius tem sete números publicados numa coleção com seu nome pela EPIC. Entretanto, a edição número zero saiu depois, e pela DARK HORSE. Isso porque a história, chamada “Le Bandard Fou”, apresenta um homem que fica, constantemente, com o pênis ereto. Outro bom exemplo é a porno-minissérie Black Kiss (lançada no Brasil pela TOVIASSÚ), de Howard Chaykin. Nenhuma grande editora americana quis publicá-la por causa de seu forte apelo erótico. A saída para Chaykin foi o aeroporto. A VORTEX, do Canadá, topou a parada e vendeu milhares de revistas.

Um contraponto interessante sobre a censura nas HQs aconteceu na França. O livro “Images Interdites”, de Yves Premion e Bernard Joubert, saiu pela SYROS ALTERNATIVES e o grande destaque eram várias cenas de histórias em quadrinhos não publicadas graças à intervenção da “tesoura”.

Caem os Tabus

Com o passar dos anos e usando de certas “manhas”, os principais tabus impostos pelo código de ética foram caindo e se incorporando às HQs. Vários casos de homossexualismo pintaram nas páginas. Na minissérie Slash, uma guerreira fica desapontada ao descobrir que seu pretendido preferia passar a noite com outro rebelde. Estrela Polar, da Tropa Alfa, sempre escondeu de seus parceiros suas preferências sexuais até contrair o vírus da AIDS. Na série “The New Statesman”, da FLEETWAY QUALITY, dois heróis mantêm um caso. A revista Dundum apresentou aos leitores Rocky e Hudson, dois cowboys gays, criados por Adão Iturrusgarai. Extraño, um dos humanos escolhidos para ganhar superpoderes, na série Milênio, era homossexual. E, na revista 2000 AD, Zenith, de Grant Morrison, levou uma “cantada” de Meta-Maid, uma heroína coadjuvante que na verdade era um travesti.

Os romances entre mulheres sempre foram mais frequentes. Valentina, de Guido Crepax e Liz e Beth, de George Levis, apesar de se relacionarem bem com os homens, às vezes, optam por carícias femininas. Hopey e Maggie (Love & Rockets), dos irmãos Hernandez, também são adeptas dessa conduta. Em Sommerset Holmes (lançada no Brasil pela ABRIL JOVEM), a personagem-título se envolve com outra garota enquanto tentava recuperar a memória. E uma passagem clássica aconteceu em Camelot 3000, onde, por uma brincadeira do destino, Lorde Tristão reencarna num corpo feminino, mas isso não impede a consumação de seu amor com Isolda.

As drogas também deixaram de ser temas probidos nos quadrinhos atuais. Em Akira, Kaneda e sua gangue são ávidos consumidores de cápsulas alucinógenas. Ricardito, pupilo do Arqueiro Verde, já foi um viciado. E num dos capítulos da saga “Born Again”, escrita por Frank Miller e desenhada por David Mazzuchelli, Karen Page, a ex-namorada do Demolidor, aparece com uma seringa na mão, após prostituir-se. Aliás, essa edição, curiosamente, saiu sem o selo de aprovação do Comics Code.

Quanto à violência, então, as citações são inúmeras. Quem não se recorda das edições 6 e 13 de SANDMAN, verdadeiras carnificinas numa lanchonete e numa convenção, respectivamente? Ranxereox, de Liberatore, não hesita em estraçalhar os crânios alheios. Em Watchmen, de Alan Moore, o Comediante comete dois estupros, enquanto Rorschach elimina seus inimigos exibindo técnicas de torturas impressionantes. Moore voltou à carga em Piada Mortal, quando o Coringa violentou e aleijou Barbara Gordon, a Bat-Moça. Em “Squeak, The Mouse”, de Massimo Mattiolli, sexo e sangue são elementos primordiais. Wolverine e Lobo também não ficam atrás quando o assunto é matar, esmagar, trucidar ou destruir.

Muitos casos de censura obtiveram grande repercussão. Ente eles podemos citar Black Kiss, que teve edições recolhidas em diversos lugares. O mesmo aconteceu com “Score”, da PIRANHA PRESS (uma divisão da DC), tachada como “extremamente violenta”. O próprio Mestre dos Sonhos foi alvo de pesadas acusações quando da morte do leitor Michael J. Housenecht. O motivo: perto do corpo havia um exemplar da revista (nr. 19) e um bilhete assinado The Sandman. Além disso, em alguns países, instituições moralistas ainda tentaram repetir as famigeradas queimas de publicações de quadrinhos.

Em 1989, houve uma nova investida contra as HQs. Sob a liderança de Thomas Radecki, a National Coalition on Television Violence (Coalisão Nacional sobre a Violência na Televisão) ganhou espaço em toda a imprensa através de matérias exigindo um controle rigoroso sobre as publicações. Entre as explanações de Radecki “brilhavam” acusações de violência ao Mickey Mouse e de “impróprio para crianças” à Alice no País das Maravilhas.

Por enquanto, os quadrinhos estão vencendo essa batalha. Apesar dos ataques constantes e (na maioria das vezes) absurdos da censura, as editoras têm conseguido contornar todas as adversidades e, assim, publicar seus trabalhos, de uma maneira ou de outra. A esperança, mesmo longínqua, é de que, algum dia, o bom senso prevaleça e sobrepuje esse falso moralismo, determinando o fim da censura. De uma vez por todas.

O Código de Ética

O Comics Code é composto por 42 artigos, divididos em questões editoriais e publicitárias. Conheça alguns deles.

– Crimes jamais serão apresentados de forma a criar simpatia pelo criminoso, promover descrença nas forças da lei e justiça, ou inspirar o desejo de imitar criminosos.

– A palavra “crime” não deverá aparecer proporcionalmente maior do que outras contidas no título e nem ser exibida isoladamente na capa de uma revista em quadrinhos.

– Nenhuma revista em quadrinhos usará as palavras “horror” e “terror” em seus títulos.

– Cenas que apresentem tortura, canibalismo, vampiros, lobisomens, mortos-vivos, ou instrumentos associados a eles são proibidas.

– Profanações, obscenidades, conversas indecentes, vulgaridades ou palavras e símbolos que tenham adquirido significados indesejados são proibidos nos diálogos.

– A nudez, em qualquer forma, é proibida, assim como a exposição indecente ou imprópria.

– Personagens femininas deverão ser desenhadas de forma realista, sem exageros de quaisquer qualidades físicas.

– Divórcio não deverá ser tratado humoristicamente, nem representado como desejável.

– O tratamento de histórias de amor/romance deverão enfatizar o valor do lar e a inviolabilidade do casamento.

– Sedução e estupro não deverão ser mostrados nem sugeridos.

– Propagandas de bebidas alcoólicas e cigarros são inaceitáveis.

– Propagandas de livros de sexo ou instrução sexual são inaceitáveis.


Leandro Luigi Del Manto e Sidney Gusman
Informações extraídas do livro “The Illustrated History Horror Comics”, de Mike Benton, publicado pela TAYLOR PUBLISHING COMPANY

  (Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)