Cinco pontos de reflexão sobre a Judicialização da Saúde

Excelentes reflexões do sempre excelente argumentador, Professor George Marmelstein.

Meu primeiro contato com o problema da judicialização da saúde foi em 1998, quando ainda era um simples estagiário de vara de fazenda pública. Desde então, nunca parei de refletir sobre essa questão e tive a oportunidade de vivenciar diversas etapas da evolução do problema.

Nos anos 1990, o clima era de ceticismo em relação à efetivação judicial do direito à saúde. Em geral, as decisões judiciais invocavam barreiras como a reserva do possível ou natureza programática dos direitos sociais ou a separação de poderes para negar a possibilidade de reconhecer direitos subjetivos com base no direito à saúde. Aos poucos, a jurisprudência foi superando esse entendimento para aceitar algum tipo de intervenção judicial concretizadora do direito fundamental, especialmente envolvendo fornecimento de medicamentos vitais para pessoas carentes. As primeiras decisões do STF sobre o assunto são do final dos anos 1990 e envolviam o fornecimento do coquetel de medicamentos para os portadores de HIV. A partir de 2000, consolidou-se de vez a ideia de que os juízes podem obrigar o poder público a adotar medidas para implementar o direito à saúde, seja num nível individual, seja num nível coletivo.

Hoje, pode-se dizer que a questão atingiu um ponto de saturação. O pêndulo, que começou com a eficácia zero do direito à saúde, oscilou para o extremo oposto. Vivemos um excesso de judicialização que alcançou um nível patológico. Afinal, quando os hospitais criam setores específicos para auxiliarem os pacientes a ingressarem com ações judiciais, é um claro sinal de algo não vai bem… (Curiosamente, um dos principais sintomas para diagnosticar um estado de coisas inconstitucional é verificar a necessidade de sempre ter que se buscar a tutela judicial para a obtenção do direito, algo que tem ocorrido no caso da saúde).

O presente texto é fruto de uma inquietação de alguém que lida com demandas da saúde quase diariamente. Mais ainda: é fruto de uma angústia de alguém que era entusiasta da judicialização da saúde, mas hoje tem plena consciência do caráter ambivalente desse fenômeno. Não se trata de ser absolutamente contra a judicialização da saúde, algo que parece demasiadamente contrafactual, mas de reconhecer os limites e os problemas que a judicialização tem acarretado. Portanto, os “pontos de reflexão” que serão aqui apresentados não têm por objetivo criar argumentos contra a judicialização, mas apontar algumas distorções que, atualmente, em nome da efetivação do direito à saúde, são cometidas.

1 – Prioridade de atendimento para quem tem ordem judicial favorável

Durante um plantão judicial, liguei para o coordenador de leitos de UTIs do meu Estado e perguntei como estava a situação da fila de espera. Ele me disse que, na “fila dos pacientes com liminar”, havia oito pacientes esperando leito. Na “fila dos pacientes sem liminar”, havia dezesseis pacientes, que somente seriam atendidos depois dos oito pacientes com liminares. Ou seja, o fator “com liminar”/”sem liminar” tornou-se um critério de classificação de prioridades!

Não há o menor sentido em se criar um lista de prioridade de atendimento que favoreça alguém pelo mero fato de ele ter uma ordem judicial a seu favor. Há critérios bem definidos, fundados na gravidade da situação do paciente, que estabelecem a ordem de atendimento nos leitos de UTIs. Pacientes no mesmo nível de gravidade são atendidos conforme a ordem cronológica.

Hoje, com a judicialização da saúde, tem havido um fenômeno interessante, pois, em muitos casos, esses critérios objetivos têm sido ignorados para favorecer um paciente que tenha obtido uma ordem judicial, ainda que esse paciente tenha chegado depois e sua situação não seja mais grave do que a dos demais pacientes. O único fator que o diferencia dos demais pacientes é o fato de ele ter uma ordem judicial determinando a sua internação em um leito de UTI.

A meu ver, tal tipo de discriminação é um absurdo. Em geral, nas minhas ordens judiciais, sempre incluo uma advertência dizendo que aquela decisão não deve ser interpretada de forma a autorizar uma quebra da ordem objetiva de prioridade. E por que eu concedo a liminar? Por uma única razão: se eu não conceder, corre o risco de esse paciente ser preterido por alguém que tenha uma ordem judicial. Então, tento, pelo menos, garantir que a sua posição na fila não seja prejudicada.

Em todo caso, se o poder público adota um critério objetivo de atendimento e se tal critério é razoável, não me parece correto que um juiz conceda uma liminar para alterar a referida ordem sem levar em conta a posição preferencial dos demais pacientes.

Mas e se houver uma demora desarrazoada para o internamento de pacientes em leitos de UTI? Nesse caso, temos um problema estrutural que há de ser resolvido de forma estrutural. Não é reservando um leito de UTI para um paciente e quebrando a ordem de atendimento que o problema vai ser resolvido.

Perceba que, mesmo que a ordem seja para garantir àquele paciente em específico um leito de UTI em hospital particular, também está havendo aí uma quebra da igualdade, pois a ordem de atendimento está sendo, de qualquer modo, burlada. Qualquer ordem judicial, para ser justa, tem que observar se existem pacientes com o mesmo nível de gravidade que estão aguardando o surgimento de vagas a mais tempo. Estes pacientes não podem ser prejudicados apenas porque um outro paciente tem uma ordem judicial favorável, já que ter uma ordem judicial favorável não é por si só um fator relevante para estabelecer ordem de prioridade de atendimento.

2 – Prescrições Médicas (de médicos públicos) que Ignoram o Protocolo Oficial do SUS

Esse é um ponto complexo, mas o objetivo é fazer refletir. Aparentemente, no âmbito do SUS, os médicos não são instruídos a seguirem os regulamentos que estabelecem os protocolos clínicos oficiais. Será que os protocolos oficiais, estabelecidos por normas jurídicas, são totalmente equivocados do ponto de vista médico e, portanto, não devem ser mesmo seguidos? Será que os médicos são plenamente livres para prescreverem o tratamento que acharem mais adequados, ainda que violem a diretriz oficial? Como encontrar um equilíbrio entre a liberdade de prescrição do médico e o dever de funcionários públicos de seguirem os regulamentos administrativos?

O problema pode ganhar ainda mais complexidade, na medida em que diversos médicos do SUS prescrevem medicamentos que sequer foram aprovados pela Anvisa. Em vários países, esse tipo de conduta (prescrição de remédios não-aprovados pelo órgão de saúde) seria considerado crime. Aqui no Brasil, tornou-se uma espécie de procedimento padrão não-oficial. E isso nos leva a alguns questionamentos. Podem os médicos públicos fundamentarem suas prescrições em tratamentos ainda em fase de estudos? Estudos científicos preliminares são suficientes para garantir a um paciente o direito de receber um medicamento experimental? De que vale a aprovação da Anvisa aqui no Brasil?

Na minha ótica, o problema da judicialização da saúde somente será superado quando os próprios médicos perceberem que fazem parte de um sistema mais amplo. É preciso que se tenha algum tipo de vinculação, ainda que relativa, em relação aos protocolocos oficiais. As decisões médicas, assim como as decisões judiciais, não devem se basear em voluntarismos (por mais que tenham um suporte da literatura científica, que, convenhamos, nem sempre é unívoca). Em linha de princípio, as normas do sistema devem ser seguidas, salvo se houver razões superiores que justifiquem a sua não-aplicação. A não observância do padrão oficial há de ser devidamente fundamentada. O problema é que, muitas vezes, os médicos sequer conhecem as diretrizes oficiais, nem se sentem vinculados a elas. E os juízes tendem a seguir o que o médico prescreve. Se o médico não leva em consideração o protocolo oficial, o juiz também não levará, o que certamente causará, em algum momento, o colapso do sistema.

Os protocolos clínicos cumprem um papel, a aprovação da Anvisa também, a análise do Conitec idem… enfim, a meu ver, o problema da saúde deveria ser resolvido, primeiro, dentro de casa, com os próprios médicos refletindo sobre seus problemas e tentando desenvolver soluções para o sistema como um todo. Para isso, o poder público deveria, de algum modo, ser capaz de influenciar os médicos do sistema a seguirem as políticas públicas adotadas. Aliás, em várias audiências que fiz com médicos, eles mostraram desconhecimento dos protocolos aprovados pelo Conitec ou outras regras do Ministério da Saúde.

De nada adianta existir um monte de órgãos técnicos para definir a eficácia e segurança de um medicamento, o custo-efetividade dos tratamentos ou os procedimentos a serem seguidos, se, na prática, ninguém dentro do sistema respeita essas decisões.

3 – Entrega de Medicamentos Diretamente ao Paciente

Esse pode parecer um ponto meramente operacional, mas há também um problema de fundo em jogo. Parte-se da crença de que o paciente X tem direito ao remédio Y e que, uma vez concedida a liminar, o remédio Y pertence a X. Em razão disso, o poder público entrega o remédio ao paciente, com todos os riscos que isso pode acarretar (acondicionamento inadequado, mau uso, desvio de finalidade etc.).

A meu ver, a concessão judicial de um direito a um tratamento não dá ao paciente o direito de propriedade sobre os insumos que vêm junto com o tratamento. O paciente tem direito ao medicamento na forma prescrita pelo médico, mas o medicamento pertence ao sistema de saúde e será ministrado enquanto tiver utilidade para o tratamento. Se o paciente tiver uma alergia imprevista ao medicamento, o remanescente continua no hospital e não na casa do paciente. Se o paciente morrer durante o tratamento, os sucessores não terão o direito de “herdar” os remédios que sobrarem. Hoje, na prática, o poder público tem fornecido medicamentos de alto custo diretamente aos pacientes, o que me parece um absurdo. Essa questão certamente é menor, mas demonstra como a judicialização pode gerar algumas distorções que quebram toda a lógica do sistema.

4 – Crença de que o estado tem o dever de prestar o melhor tratamento possível e imaginável, sem levar em conta o seu custo-efetividade

Os direitos sociais são, por natureza, direitos de realização progressiva. Há custos de implementação e, portanto, o fator econômico não pode ser ignorado, por mais valiosa que seja a saúde humana. Esse fator entra na equação sob o nome de “custo-efetividade”, que é uma metodologia de avaliação que compara tecnologias médicas levando em conta seus efeitos clínicos e seus custos. Existem critérios objetivos para medir o custo-efetividade e tal análise, em geral, é feita pelo Conitec quando resolve incorporar ou não uma nova tecnologia ao sistema público de saúde. As decisões tomadas pelo Conitec, quando não forem comprovadamente equivocadas, devem ser respeitadas. O mero fato de um tratamento ser mais eficaz não significa dizer que deve ser fornecido pelo SUS. É preciso analisar também seu custo-efetividade em comparação com outras tecnologias.

É preciso refletir se cabe ao poder público, sempre e em toda situação, fornecer um tratamento de ponta aos seus pacientes, sobretudo quando tal tratamento não pode ser universalizado, ou seja, estendido para todos os pacientes na mesma situação. Tão grave quanto negar um tratamento de ponta a todos os pacientes é conceder o direito apenas a alguns que tiveram a sorte de obter uma ordem judicial favorável.

Além disso, é de se questionar até onde o poder público deve ir para arcar com os tratamentos de “última esperança”, que são aqueles adotados quando todas as demais opções terapêuticas falham. Esse é um tema complexo, mas deve ser posto na mesa. Afinal, há um direito subjetivo de receber tratamentos extraordinários, às custas do poder público? O poder público deve jogar todas as fichas para salvar a vida do paciente, mesmo que as chances de fracasso sejam elevadas? A “obstinação terapêutica” é uma virtude médica ou, pelo contrário, um prolongamento desnecessário do sofrimento?

5 – Falta de Preocupação com Soluções Estruturais, Sistemáticas, Igualitárias e Universalizáveis

Situação hipotética: um grupo de médicos de um determinado hospital público retorna de um congresso científico empolgado com um novo estudo científico que comprovou os efeitos benéficos de uma droga experimental para uma doença grave. Eles resolvem padronizar o uso desse medicamento em seus pacientes apesar de não haver nenhuma diretriz do SUS autorizando. O problema é que o custo do tratamento é alto. O medicamento é importado e ainda não foi sequer aprovado pela Anvisa. Mesmo assim, eles resolvem padronizar e informam à direção do hospital. O diretor do hospital, contudo, avisa que não há verba para aquisição do referido medicamento. O SUS somente fornece R$ 1.000,00 por mês para cada paciente portador daquela doença grave e o remédio custa R$ 50.000,00. Ou seja, o hospital não tem como comprar.

O que deveriam fazer os médicos? Acionar os instrumentos do sistema para que o remédio possa ser incorporado ao protocolo oficial e, a partir daí, tentar alterar o valor disponibilizado pelo SUS para o tratamento daquela doença.

Como o sistema não responde de imediato ao apelo dos médicos, o que eles, de fato, fazem? Orientam seus pacientes a procurarem um advogado (ou a defensoria pública) e assim surge a judicialização… Alguns pacientes vão conseguir liminar e vão receber o medicamento; outros não…

Esse é um tipo de problema que deve ser resolvido de forma estrutural. Se há uma droga nova que não está sendo fornecida pelo SUS, as perguntas fundamentais são: (a) por que a medicação ainda não foi aprovada pela Anvisa? Qual o prazo previsto para aprovação (b) por que o Conitec não a incorporou como uma droga a ser fornecida? Já foram iniciados os estudos necessários? (c) quais são os tratamentos oferecidos pelo SUS para aquela doença? Os tratamentos oferecidos são inadequados? O tratamento novo tem custo-efetividade? Enfim…há diversas questões de alta complexidade que devem ser tomadas antes de se decidir se o SUS fornecerá ou não o medicamento.

Logicamente, é possível controlar judicialmente a validade do procedimento de incorporação, bem como o procedimento de aprovação na Anvisa, inclusive para verificar a razoabilidade da demora da análise. Mas o Judiciário somente deveria atropelar essas etapas em situações excepcionalíssimas, evitando ao máximo tomar uma decisão no lugar das autoridades médicas. Atualmente, a desconsideração dos processos de incorporação e aprovação de medicamentos tornou-se banalizada. Os médicos não aguardam a conclusão dos processos, e os juízes, com base na prescrição dos médicos, concedem liminares de modo automático. É como se os órgãos responsáveis fossem figurativos.

Aliás, a situação chegou a um ponto em que a concessão da liminar já se tornou a resposta esperada. A judicialização criou um sistema paralelo de concessão de medicamentos que funciona com base na expectativa da resposta judicial favorável. Muitas vezes, negar a liminar é quebrar a lógica desse sistema paralelo, na medida em que vários pacientes, em situação semelhante, estão recebendo a medicação com base em ordens judiciais. Assim, se um juiz deixa de conceder a liminar, pode até mesmo estar violando a igualdade, pois o que era para ser a exceção virou a regra.

Se investigarmos a origem do problema, provavelmente encontraríamos a sua fonte na atitude dos médicos que resolvem prescrever a medicação sem levar em conta o funcionamento do sistema em si (ou seja, sem levar em conta as regras oficiais e os procedimentos de incorporação de novas tecnologias). Pode-se dizer que eles são os primeiros responsáveis pela quebra do sistema e talvez até o façam de modo consciente, pois o sistema não tem respondido satisfatoriamente às suas demandas. Assim, só resta a eles estimular a judicialização.

Para um juiz é muito difícil mudar esse quadro. Primeiro, porque lhe falta conhecimento especializado. Segundo, porque a profissão médica possui um enorme prestígio e, portanto, o juiz tende a seguir a opinião do médico. Terceiro, porque seus pares estão concedendo liminares para casos semelhantes e, portanto, seria uma injustiça privar o demandante do mesmo direito. Quarto, porque o processo de concessão entrou numa linha de produção automatizada que não requer muito esforço de raciocínio. Quinto, porque a negação do direito provavelmente vai ser reformada pelo tribunal. Assim, a solução mais cômoda é a concessão da liminar.

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Muito mais poderia ser dito sobre a judicialização da saúde e a sua ambivalência. Seria interessante, por exemplo, ressaltar que as regras padronizadas pelo SUS não costumam estabelecer cláusulas de exceção para situações singulares, que seria um ponto onde provavelmente a judicialização teria alguma importância. Explicando melhor: certamente, a judicialização da saúde pode ter algum sentido quando se está diante de situações peculiares (doenças raras ou situações inusitadas), pois possibilitará alguma flexibilização dos procedimentos sem que se quebre de modo absoluto a lógica da padronização.

Do mesmo modo, é preciso refletir também sobre a falta de articulação e coordenação entre os órgãos envolvidos, que tem gerado diversos problemas de legitimidade, competência e efetivação das decisões judiciais. Aliás, a própria ausência de efetividade das decisões judiciais mereceria uma análise à parte. Além disso, é urgente desenvolver mecanismos processuais eficientes para enfrentar os problemas estruturais, que, atualmente, são os mais frequentes e os mais difíceis de serem superados. Enfim… Talvez eu volte a falar disso em outra oportunidade. Aqui, deixo apenas um último ponto de reflexão.

O que percebo, com esse fenômeno da judicialização da saúde, é que, cada vez mais, os médicos estão perdendo o controle sobre as decisões envolvendo as políticas públicas de saúde (num nível macro) e, por isso, estão agindo propositadamente num nível micro (individual). Pode ser impressão minha, mas me parece que os médicos deixaram de se sentir parte de um sistema e, por isso, agem de forma isolada, sem se preocuparem com o todo. A preocupação imediata é com aquilo que consideram ser o melhor para o seu paciente e não com o funcionamento do sistema em si. E como eles perceberam que os juízes costumam estar aberto às demandas individuais, resolveram estimular a judicialização, ainda que isso possa significar, em última análise, a renúncia da autonomia da medicina ou a “colonização da saúde pelo direito”. No final, nem se tem uma justiça bem feita, nem uma prestação de saúde minimamente satisfatória.

Ex-noivo pagará indenização por casamento cancelado

Não, você não leu errado. É isso mesmo.

Não entrando no mérito da questão, o interessante é o porquê foi negado o dano moral!

Quando a gente pensa que já viu de tudo…

Acórdão da 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, registrado no último dia 12, manteve sentença da Comarca de Rio Claro para condenar um homem a pagar indenização por danos materiais à ex-noiva, para ressarcimento dos gastos com preparativos do casamento que foi cancelado. O valor é de aproximadamente R$1.800,00. A autora também pretendia receber indenização por danos morais sob o argumento de que descobriu uma traição cinco meses antes do casamento, motivo do rompimento da relação. A turma julgadora, no entanto, negou o pedido.

O relator do recurso, desembargador Rômolo Russo, ressaltou em seu voto que realmente houve abalo emocional por parte da autora, mas essa sensação não é indenizável no status jurídico. “Nosso ordenamento não positiva o dever jurídico de fidelidade entre noivos ou namorados. Tal previsão restringe-se ao casamento civil (artigo 1.566, inciso I, do Código Civil). A conduta do apelante, portanto, não configura ato ilícito que acarretasse diretamente indenização por dano moral.” E também afirma: “É inegável que houvera a quebra abrupta nas expectativas da autora. No entanto, essa decepção, tristeza e sensação de vazio é fato da vida que se restringe à seara exclusiva da quadra moral e, portanto, não ingressa na ciência jurídica. Por isso, mesmo reconhecendo-se certa perturbação na paz da apelada, tal não é indenizável em moeda corrente”.
 
 

E agora, José?

Uma interessante provocação para (não tão) futuras considerações foi lançada pelo amigo virtual Jorge Alberto Araujo lá em seu blog Direito e Trabalho. Sigam o raciocínio e reflitam sobre o que nos aguarda…

PJe acaba com a fungibilidade dos recursos?

Uma questão interessante que está circulando entre os círculos de discussão é se o PJe [Processo Judicial Eletrônico] acabará com a fungibilidade recursal. Isso porque na sistemática atual e que demonstra uma tendência no desenvolvimento do sistema, não há liberdade para a parte em tomar a direção que entende correta para o aviamento de sua petição.

Ou seja em uma determinada situação do processo as possibilidades que se abrem são aquelas que o programador entendeu cabíveis e nenhuma outra mais.

Assim, por exemplo, se o juiz entende que, malgrada a ausência da parte autora, a situação é de adiamento da audiência (porque tem notícia de uma greve de transportes rodoviários que não está permitindo o deslocamento de pessoas), há a necessidade de fazer uma adaptação (que eu carinhosamente chamo de gambiarra) para permitir que esta decisão altere o rumo “natural” do processo.

No caso, contudo, das partes e procuradores “as gambiarras” são menos acessíveis. Assim se o advogado entende que, em determinada situação, o cabimento é de um recurso que não o oferecido no “menu” do PJe, o que ele poderá fazer?

Lembrem-se que muitas das atuais medidas processuais são fruto da criatividade dos procuradores, como, por exemplo, a Exceção de Pré-Executividade. Assim seria justo, jurídico, ou constitucional que uma medida entendida adequada pelo advogado seja simplesmente barrada pelo PJe, exclusivamente por não se adequar ao “menu” usual de classes e categorias anteriormente existentes?

Não custa recordar que, bem ou mal, há no Brasil inclusive recursos que são de índole regimental. Ou seja tem tais ou quais pressupostos de admissibilidade previstos apenas no Regimento Interno de determinado tribunal. Podemos determinar que, com base em uma “uniformidade” cômoda para o setor de tecnologia encarregado do desenvolvimento deste sistema se abra mão de uma característica de nossa cultura jurídica?

Francamente não tenho respostas para estas indagações. No entanto certo é que não se pode, por decreto, ainda mais de um setor não jurídico, o da tecnologia, determinar a reforma de usos e costume já arraigados na nossa jurisprudência.

Agressividade tecladística

Diretamente lá do Espaço Vital (mas a dica foi do Jorge):

O caso das petições com letras garrafais e excesso de pontos de exclamação desbordou numa agressividade criticada pelo desembargador Angelo Maraninchi Giannakos, da 15ª Câmara Cível do TJRS, ao negar seguimento a dois agravos de instrumento aviados pelo mesmo advogado (Gilberto da Silva Silveira), na defesa dos interesses de dois de seus clientes.

A expressão “letras garrafais” designa, em gíria jornalística, os caracteres tipográficos a partir dos corpos 24 (no corpo da matéria) e 72 nas manchetes. Os títulos impressos nestes tamanhos têm de ser curtos, para adquirirem “volume” na página.

A imprensa tradicional só em situações excepcionais utiliza corpos de letras dessa dimensão, mas jornais sensacionalistas recorrem a eles com frequência para induzir, no leitor, uma ideia de importância que as notícias e as reportagens geralmente não têm.

As juízas Fabiana dos Santos Kaspary e Laura de Borba Maciel Fleck, de duas diferentes varas cíveis de Porto Alegre, têm rechaçado as petições iniciais que – segundo a avaliação delas – passam a sensação de “gritos em Juízo”, contra as partes contrárias, magistrados, e servidores. As duas magistradas têm determinado que as petições sejam substituídas por outras peças não acintosas e compatíveis com a praxe forense.

Essas determinações de substituição das petições têm sido atacadas por recursos. Os primeiros foram providos no TJ gaúcho, sob o fundamento de inexistir previsão legal em limitar os tipos de letras e as feições gráficas.

Mas dois recentes recursos sustentando o cabimento das letras garrafais foram rechaçados pelo desembargador Giannakos – coincidentemente oriundo do quinto constitucional (pela Advocacia).

Nos agravos de instrumento, o advogado usa  expressões fortes, também com letras chamativas, discorrendo sobre “bullying processual”. A petição recursal diz também que “a magistrada surtou”. Refere-se ainda a “despautério”, “entendimento alienígena”, “puritanismo exacerbado” – e por aí vai.

Ao fulminar, monocraticamente, os dois agravos, o relator observa que “não é possível permitir aos que transitam pelo Pretório excessos de linguagem, muito menos expressões injuriosas aos magistrados”.

Giannakos recomenda “a cortesia e boa educação (…) no tratamento que se devem dispensar juízes, advogados e litigantes”. E conclui que “o recurso deve ser interposto contra o despacho proferido, mas não contra a pessoa do(a) magistrado(a)”.

(Procs. nºs 70050544535 e 70050550235).

Leia a íntegra de uma das duas decisões semelhantes:

AGRAVO DE INSTRUMENTO.
DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO.
AÇÃO ORDINÁRIA DE CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO NO SPC.
USO DEMASIADO DE GRIFOS.
PRÁTICA REITERADA CONSIDERADA OFENSIVA.
DECISÃO MANTIDA.
NEGADO SEGUIMENTO AO RECURSO.

Agravo de Instrumento
Décima Quinta  Câmara Cível
Nº 70050550235
Comarca de Porto Alegre

DECISÃO MONOCRÁTICA

Vistos.

XXX interpôs agravo de instrumento em face da decisão das fls. 51/53, que determinou o desentranhamento da petição e facultou a juntada de nova em termos adequados.

Nas razões de recurso, sustentou que a decisão cerceou seu direito de acesso à justiça. Defendeu que na petição inicial foram narrados os fatos que amparam a pretensão formulada. Alegou que os destaques constantes na exordial não são acintosos. Por fim, pediu o provimento do recurso e a desconstituição da decisão.

Sem preparo, face o deferimento do benefício da gratuidade judiciária (fl. 38), vieram-me os autos.

É o breve relatório.

Passo a decidir.

Conheço do recurso, uma vez que presentes os requisitos de admissibilidade recursal.

Compulsando os autos, tenho que assiste razão a MM. Juíza a quo, uma vez que se trata de prática reiterada do procurador da ora agravante o emprego de grifos exagerados e de afirmações acintosas.

O art. 15, caput, do Código de Processo Civil assim prevê: “É defeso às partes e seus advogados empregar expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao juiz, de ofício ou a requerimento do ofendido, mandar riscá-las”.

Nesse sentido:

“Art. 15: 2b. “Expressões injuriosas (CPC, art. 15) não tem o sentido empregado no Código Penal, referindo-se à dignidade e ao decoro. Ao contrário, visa abranger palavras escritas ou orais incompatíveis com a linguagem de estilo forense, a que estão vinculados o juiz, o MP e o advogado, em homenagem à seriedade do processo. A veemência da postulação precisa cingir-se aos limites da polidez” (STJ-6ª T, Resp 33654-9, Min. Vicente Cernicchiaro, j. 10.5.93, DJU 14.6.93). [1] (Grifei)

A ABNT é o órgão responsável pela normalização técnica no Brasil, muito utilizada para trabalhos de conclusão de curso, teses e dissertações, com o fim de unificar a apresentação de informações conveniente ao manuseio. Isso não significa que as peças processuais tenham que segui-las, mas o mínimo que se espera é que tenham a claressa necessária para compreensão do julgador e das partes que constituem a lide.

Com efeito, a prática adotada no caso concreto é incompatível com linguagem técnica que deve ser utilizada pelos operadores do Direito, uma vez que a busca do processo é a solução dos litígios e não vir a causar constrangimentos e ofensas ao Poder Judiciário e às partes, como alguns exemplos nestes autos:

“No caso em apreço, o “BULLYNGPROCESSUAL!!!” (fl. 03)

Subitamente, em um SURTO (…)” (fl. 03)

“Atente-se que é NOTÓRIA a perseguição (…)”. (fl. 03)

Mais uma vez a julgadora SURTOU, e, iniciou UMA CAÇADA a todos os processo deste procurador.” (fl. 04)

Onde foi dito, escrito, e ou convencionado que a escrita com letras grandes significa gritos!?!?!?!” (fl. 04)

“Caso assim o fosse, as manchetes dos jornais, revistas e até outdoors estariam ensurdecendo a nação mundial” (fl. 04)

“Atente-se ao ABSURDO, pois a julgadora “a quo”, sentiu-se CONSTRANGIDA e OFENDIDA em virtude da petição ser redigida com LETRAS CAPITAIS, e em NEGRITO usando fontes grandes!!! (fl. 05)

“Não se pode permitir tal retrocesso, onde MELINDRES pessoais, referentes ao “GOSTAR OU NÃO GOSTAR” de uma PEÇA processual, venham a interferir a prejudicar o normal andamento do processo, e especial por estar CEIFANDO o acesso da parte autora à JUSTIÇA!!!” (fl. 05)

“Pelo AMOR DE DEUS!!!” (fl. 06)

“Não se pode permitir tal retrocesso, onde um magistrado perde sua JURAMENTADA IMPARCIALIDADE, e, Passa a perseguir as PEÇAS PROCESSUAIS confeccionadas por este procurador” (fl. 06)

“Um ULTRAGE!!!
(fl. 06)

Há anos vem sendo muitíssimo bem recepcionados pelo judiciário, sejam vitimados por um posicionamento que beira o ANTIGO REGIME da DITADURA!!!” (fl. 06)

“Tamanha a ACINTE e IMPLICÂNCIA PESSOAL com todos os processos deste procurador, que estão sob a jurisdição desta magistrada, pois as LIDES estão sendo OBSTADAS e FULMINADAS de forma DISCRICIONÁRIA e SUMÁRIA!!!” (fl. 06)

“É notório o ato de DISCRIMINAÇÃO adotado pela julgadora “a quo”, pois NENHUM outro magistrado, dos que prestam jurisdição, nos mais de 5.000 processos existentes em nome deste procurador, cometeu tamanha ATROCIDADE!!!” (fl. 07)

NUNCA, nenhum magistrado cometeu tamanho DESPAUTÉRIO, deflagrado em desrespeito aos COLEGAS operadores do DIREITO.” (fl. 07)

“1) Não há excesso de PURITANISMO EXACERBADO em relação à DETERMINAÇÃO DESCABIDA desta julgadora?!??!” (fl. 07)

“2) Em que década a JUÍZA FABIANA KASPARY está vivendo, posto que se ofende e se constrange com uma SIMPLES RÉPLICA padrão?!?!?!” (fl. 07)

“Em conjunto com este ADVOGADO, realizam a JUSTIÇA para os CIDADÃOS BRASILEIROS de baixa renda, que, CONTUMAZMENTE, vem sendo VÍTIMAS das EXPLORAÇÕES das GRANDES EMPRESAS e INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS que são um CÂNCER no PAÍS!!!” (fl. 09)

É inconcebível que questões de foro íntimo venham a se sobrepor ao BEM MAIOR, que é objetivo do ESTADO, razão pela qual mister se faz lançar as seguintes indagações (…)” (fl. 10)

Apenas a UMA ÚNICA JUÍZA (por questões pessoais, de HIPERSENSIBILIDADE e PURITANISMO) sinta-se ofendida e constrangida ao ler as PEÇAS deste procurador.” (fl. 11)

“No entanto, de VÍTIMA, o autor na pessoa de seu procurador passou a ser o “VILÃO”, no lamentável entendimento do juízo “a quo”, que deveria superar as questões de foro íntimo e EVITAR mais um recurso.” (fl. 12)
“Com todo o respeito, o presente recurso visa atacar DECISÃO de cunho pessoal e de entendimento ALIENÍGENA da julgadora, pois a mesma está:
“INVENTANDO MODA”!!!” (fl. 12)

Os destaques acima indicados mantêm o tamanho 10 de letra, mas no recurso e peça inicial, a parte agravante utiliza texto com fontes e tamanhos diferentes.

Ocorre que os destaques desejados poderiam ser obtidos por outros recursos gráficos que não “poluiriam” as petições, tais como negrito, itálico, até mesmo caps lock, mas fazendo uso do mesmo tamanho de fonte do restante do texto.

De outra forma, o recurso deve ser interposto contra o despacho proferido, mas não contra a pessoa do(a) magistrado(a).

Cumpre salientar que despacho semelhante já foi proferido no processo sob n. 001/1.11.0170265-7, por outra Magistrada, o que demonstra a inconformidade disseminada com os grifos demasiados nas petições.

Sendo assim, entendo que deve ser mantida a decisão que determinou o desentranhamento da petição e facultou a entrega de nova peça respeitando a urbanidade necessária entre as partes e o Poder Judiciário.

Não é possível permitir aos que transitam pelo Pretório excessos de linguagem, muito menos expressões injuriosas aos magistrados. A cortesia e boa educação são implícitas no tratamento que se devem dispensar juízes, advogados e litigantes. As disposições do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil recomendam dispensarem-se, advogados e juízes, consideração e respeito recíprocos.

É oportuna a lição de Eliéser Rosa que:

“Advogar é convencer, é triunfar pela seleção dialética dos raciocínios fundados em direito; pela análise dos fatos e sua adequação à norma jurídica; pela serena e metódica exposição da causa, e tudo isso dentro da mais rigorosa veracidade, da mais limpa linguagem, onde não faltam nem a beleza rica da língua, nem os primores do estilo, nem as louçanias do mais polido cavalheirismo para com o juízo, as partes, colegas e terceiros. O poder persuasivo dos argumentos está na razão inversa da linguagem despolida com que são expostos”.

Por tais razões, nego seguimento ao recurso, por ausência de fomento jurídico, suporte fático e fundamento legal, mantendo a bem lançada decisão proferida pela MM. Juíza de Direito Dra. Fabiana dos Santos Kaspary.

Intimem-se.

Comunique-se.

Porto Alegre, 31 de agosto de 2012.

Des. Angelo Maraninchi Giannakos,
Relator.