Questão de equilíbrio

– Querida!

– Querida!

– Há quanto tempo! Como você está?

– Ah, sei lá… Estou bem, sabe? Numa correria danada, mas faz parte, né?

– É, eu sei. A gente só acaba encontrando quem a gente gosta assim, meio de sopetão!

– E não é que é? E você, menina? Também continua na correria, sempre cuidando dos outros, né? Falando nisso, e aquele seu tio que eu gosto tanto? Como ele está?

– Ah, daquele mesmo jeitinho. Um pé na cova e o outro na casca de banana!

– ?

– Mas agora preciso ir, já me chamaram para a próxima audiência! Um beijo!

– Beijo! Tchau!

E fiquei eu lá, cuidando das minhas coisas, da minha papelada, das minhas audiências. Mas aquela frase ficou na minha cabeça! Como assim “um pé na cova e outro na casa de banana”? O complicado de frases como essa é que a gente fica imaginando a situação… E na minha mente o pobre tio de minha amiga, meio que moribundo, meio que melhorando, bailava sobre sua própria cova, ora indo para um lado, ora indo para outro…

Mas a vida não nos dá tempo para devaneios! E a correria do dia a dia se sobrepõe a tudo! Dali para as compras, das compras pra casa, e em casa os gêmeos que me dão tanta felicidade quanto trabalho… Não tanto trabalho quanto o maridão, mas essa é uma outra história! Mas, pouco antes de dormir, mais uma vez lembrei-me de minha amiga, seu tio e a inusitada frase que usou para descrever a situação…

E naquela noite sonhei com ele, com covas, com paisagens deslumbrantes que conheço e jamais vi, e – lógico – com cascas de banana!

Dia novo, vida nova, afazeres de sempre, audiências de sempre.

Entretanto, mais certo que em eventos sociais, é no balcão do fórum que a gente sempre se encontra. E dali a duas semanas lá estávamos nós, novamente.

– Querida!

– Querida!

– Vai consultar algum processo?

– Não, não! Já fiz carga. Inclusive já estou até indo!

– Então tá bom. Mas, escuta: e seu tio? Como está?

– Ah, daquele mesmo jeitinho, né? Um pé na cova e o outro na casca de banana!

Pronto. Lá veio ela com aquela bendita frase de novo! Levei dias para esquecê-la e agora eis que ela volta pra me assombrar…

E não demorou muito, eu, já no mercado, durante as compras semanais de sempre – que talvez seja um dos únicos lugares fora o salão de beleza em que conseguimos pensar com calma – voltei a pensar naquela frase. E só pude concluir que normalmente ficamos tão absortas na correria que deixamos a vida passar. Deixamos de viver, de passear, de nos divertir, de conhecer gente nova, lugares novos, até mesmo de simplesmente comer todos os chocolates que pudermos, só para tentar dar conta desse carceireiro chamado tempo que teima em nos roubar o que de mais precioso temos. E quando menos esperamos podemos ficar numa situação como a desse tio de minha amiga. Nem bem, nem mal, mais pra lá que pra cá. E esse tempo que nos foi levado? Pra onde foi? Como pegá-lo de volta?

Semanas se passaram até que a vi de novo. Lógico, nos corredores do fórum. Lá vinha ela com aquele seu tradicional passinho lépido e já antevi o nosso usual encontro de segundos. E de antemão aquela frase também já me veio à cabeça: “um pé na cova e outro na casa de banana”

– Querida!

– Querida!

– E seu tio, como está?

– Então, menina. Escorregou!

Profunda questão

Alguém por aí já parou sinceramente para pensar nisso?

Mas de verdade mesmo?

Particularmente eu não sei… Eu não sei…

É uma questão tão profunda quanto difícil de responder!

Resgatar os sonhos de infância – de infância mesmo -, pensar no mundo em que não pensávamos, nos problemas que não tínhamos, nos adultos que nos cercavam, no futuro que aguardávamos, nos nossos planos, sonhos, devaneios e no que efetivamente nos tornamos hoje. É um desafio.

Hoje, ainda, não sei.

Preciso pensar, pensar…

Pensar.

Procura-se

Procura-se um caderninho azul escrito a lápis e tinta e sangue, suor e lágrimas, com setenta por cento de endereços caducos e cancelados e telefones retirados e, portanto, absolutamente necessários e urgentes e irreconstituíveis. Procura-se e talvez não se queira achar, um caderninho azul com um passado cinzento e confuso de um homem triste e vulgar… Procura-se, e talvez não se queira achar.

Rubem Braga

Biblioteca privada

Não, não é bem o que vocês estão pensando…

Isto é, talvez seja exatamente o que vocês estão pensando!

Enfim, divirtam-se com essa saborosa crônica de Rubem Alves e vejam se ele não tem mesmo razão!

A função cultural das privadas

“Por gentileza, a senhora podia me dizer onde fica a privada?”. A anfitriã, ao ouvir a palavra “privada”, assusta-se e ruboriza-se. “Privada” não é palavra que se fale. Trata de remendar: “Ah, o banheiro… O banheiro fica no fim daquele corredor…”. O homem encaminha-se para o local indicado, intrigado: “Eu já tomei banho. Não quero tomar banho de novo…”. Mas logo, ao entrar no banheiro, vê que a anfitriã estava enganada. Lá não há nem banheira nem chuveiro. Só há uma privada – que é, precisamente, aquilo que ele está procurando.

Não é educado falar “privada”. “Vou à privada…”: isso não se diz, principalmente pelo fato de que essa palavra é sinônima de “latrina”, palavra de música feia, há muito fora de uso, exceto nos escritos do Manoel de Barros que diz: “Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas”. Mas como as pessoas comuns não lêem Manoel de Barros, não se pode esperar que elas, ao ouvirem a palavra “latrina”, pensem em violetas.

O educado é “banheiro”. E também toilette que, segundo o dicionário, é “ato de se lavar, pentear e vestir”. Mas quando uma pessoa pergunta pelo banheiro ou pelo toalete ela não está pensando em tomar banho ou se lavar. Está pensando em outra coisa.

A primeira vez que fui aos Estados Unidos, arranhando inglês, numa escola, premido por forças fisiológicas, procurei o dito quarto. E logo vi, numa porta, escrito: Private. Achei que private era “privada”. Entrei pela porta. Mas logo descobri que private queria dizer que aquele era um cômodo onde eu não podia entrar. Quando, pela primeira vez, desci num aeroporto dos Estados Unidos, e vi placas indicando rest-rooms, achei que elam salas vip, com poltronas confortáveis, onde as pessoas descansavam, porque rest-room, traduzindo literalmente, é “quarto de repouso”. Mas não era. Era o lugar onde estavam as privadas e os mictórios.

Estou propondo que se recupere a dignidade da palavra “privada”. Pois suspeito que ela esteja ligada a “privacidade”, como o private americano. A privada é o lugar onde estamos sós e ninguém tem o direito de nos incomodar. Lugar de refúgio, santuário de solidão. Quando a gente está na privada não tem que se comportar direito, não tem que prestar atenção ao que os outros estão dizendo. É um lugar de liberdade e honestidade. Em reuniões, quando a agitação é muita, esse recurso é muito eficaz. “Vocês me dão licença…”. Sem explicar nada, todo mundo sabe que nos retiramos por motivos imperiosos. Não sabem que o que a gente deseja é ficar sozinho. Ali a gente não tem que estar sorrindo, não tem que achar as piadas engraçadas, pode se dar ao luxo de não falar.

Mas o meu interesse atual pelas privadas liga-se à minha crônica “Casas que emburrecem”. Acho que as privadas podem se tornar lugares desemburrecedores, que excitam a inteligência.

Educação, como se sabe, se faz com livros. Mas, com os inúmeros estímulos da televisão e a correria da cidade, as pessoas lêem cada vez menos e, com isso, ficam burras cada vez mais. Mas a privada, onde nada nos perturba e ninguém tem o direito de nos interromper (a menos que você seja dos tolos que levam o telefone para a privada…), é um lugar excepcional para a leitura.

Vi, muitos anos atrás, nos Estados Unidos, uma coisa insólita, que jamais passaria pela minha cabeça: um papel higiênico que tinha, em cada folha, um aforismo, máxima ou conselho. O usuário não resistia à tentação e, antes de fazer o uso normal do papel, lia o que estava escrito, o que contribuía decisivamente para sua formação intelectual e espiritual. Imaginei uma melhoria nessa idéia: livros inteiros impressos no papel higiênico. Assim, aos poucos, assentada na privada, a pessoa iria lendo a grandes obras da literatura mundial. Vai aqui uma sugestão para as fábricas de papel higiênico. Um bom moto de propaganda seria: “Use o papel higiênico ‘Inteligente’, que dá cultura antes de limpar”. Se, no futuro, aparecerem tais papéis higiênicos inteligentes no mercado, quererei receber minha porcentagem de direitos autorais. E invocarei vocês, leitores, como testemunhas de que a idéia original foi minha.

Mas, deixando de lado essas digressões, passo ao que me interessa: estou sugerindo aos pais e às mães, preocupados com a educação dos filhos e com sua própria educação, que transformem as privadas em bibliotecas. Uma minibiblioteca, é claro. Mas essa minibiblioteca seria suficiente para operar grandes transformações nos que lêem enquanto assentados no trono. A vantagem de tal providência seria uma transformação na língua, pois que as privadas, em vez de serem chamadas eufemisticamente de “banheiro”, seriam orgulhosamente chamadas de “biblioteca privada”. “Por gentileza, a senhora poderia me dizer onde fica a biblioteca privada? Estou sentindo uma premente necessidade de cultura…”. E a anfitriã responderia, orgulhosamente: “No fim do corredor. Lá o senhor encontrará livros fascinantes para ler…”.

As modificações nas privadas seriam mínimas. Uma pequena estante… Os artesãos de madeira que expõem na feira de artesanato bem que poderiam fazer essas pequenas estantes a serem afixadas ao alcance das mãos da pessoa que está assentada. Se isso não for possível, uma mesinha serve. Aqueles momentos, então, seriam momentos de prazer duplo, fisiológico e intelectual.

Vou dizer os livros que, na minha opinião, devem estar na “biblioteca privada”.

Um livro com as tirinhas do Calvin. Se você não conhece o Calvin, saiba que quando o Correio Popular chega, vou direto ao Caderno C, para lê-lo. O Calvin é sempre uma pitada de sabedoria infantil no mundo louco dos adultos. O Calvin é uma alegria. Há livros com coleções de tirinhas.

Alguns números do Asterix. Quem não conhece o Asterix está perdendo uma das grandes alegrias da vida. São estórias de um pequeno herói gaulês e do seu amigo gordão, de força imbatível, Obelix. Aconselho, especialmente, os números Asterix Legionário e Obelix & Cia. Quem lê Obelix & Cia. fica sabendo tudo o que é preciso saber sobre o capitalismo, rindo e sem precisar aprender economês.

De Herman Hesse, Para ler e pensar – uma coletânea de pensamentos curtos sobre os mais variados tópicos: amor, morte, política, educação, arte. Fica mais sábio quem lê.

Da Adélia Prado, Solte os Cachorros – hilariante. Não é poesia; é prosa.

Não pode faltar poesia. Para os iniciantes, aconselho a leitura de Mário Quintana. E o Manoel de Barros: Livro sobre nada.

Livros de arte. A coleção Taschen, encontrada em qualquer livraria, é maravilhosa. Baratos. Você pode escolher: Picasso, Monet, Dalí, Michelangelo, Rafael, Klimt, Klee (leia-se “klêe”, e não “kli”), Boticelli, von Stuck e muitos outros. As crianças e os adultos se deleitarão. Também o Meu primeiro livro de arte.

Gostaria que alguns livros meus também fizessem parte dessa “biblioteca privada”. Crônicas, O amor que acende a lua, O retorno e/ terno, Sobre o tempo e a eternaIdade. E livros infantis: A menina e o pássaro encantado, A volta do pássaro encantado, Os três porquinhos.

E um livro de peso que quando lido fica leve: Confesso que vivi, de Neruda.

Você vai notar uma coisa curiosa: as visitas à “biblioteca privada” vão ficar mais freqüentes e mais demoradas… Eu não disse, no início, que as privadas podem ter uma função cultural?

Rubem Alves

Quintana de hoje

Deixa-me seguir para o mar

Tenta esquecer-me… Ser lembrado é como
evocar-se um fantasma… Deixa-me ser
o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo…

Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se…

Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir… é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho…
Deixa-me fluir, passar, cantar…

toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!