Toga e outros babados – A passarela da Justiça

Nirlando Beirão

Carta Capital, 05/09/07, p.41

Os ministros do Supremo, às voltas com o julgamento do mensalão que nada tinha de mensal, desfilaram pela arena de suas perorações eruditas, intermináveis, em Brasília, o garbo de fardamentos negros que lhes chegam à canela. Os estilistas das autoridades chamam a isso trajes talares.

É como se atestassem, na simbólica configuração das togas e dos babados, que estão ali para ministrar justiça, apenas isso, em sisuda contrição, compenetradíssimos, embora tenham entre eles o divertido ministro Marco Aurélio Mello e ainda que um marciano desavisado que ali chegasse pudesse imaginar ter caído no meio do mais carnavalesco dos sambódromos. Quem já foi ao Vaticano sabe, aliás, do que estou falando.

A Justiça, no Brasil, legitima-se menos nos seus atos do que nos seus ritos. Por isso a extravagância de becas esvoaçantes mesmo quando se trata de um modesto júri no tórrido interior do Tocantins. Culto das aparências enganosas: aqui a Justiça tarda e falha, mas, é bom reconhecer, está sempre checando a silhueta à frente de um bom espelho.

Não se sabe de nenhuma corte que, em um surto de bom senso, tenha dispensado algum dia o valor representativo da fatiota. A cansada OAB e os organismos da magistratura estão aí, de olho nos eventuais rebeldes. É que o figurino comprido e escuro impõe, de cara, um sentido de superioridade imperiosa. Os que ministram a Justiça não prestam contas senão à sua própria consciência, quando a têm – nunca ao coro imperfeito dos míseros mortais.

Quando se propõe algum tipo de controle social sobre a Magistratura, é aquele deus-nos-acuda. Só os jornalistas – quer dizer, os donos dos veículos de comunicação – são capazes de espernear mais que juízes e promotores. É como se alguém quisesse amarfanhar-lhes a vestimenta. Fecham-se em casta, engalanados em suas togas, becas e, agora, laptops.

Conheço o caso de um aprendiz de advogado que se viu, pela primeira vez, diante de um juiz de Direito. Tão aterrorizado estava o pobrezinho, ante toda aquela farfalhante liturgia, que, quando enfim o Meritíssimo lhe dirigiu a palavra, ele replicou: “Pois não, Majestade”. Faz todo sentido.

Lei pouca é bobagem

Boa essa. Recebi por intermédio do Migalhas.

Nesse emaranhado legiferante, até os advogados se atrapalham com tantas leis, as quais reformam outras, modificadas por aquelas, alteradas por estas e por aí vai… Imaginem então isso na cabeça de quem não é do ramo ?! Hoje, por exemplo, foi sancionada a lei 11.501/07 que altera as leis 10.355/01, 10.855/04, 8.112/90, – não perca o fôlego – 11.457/07, 10.910/04, 10.826/03, 11.171/05 e 11.233/05. Ufa! Mas não é só. De quebra, ainda revoga dispositivos das leis 11.302/06, 10.997/04, 8.212/91, 9.317/96, – vai com fé, está acabando – 10.593/02, 11.098/05 e, ah!, 11.080/04. E, porque não podia faltar, “dá outras providências”. Pode um negócio desses ?

Piloto Automático – VI

( Direto das catacumbas do Legal… )

– Senhor Presidente, peço a palavra.

– Tem a palavra, nobre deputado.

– Tenho dito, Senhor Presidente.

– Como? Mas Vossa Excelência não disse nada!

– Disse “tenho dito”.

– Tenho dito o quê?

– O que tinha a dizer.

– Eu sei. Mas o que é que Vossa Excelência tinha a dizer?

– O que disse. Muito obrigado.

– Mas Vossa Excelência limitou-se a pedir a palavra…

– Exatamente, pedi a palavra. E desde que Vossa Excelência ma concedeu, eu vi que nada mais havia a dizer, a não ser o óbvio, gastando inutilmente o tempo precioso desta ilustre Assembléia com uma exploração mais ou menos demagógica de todas as implicações e consequências do simples fato, em si tão significativo, de eu haver pedido a palavra – o que prova que a palavra existe, e pode ser solicitada, requisitada, exigida – uma vez que Vossa Excelência mesmo, ao permitir que eu fizesse uso dela, reconheceu implicitamente não ser a palavra um mito divino, mas um instrumento de comunicação acessível à capacidade humana. Obtendo-a, podemos usá-la ou não, falar ou silenciar, e eu da minha parte, confesso que prefiro silenciar, mesmo porque estou meio rouco e com um pouco de dor de garganta mas de qualquer forma, sei que a palavra me foi concedida, e, assim sendo, não estou condenado à nudez. O resto depende de mim, da minha loquacidade ou da minha parcimônia verbal, da minha audácia ou de minha prudência, da minha coragem ou da minha covardia. Assumo a responsabilidade dos meus atos. Dependendo de mim mesmo – e não dos outros. A palavra existe. E eu peço a Vossa Excelência que mande consignar esse auspicioso acontecimento nos anais. Ainda uma vez, Senhor Presidente, tenho dito. E mais não direi.

Exemplo significativo de quando se pode gastar as palavras, sem dizer absolutamente nada.

Publicado originalmente em 05/SET/2005

Piloto Automático – III

( Direto das catacumbas do Legal… )

Nestes últimos dias por mais de uma vez estive tentado a sentar frente ao computador e colocar em palavras os devaneios de minh’alma. Mas não o fiz. E, sinceramente, perdi aquele momento de inspiração. Eu pretendia falar sobre muitas coisas, desde a riqueza e maravilha do mero SILÊNCIO em um ambiente (certo, Paulo?), passando pelo último filme de Harry Potter (muito bom, como sempre), mais alguns detalhes das obras de marcenaria que me custaram um ombro são (ainda tá doendo), e, talvez, concluindo com a demagógica visita de representante do Tribunal de Justiça para inauguração das novas Varas de Família de São José dos Campos (que sequer estão em condições de atender ao público).

Mas ainda voltarei a falar com detalhes desses assuntos.

Para não passar em branco, eis uma mensagem que recebi na forma de arquivo de powerpoint, enviada por Eloy Franco, com um soberbo fundo musical de Dilermano Reis (Abismo de Rosas):

Em 1955 em Campina Grande, na Paraíba, um grupo de boêmios fazia serenata numa madrugada do mês de junho, quando chegou a polícia e apreendeu o violão.

Decepcionado, o grupo recorreu aos serviços do advogado Ronaldo Cunha Lima, então recentemente saído da Faculdade e que também apreciava uma boa seresta. Ele peticionou em Juízo, para que fosse liberado o violão.

Aquele pedido ficou conhecido como “Habeas Pinho” e enfeita as paredes de escritórios de muitos advogados e bares de praias no Nordeste.

Mais tarde, Ronaldo Cunha Lima foi eleito Deputado Estadual, Prefeito de Campina Grande, Senador da República, Governador do Estado e Deputado Federal.

Eis a famosa petição:

HABEAS PINHO

Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca:

O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção
Não é faca, revólver nem pistola.
É simplesmente, doutor, um violão.

Um violão, doutor, que na verdade
Não matou nem feriu um cidadão.
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade.
Ao crime ele nunca se mistura.
Inexiste entre eles afinidade.

O violão é próprio dos cantores,
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam as mágoas e que povoam a vida
Sufocando suas próprias dores.

O violão é música e é canção,
É sentimento de vida e alegria,
É pureza e néctar que extasia,
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório,
Porém seu destino se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.

Mande soltá-lo pelo Amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno açoite
De suas cordas leves e sonoras.

Libere o violão, Dr. Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz,
cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, e afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
perambular na rua um desgraçado
derramando na rua as suas dôres?

É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento.
Juntando esta petição aos autos nós pedimos
e pedimos também DEFERIMENTO.

Ronaldo Cunha Lima, advogado.

O juiz Arthur Moura sem perder o ponto deu a sentença no mesmo tom:

Para que eu não carregue
Muito remorso no coração,
Determino que seja entregue,
Ao seu dono, o malfadado violão!

* Publicado originalmente em 13/DEZ/2005

Pérolas Febeapazísticas

O título é uma homenagem ao amigo e copoanheiro Bicarato, só para tentar fazer frente ao que escreveu lá no Alfarrábio no último dia 14…

Particularmente a Dona Patroa acha que estou sendo cético, que até poderiam haver bons frutos do ato praticado.

Entretanto, há muito tempo já deixei de acreditar nisso. Acho que os nobres edis – que usualmente possuem especialização e doutorado somente em nomear ruas – bem, dessa vez eles conseguiram se superar. Que me perdoem a franqueza, mas acho que os vereadores em geral, não só desse como de qualquer município, poderiam procurar algo com mais seriedade pra fazer, além da usual politicagem e corrida para cada qual tentar atender as demandas de seu próprio reduto eleitoral.

Ora, qual o papel principal de um vereador? Legislar. Fazer leis. Adequar as situações de direito às situações de fato, modernizando o arcabouço jurídico (bonito isso…) e atendendo o interesse público. É muito fácil perder esse foco – inclusive, ao fazer uma outra crítica, eu mesmo fui recentemente lembrado por um amigo acerca desse papel da casa legislativa.

Bem, sem mais delongas, eis o motivo do meu “ceticismo”. Dêem uma conferida no que saiu publicado no último Boletim Oficial da cidade em questão:

Vara da advogada

Essa eu recebi já há algum tempo do amigo Douglas, lá de São Sebastião (êita sardade…). Volta e meia ele costuma me mandar algumas curiosidades para (segundo ele) minha coleção de “causus juridicus”…

Cá entre nós: essa história só não me soa pior porque eu conheço diversos profissionais de outras áreas que conseguem ser ainda mais obtusos. É de espanar…

Instituto de Previdência da ex-mulher

De quando em quando surgem uns casos hilários na vasta jurisprudência brasileira. Eis um pequeno trecho de um deles, relativo a ex-marido que entrou com uma ação para exoneração da pensão quanto à ex-mulher, permanecendo somente a pensão em favor dos filhos:

A r. sentença de fls. 195/196, cujo relatório se adota, julgou improcedente a ação. Irresignado, o autor apela, reiterando os termos da inicial. Diz ter assumido todos os encargos da família, inclusive prestações relativas a financiamentos do imóvel e do automóvel, bens que ficaram com a primeira ré – afirmando que esta vive em companheirismo com outra pessoa. Ademais, alega que a mãe dos menores é professora e não exerce a profissão por comodidade, tendo trabalhado como sócia da irmã, sendo saudável, instruída e jovem. Aduz que lhe sobra muito pouco do que ganha, observando que ex-marido não é instituto de previdência social da ex-mulher. Pleiteia a procedência.

Só pra registrar: apesar de ter perdido em primeira instância, obteve decisão favorável em fase de recurso…